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Entre corpos e espaços: uma história da criminalidade nas matas de araucárias (Mallet-PR, 1931-1950)

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ENTRE CORPOS E ESPAÇOS:

UMA HISTÓRIA DA CRIMINALIDADE NAS MATAS DE ARAUCÁRIAS

(MALLET-PR, 1931-1950)

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS

LINHA DE PESQUISA: CULTURA, PODER E REPRESENTAÇÕES ESPACIAIS

ENTRE CORPOS E ESPAÇOS:

UMA HISTÓRIA DA CRIMINALIDADE NAS MATAS DE ARAUCÁRIAS (MALLET-PR, 1931-1950)

GABRIEL JOSÉ POCHAPSKI

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GABRIEL JOSÉ POCHAPSKI

ENTRE CORPOS E ESPAÇOS:

UMA HISTÓRIA DA CRIMINALIDADE NAS MATAS DE ARAUCÁRIAS (MALLET-PR, 1931-1950)

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em História no Programa de Pós-Graduação em História, Área de Concentração em História e Espaços, Linha de Pesquisa Cultura, Poder e Representações Espaciais, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação do Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Júnior.

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Central Zila Mamede

Pochapski, Gabriel Jose.

Entre corpos e espaços: uma história da criminalidade nas matas de araucárias (Mallet-PR, 1931-1950) / Gabriel Jose Pochapski. - 2018.

442 f.: il.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em História. Natal, RN, 2018.

Orientador: Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Júnior.

1. Historiografia - Mallet (PR) - Dissertação. 2. Cartografia criminal - Mallet (PR) - Dissertação. 3. História da

Criminalidade - Mallet (PR) - Dissertação. I. Júnior, Durval Muniz de Albuquerque. II. Título.

RN/UF/BCZM CDU 930(816.2) Elaborado por SARA SUNARIA DE ALMEIDA SILVA XAVIER - CRB-15/572

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GABRIEL JOSÉ POCHAPSKI

ENTRE CORPOS E ESPAÇOS: UMA HISTÓRIA DA CRIMINALIDADE NAS MATAS DE ARAUCÁRIAS (MALLET-PR, 1931-1950)

Dissertação considerada APROVADA para obtenção do grau de Mestre em História no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Comissão formada pelos professores:

_____________________________________ Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Júnior – UFRN

(Orientador)

_____________________________________ Prof. Dr. Raimundo Pereira Alencar Arrais – UFRN

(Avaliador interno)

_____________________________________ Prof. Dr. Hélio Sochodolak – UNICENTRO

(Avaliador externo)

_____________________________________ Prof. Dra. Denise Bernuzzi de Sant’Anna – PUC-SP

(Avaliador externo)

_____________________________________ Prof. Dr. Raimundo Nonato Araújo da Rocha – UFRN

(Avaliador interno/Suplente)

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AGRADECIMENTOS

Esta dissertação é resultado de deslocamentos por áreas rurais e urbanas do interior paranaense, mas também de andanças por capitais como Curitiba, Natal, João Pessoa e Recife. Fruto de intensidades e afetos sentidos no corpo, este trabalho se deu a partir do encontro da serra com o oceano; das neblinas com as brisas marítimas; das geadas com o calor; dos pinhões das araucárias com as castanhas dos cajueiros. Cartografias sobre o Sul produzidas no Nordeste do Brasil, esta pesquisa é um encontro de diferentes espaços do país, uma união que só foi possível graças às diversas pessoas que estiveram diretamente ligadas com o desenvolvimento deste texto.

Minha família teve um papel efetivo em todas as etapas da pesquisa e da escrita. Sou enormemente grato aos meus pais, Lídia e José, por entenderem a importância da educação, por acreditarem nos meus sonhos e me apoiarem incondicionalmente em tudo. O contato com a bibliografia estrangeira só foi possível devido o empenho do meu irmão José Augusto, que por diversas vezes interrompeu as suas próprias pesquisas para procurar as obras solicitadas em bibliotecas do exterior. Também ressalto a ajuda constante do meu irmão Daniel no envio de livros ou na resolução de qualquer situação na minha ausência do Paraná. A amizade e o auxílio mútuo que temos é um dos motivos dessa dissertação existir.

Apesar dos diversos parágrafos deste trabalho, torna-se difícil encontrar palavras para agradecer ao meu querido orientador Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Júnior. Uma das principais justificativas para o meu deslocamento para outra região do Brasil foi o desejo de querer aprender mais com esse professor tão especial com quem sempre pude contar com a amizade, a paciência, o apoio e o acolhimento. Como orientando, a característica que mais me marcou foi a de ter um orientador sempre sorridente, seja nas críticas ou nas orientações rizomáticas que nunca terminaram sem sonoras risadas. Espero que este trabalho possa estar minimamente à altura da ajuda e dos ensinamentos que sempre pude contar com você. Muito obrigado.

À Profa. Dra. Margarida Maria Dias de Oliveira, que discutiu comigo a primeira versão deste projeto com apontamentos precisos que foram essenciais para o desenvolvimento das etapas seguintes da pesquisa. Agradeço também ao Prof. Dr. Renato Amado Peixoto, pelas discussões proporcionadas em sua disciplina e por ter analisado os esboços da crítica historiográfica empreendida no primeiro capítulo.

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O Prof. Dr. Raimundo Arrais fez muitas observações e críticas decisivas ao longo de várias etapas da escrita. Agradeço pela sua atenção, pelas suas indicações e comentários que foram fundamentais desde a disciplina de historiografia e produção dos espaços, onde apresentei as ideias iniciais do primeiro capítulo, até a sua participação no exame de qualificação e na defesa desta dissertação.

Minha gratidão ao Prof. Dr. Raimundo Nonato Araujo da Rocha, que participou do exame de qualificação e fez observações que foram relevantes nas discussões que realizei nesse trabalho.

Agradeço com muito carinho e respeito ao Prof. Dr. Hélio Sochodolak, que proporcionou o contato com a documentação judiciária de Mallet; por ter me orientado nos projetos de pesquisa durante a graduação; pelo incentivo dado para que eu pudesse realizar este mestrado e por ter participado da banca avaliadora desta dissertação.

À Profa. Dra. Denise Bernuzzi de Sant’Anna, não apenas por ter feito parte da banca avaliadora da defesa, mas também por seus textos e percepções que foram essenciais e inspiradores no meu empenho de trazer a presença do corpo para a narrativa historiográfica.

Muitas problematizações desenvolvidas nos diferentes capítulos deste trabalho somente foram possíveis graças à generosidade intelectual, a disponibilidade de materiais e conhecimentos compartilhados pelos professores doutores André Martinello, Ana Maria Gillies, Eliana Quartiero e Eduardo Pellejero. Também ressalto que as discussões realizadas nos encontros “A violência contra a mulher” e “Cura Gay? Judicialização das sexualidades”, ambos ministrados pela Profa Dra. Berenice Bento, foram de grande importância para as perspectivas que adotei no segundo e no terceiro capítulo.

Das instituições e centros de pesquisa onde pude entrar em contato com as fontes documentais utilizadas neste estudo, minha enorme gratidão a Bruno, Pedro, Gerson, Júlio, Dener e Ana Flávia, estagiários do Centro de Documentação e Memória da Unicentro-Irati (CEDOC/I), um espaço coordenado pelo trabalho competente da arquivista Márcia Doré tendo a direção do Prof. Dr. Valter Martins. Agradeço aos funcionários do Arquivo Público do Paraná; do Museu Paranaense; do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC-FGV); da Biblioteca Pública do Paraná; Biblioteca de Ciências Jurídicas da Faculdade de Direito do Recife - Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); Biblioteca de Ciências Humanas da Universidade Federal do Paraná

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(UFPR); Biblioteca Central e as Setoriais (CCHLA) e (DEARQ) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

No Paraná, agradeço a Hélcio S. Pinto, Jully Pacholok, Catharine M. Torres, Lucas Pellá, João Henrique Souza, Eduardo Wengrat e Rhanan Vareshi por me acolherem nas diversas idas para Curitiba e Irati, foi graças a vocês que as dificuldades da pesquisa se misturaram com a leveza dos reencontros. Aos integrantes do Núcleo de Pesquisa em História da Violência (NUHVI), em especial a Lucas Kosinski. Aos professores dos Departamentos de História e de Psicologia da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). As lindas palavras sobre o nomadismo, proferidas pela Profa. Paula Marques, e o incentivo das professoras Ana Paula Wagner, Nádia Guariza e Cléa Ballão foram essenciais para que eu seguisse atrás dos meus objetivos.

Já em terras potiguares, destaco a amizade e os encontros com Jussier Dantas, Clara Minervino, Matheus Ramos, Paulo Higor Duarte, Álvaro Lins, João Vitor Marinho, Leonardo Ventura, Pedro Almeida, Natan Severo, Ivan de Melo, Thyago Henrique, Leonardo Cruz, Wellington Machado, Guerhansberger Tayllow e a Profa. Dra. Hozanete Lima no grupo de pesquisa Cartografias Contemporâneas (UFRN). Minha gratidão a Giovanni Bentes, Marina Dantas, Leandro Pinheiro, Gustavo Mello e especialmente, a Cid M. Silveira, cearense animado e grande amigo, que também vivenciou os dilemas de estar longe da família. Meu muito obrigado a Yuri Kamosaki, Bruna Torquato, Arthur Learth, Júlio César, Bruna Lopes, Marcos Arthur, Vitor Lima, Bruna Nogueira e Claudiano Neto pela presença constante. A Clébio Lima, as conversas sobre as nossas dissertações e os cafés durante as madrugadas de escrita são lembranças que guardo com enorme carinho.

Minha tentativa de produzir uma pesquisa que colocasse os corpos como a centralidade da narrativa historiográfica foi justamente interrompida por duas das principais características corporais: a imprevisibilidade e a fragilidade da vida. Por diversas vezes me perguntei, Técio, por que tão cedo?

Em tempos onde a educação e a pesquisa científica nas universidades públicas são atingidas por outros interesses, é importante ressaltar o papel das políticas de permanência da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis da UFRN, principalmente o auxílio alimentação e os serviços de saúde. Minha gratidão aos funcionários do Restaurante Universitário (RU), pessoas que foram fundamentais para um mestrando distante de casa.

Por fim, agradeço à CAPES pela bolsa de pesquisa que permitiu a dedicação necessária para desenvolver este trabalho.

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RESUMO

Este trabalho tem como objetivo principal produzir um estudo da criminalidade a partir dos corpos e dos espaços no município de Mallet, localizado nas matas de araucárias do Estado do Paraná. Buscamos concentrar esta pesquisa entre os anos de 1931 a 1950, período em que o registro da criminalidade se intensificou, tendo os corpos como as superfícies atingidas nos conflitos conduzidos até o Poder Judiciário. Desde o final do século XIX e na primeira metade do século XX, o território onde se desenvolveu Mallet foi marcado pelo contato da população cabocla com milhares de imigrantes eslavos, principalmente de origem ucraniana e polonesa, que ali se estabeleceram em decorrência das estratégias de colonização do sul do Brasil. As relações desenvolvidas entre os diferentes habitantes dessas áreas predominantemente rurais implicaram na formação e delimitação de espaços marcados por tensões, desavenças e violências que inscreveram seus sinais nos corpos e que ganharam visibilidade governamental nas décadas de 1930 e 1940. Tendo os processos criminais da Comarca de Mallet como o principal suporte documental e a história serial como a base metodológica, pretendemos investigar como os registros da criminalidade ganharam impulso a partir da década de 1931; quais relações os corpos estabeleceram com os espaços nessas ocasiões de conflitos; de que modo as desavenças estiveram ligadas às singularidades temporais, étnicas e culturais dos moradores e das autoridades judiciárias e policiais; e quais foram os padrões recorrentes, as descontinuidades e as rupturas perceptíveis nos crimes que atingiram os corpos entre os anos de 1931 a 1950. Por fim, tendo a cartografia como o conceito a ser instrumentalizado nesse estudo sobre a criminalidade, este trabalho pretende compreender os espaços relacionados com os crimes nos seus diferentes fluxos, devires e movimentos, bem como, busca colocar a presença do corpo como um aspecto fundamental e indissociável da narrativa historiográfica.

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ABSTRACT

This work aims to produce a study of criminality from the bodies and spaces in the municipality of Mallet, located in the Araucaria forests of the state of Paraná. We sought to concentrate this research between the years 1931 to 1950, a period when the records of crimes intensified, having the bodies as areas reached in conflicts conducted to the judiciary power. Since the end of the 19th century to the first half of the 20th century the territory where Mallet-PR was developed was defined by the contact of the cabocla population with thousands of Slavic immigrants, mainly of Ukrainian and Polish ethnic backgrounds, who settled there as a result of colonization strategies of southern Brazil. The relations developed between the different inhabitants of these predominantly rural areas implied in the formation and delimitation of spaces marked by tensions, disagreements and violence that inscribed their signs in the bodies and that gained governmental visibility in the decades of 1930 and 1940. With Mallet’s criminal processes as the main documentary support and serial history as the methodological basis, we intend to investigate how criminal records gained momentum beginning in 1931; what relations the bodies established with the spaces in these occasions of conflicts; how the disagreements were linked to the temporal, ethnic and cultural singularities of the residents and the judicial and police authorities; and what were the recurring patterns, discontinuities and perceived ruptures in the crimes that hit the bodies between 1931 to 1950. Finally, having the cartography as the concept to be used in this study on the criminality, this work intends to understand the spaces related to crimes in their different flows, becoming and movements, as well as intents to place the presence of the body as a fundamental aspect and inseparable from the historiographical narrative.

(11)

LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Mallet e as matas de araucárias na primeira metade do século XX. ... 19

Figura 2: Linhas, vicinais e colônias em Mallet – 1947 ... 40

Figura 3: Fotografia de casas na Colônia Vera Guarani - 1914 ... 45

Figura 4: As estradas de São Pedro do Mallet em 1914 ... 47

Figura 5: Mapa do município de Mallet com a localização das estradas gerais, linhas e vicinais dos envolvidos nos crimes de 1931 a 1950. ... 51

Figura 6: Sede Municipal de Mallet em 1948 (Direção Oeste) ... 64

Figura 7: Sede Municipal de Mallet em 1948 (Direção Leste) ... 65

Figura 8: O corpo-araucária do paranaense – 1927 ... 86

Figura 9: A exumação do cadáver de Inácio – 1936... 102

Figura 10: Croqui do local onde Paulo faleceu - 1936 ... 124

Figura 11: Índices da criminalidade no município de Mallet entre 1925 a 1954. ... 155

Figura 12: Número de criminosos identificados no Paraná (1933-1937) ... 159

Figura 13: Passagem do Batalhão Revolucionário do Paraná por Mallet-PR - 1930 ... 172

Figura 14: Criminalidade, a iluminada - 1941 ... 184

Figura 15: Os crimes e o poder jurídico-policial em Mallet-PR (1931-1950) ... 186

Figura 16: Abaixo-assinado dos moradores do distrito de Paulo Frontin – 1941 ... 239

Figura 17: Mapa dos espaços corporais atingidos nos crimes ocorridos em Mallet-PR e sua distribuição pelo território do município (1931-1950) ... 281

(12)

LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Crescimento das comarcas juríficas no território paranaense (1878-1949) ... 170 Tabela 2: Percentual de indivíduos nomeados como estrangeiros nos crimes registrados em Mallet (1931-1950) ... 175 Tabela 3: Processos-crime ligados ao corpo produzidos na Delegacia de Mallet e suas subdelegacias (1931-1950) ... 188 Tabela 4: Deslocamentos topográficos dos corpos feridos em Mallet-PR (1931-1950) .. 288 Tabela 5: Instrumentos utilizados nos crimes ocorridos em Mallet-PR (1931-1950) ... 317

(13)

... A escrita transforma a coisa vista ou ouvida "em forças e em sangue". Ela se torna no próprio escritor um princípio de ação racional.

Michel Foucault. A escrita de si. 2003.

E me lembrei que a gente sempre ouvia nos sermões do pai que os olhos são a candeia do corpo. E, se eles eram bons, é porque o corpo tinha luz. E se os olhos não eram limpos é que eles revelavam um corpo tenebroso.

Raduan Nassar. Lavoura Arcaica. 2002.

Não se representa, engendra-se e percorre-se.

(14)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 15

CAPÍTULO 1 - ANATOMIAS DOS ESPAÇOS ... 32

1.1 Os corpos e a terra: trilhas, linhas e vicinais nas matas de araucárias ... 32

1.2 As estradas, as roças e a sede do município rural. ... 49

1.3 Imigrantes, brasileiros e outros corpos ... 75

1.4 A carne, a vestimenta e a técnica: fisiologias das superfícies ... 101

1.5 A casa e a instabilidade dos espaços ... 115

1.6 Ferramentas da criminalidade: corpo, espaço e tempo ... 135

CAPÍTULO II - GEOGRAFIAS DOS CÓDIGOS E DAS TRANSGRESSÕES... 146

2.1 O sangue que rega os chimarrões ... 147

2.2 A captura dos corpos e as luzes do poder jurídico-policial ... 164

2.3 O visto e o dito: tipologias e enquadramentos da criminalidade... 195

2.4 As faces de Svetovid: um corpo para o judiciário e outro para o lavrador? ... 216

2.5 O território da acusação e o território da defesa ... 235

2.6 “Não me surre mais!”: as outras justiças, transgressões e nomadismos ... 253

CAPÍTULO III - TOPOGRAFIAS DOS CORPOS ... 272

3.1 O corpo como espaço e suas cartografias ... 274

3.2 Peitorais, braços e mãos: as extensões do corpo maquínico ... 295

3.3 As cabeças, os rostos e os signos das agressões ... 318

3.4 O pênis e as gradações do pudor ... 336

3.5 É virgem ou não? A vagina e a materialidade da prova ... 354

3.6 O ventre como o palco dos crimes ... 387

CONCLUSÃO ... 409

SÉRIES E QUANTIFICAÇÕES ... 418

FONTES DOCUMENTAIS ... 425

(15)

INTRODUÇÃO

Ninguém ignora que a criminalidade é um assunto predominante nas discussões atuais do Brasil. Observamos a recorrência do tema nos meios de comunicação ou nas conversas cotidianas e notamos que todos repetem a frase: “o número de crimes sobe a cada dia”. Embora a ocorrência de um crime seja sempre singular por apresentar características individuais, cada um desses delitos compõe “um todo” que é a criminalidade, este fenômeno amplo composto por padrões, regularidades e repetições.1 Se observarmos as análises recentes sobre um dos padrões da criminalidade, os crimes de homicídio, percebemos que a transição entre os anos de 1980 e 2000 foi acompanhada por um aumento de 124% no número de assassinatos no país. Mas longe da ideia de que essa elevação no número de delitos se dá no meio urbano, os dados assinalam que o maior ritmo de crescimento dessas duas últimas décadas não ocorreu nas capitais, mas sim no interior dos estados brasileiros. Em meu caso, como alguém criado em áreas predominantemente rurais do Paraná, vi muito das minhas vivências quando me deparei com a informação de que os territórios de menor densidade populacional (até 70 mil habitantes) apresentavam uma multiplicação de crimes superior aos grandes centros urbanos. O século XXI anunciava que a criminalidade estaria se elevando com potência nas pequenas cidades e nas áreas rurais do Brasil. 2

Querendo saber mais sobre o território onde eu vivia, me deparei com a afirmação de que o Paraná estava entre os 10 estados onde mais se cometiam homicídios dolosos – quando há intenção de matar –; e que ocupou o 3º lugar no número de lesões corporais seguidas de morte, em 2016. Assustado, procurei novas informações e vi que os crimes contra a integridade física teriam sofrido um aumento de 4,70% do ano de 2016 para 2017. Esses dados me pareceram estranhos. Afinal, eu não estava na região que se considerava como “a melhor do país”? Logo de início chamou minha atenção o fato de que os conflitos que ocorriam nos campos do Paraná possuíam índices superiores aos demais estados da

1

Sobre esta noção de criminalidade, ver: FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 09.; MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Crime e

escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas, 1830-1888. São Paulo: Editora Universidade

de São Paulo, 2014. p. 17-37.

2

Sobre a elevação dos delitos entre os séculos XX e XXI, ver: WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da

violência 2012: os novos padrões da violência homicida no Brasil. São Paulo: Instituto Sangari, 2011. p. 44.

Sobre o aumento dos crimes no interior dos Estados, ver: WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência

dos municípios brasileiros. Brasília: Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência

(16)

Região Sul. Em 2016, os registros paranaenses de violência contra a pessoa no campo foram 195% maiores se comparados ao Rio Grande do Sul e 240% com relação à Santa Catarina. Além desses dados, notei que a criminalidade no Paraná apresentava claras marcas de gênero, pois o estado estava na 4º colocação no número de registros de estupros ocorridos no Brasil, durante 2016. Mas além dos estupros, os assédios e outros crimes sexuais apresentaram uma elevação de 14,75% entre 2016 e 2017. E para piorar, ainda em 2017, as quantificações sobre o assassinato de mulheres situaram o Paraná como o estado que assinalou o maior índice de novos casos de feminicídios em todo o país. A criminalidade estava longe de acabar. 3

Menos concentrada nos grandes centros e aumentando nas cidades menores e no campo, este fenômeno e suas faces no território paranaense me impactaram. As porcentagens eram importantes para que eu tivesse uma dimensão ampla da criminalidade, mas, por outro lado, cada um desses delitos se relacionava com o final violento de vidas, com a brutalidade dos atos, com a dor de corpos feridos ou com estupros que se repetiam. Com este diagnóstico do presente, recordei as perguntas feitas por Arlette Farge: Qual seria o papel do historiador diante dessa situação? O que o saber e a prática historiográfica seriam capazes de dizer sobre esta configuração dos dias atuais? O que os corpos perfurados, machucados e marcados pelos crimes sinalizavam?4 A presença de diversos dados lançados no final de cada mês, semestre ou ano diminuía muito pouco a penumbra do presente que encobria meu cotidiano de historiador. Tornava-se impossível produzir um olhar breve e recente para criminalidade, pois qualquer tentativa aprofundava ainda mais a nebulosidade turva, opaca e sombria da ausência de respostas. Inspirado por Agamben, busquei projetar todas essas sombras do presente para o passado. Mas o que poderia ser encontrado a partir dessas projeções? Quais contornos resultariam desse movimento feito de um problema contemporâneo para os períodos anteriores? Como as sombras da criminalidade de hoje poderiam ser contrapostas com a história do Paraná? 5

3

Sobre os homicídios e as lesões, ver: FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário

Brasileiro de Segurança Pública 2017. São Paulo. 2017. p. 15.; Sobre os crimes contra a integridade física,

ver: PARANÁ. Relatório Estatístico Criminal, 4º semestre de 2017. Secretaria da Segurança Pública e Administração Penitenciária. Curitiba, 2018. s/p.; Sobre os conflitos no campo, ver: CEDOC Dom Tomás Balduino – (CPT). Violência contra a pessoa em 2016. Comissão Pastoral da Terra. 2016. s/p.; Sobre os crimes sexuais, ver: FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário do Fórum Brasileiro

de Segurança Pública 2017. p. 42.; PARANÁ. Relatório Estatístico Criminal, 4º semestre de 2017. s/p.;

Sobre os novos registros de feminicídio, ver: CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. O Poder Judiciário

na aplicação da Lei Maria da Penha. Brasília: Departamento de Pesquisas judiciárias, 2018. p. 20.

4

Ver: FARGE, Arlette. Lugares para a História. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. p. 07-13.

5

(17)

Ao questionar o passado, percebi uma imagem muito diferente daquela que era comum no meu presente. As narrativas desenvolvidas sobre a história do Paraná falavam pouco sobre os conflitos, violências ou crimes. Predominava a imagem de um “Paraná diferente”, civilizado e dócil pela presença dos imigrantes; um território branco e europeizado como problematizou Sochodolak.6 A história do Paraná não mencionava aspectos que permitissem falar sobre os crimes que ocorriam distantes dos centros urbanos, e tampouco colocava os homicídios, a crueldade, os estupros ou as lesões como componentes do seu passado. A imagem constantemente evocada, afirmava o Paraná como um espaço pacato coberto por araucárias, povoado por imigrantes eslavos, germânicos, italianos e por outros grupos étnicos a partir do século XIX. Narrados como estáveis e sem tumultos, os espaços rurais paranaenses apareciam como territórios sem conflitos também nas versões feitas por pessoas próximas e familiares, nos relatos religiosos e acadêmicos, ou nos discursos proferidos por membros da etnia eslava, a qual eu pertenço. Estes relatos tão pacíficos passaram a me provocar um grande estranhamento. Lembrando de Edgar De Decca, entendi que a reiteração de uma dada interpretação tinha o poder de organizar a memória histórica sobre o passado que chegava até nós.7 Era preciso desenvolver outra perspectiva, pois nada daquilo tinha sentido para as questões que faziam parte do meu presente.

As dúvidas foram substituídas pela perplexidade no momento em que entrei em contato com um fundo documental referente ao município de Mallet-PR. Vasto e inexplorado, este material jurídico era composto por cerca de seis mil processos criminais que datavam dos anos de 1913 a 2016, um período amplo que abrangia a ocupação do território paranaense no século XX.8 Mas além da vastidão desses documentos, o que tornava Mallet tão singular? Por que o meu olhar era atraído para esse município? Assim como os territórios vizinhos da Mesorregião Sudeste Paranaense, Mallet jamais possuiu uma população elevada ou foi um grande centro urbano. Seu número de habitantes havia sido crescente até o ano de 1949, quando foi registrado o auge populacional de 25.000 moradores. Após este período, o município perdeu parte do território com a emancipação

6

Ver: SOCHODOLAK, Hélio. Processos criminais e história da violência – Mallet-PR (1913-1945). In. XXVIII Simpósio Nacional de História, lugares dos historiadores: velhos e novos desafios. n.14, Florianópolis. Anais do XXVIII Simpósio Nacional de História, lugares dos historiadores: velhos e

novos desafios. Florianópolis, 2015. p. 02.

7

Ver: DE DECCA, Edgar. 1930: o silêncio dos vencidos. São Paulo: Brasiliense, 1994.

8

A documentação referente ao Fundo Judiciário da Comarca de Mallet foi doada para o Centro de Documentação e Memória da Unicentro-Irati (CEDOC/I), localizado na Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO-PR) campus-Irati, em fevereiro de 2012.

(18)

de um dos distritos, a população decaiu com o êxodo rural e muitos habitantes se deslocaram para outras áreas do estado. 9

A redução demográfica e as mudanças territoriais ocorridas a partir de 1950 não atraíram a minha atenção. O que tornava a documentação jurídica malletense tão singular aos meus olhos era um contexto sociocultural anterior. Desde o final do século XIX e nas duas primeiras décadas do século XX, o lugar onde se desenvolveu este município fo i marcado por contatos entre brasileiros, também chamados de caboclos, com os imigrantes do leste europeu.10 Importante centro das estratégias de colonização, Mallet foi o primeiro local do Brasil a receber estrangeiros de origem ucraniana em números elevados, abrigando também o maior núcleo de poloneses no Paraná. Embora fossem diferentes, estes dois grupos étnicos eram chamados de eslavos e constituíam a maior corrente imigratória que ocupou o território paranaense e um dos principais contingentes étnicos que imigrou para o sul do Brasil. 11

No caso do Paraná, a concentração dos imigrantes eslavos se deu em áreas cobertas por uma densa vegetação que caracterizava as matas de araucárias. Embora a fauna e a flora características desse ecossistema pudessem ser encontradas em menores quantidades em outros locais do Brasil, Mallet estava localizada em uma área onde tal floresta se intensificava.12 As matas de araucárias se tornaram o espaço de interação entre brasileiros, estrangeiros e seus descendentes. Instigado por estes aspectos, meu olhar para a documentação jurídica malletense certamente tornaria possível observar com mais detalhes

9

Segundo o Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social (IPARDES), Mallet está localizada na Mesorregião Sudeste do Paraná. Mesorregião é o termo utilizado para definir uma extensão

territorial com características próprias (físicas, econômico-sociais, humanas etc.), Ver: INSTITUTO PARANAENSE DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL. Leituras regionais: Mesorregião Geográfica Sudeste Paranaense. Curitiba: IPARDES: BRDE, 2004. p. 09-19.; Sobre a população, ver: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Sinopse estatística do Município de

Mallet. Curitiba: DEE, 1950. p. 13.; Sobre a fragmentação territorial e o êxodo rural, ver: WOUK, Miguel. Estudo etnográfico – linguístico da comunidade ucraína de Dorizon. Curitiba: SECE, 1981. p. 18; 58-61.

10

O termo “caboclo” era usado para designar a população resultante dos contatos de portugueses com os indígenas, ou também era utilizado enquanto categoria sociológica, “cultura cabocla”, uma expressão que se referia às sociedades ditas como rústicas. Ver: CANDIDO, Antônio. Os Parceiros do Rio Bonito: Estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. 11ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010. p. 27.; MONTEIRO, Duglas Teixeira. Os errantes do novo século: um estudo sobre o surto milenarista do Contestado. São Paulo: Duas Cidades, 1974. p. 86-102.

11

Ver: HORBATIUK, Paulo. Imigração ucraniana no Paraná. União da Vitória: Uniporto Editora, 1989. p. 15.; GLUCHOWSKI, Kazimierz. Os poloneses no Brasil: subsídios para o problema da colonização polonesa no Brasil. Porto Alegre: Rodye & Ordakowski, 2005. p. 77.

12

A mata de araucárias originalmente ocupava 200.000 km², estando presente em 49,8% do território do Paraná, 30% de Santa Catarina e 25% do Rio Grande do Sul. Também ocorria em maciços descontínuos nas partes mais elevadas das Serras do Mar, Paranapiacaba, Bocaína e Mantiqueira, nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, e também na Argentina. CAMPOS, João Batista; SILVEIRA-FILHO, Leverci. Série Ecossistemas Paranaenses – Floresta Estacional Semidecidual. Curitiba: SEMA, 2010. s/p.

(19)

quais vivências os diversos habitantes teriam estabelecido naquele espaço. Tornava-se impossível ignorar os processos criminais registrados em Mallet, pois este município das matas de araucárias reunia em sua história características como as estratégias de imigração, o contato entre as diferentes culturas, a vida nas áreas rurais paranaenses, entre outros aspectos importantes no meu exercício de projeção das sombras do presente para o passado.

Figura 1: Mallet e as matas de araucárias na primeira metade do século XX.

Fonte: Mapa adaptado, sites: http://araucariasecampos.blogspot.com.br/; http://www.rbma.org.br/anuario/images/mapa_dest_araucaria_02.jpg. Acesso em 09 de abril de 2018.

Mesmo sabendo que se tratava de um arquivo judiciário e que, portanto, o conteúdo seria atravessado por tensões e conflitos, o meu contato com os processos criminais logo substituiu o ânimo pela perplexidade. Mantendo a sequência cronológica desde 1913 até os anos seguintes, chamou a minha atenção o grande aumento da quantidade de inquéritos instaurados a partir da década de 1930. Os moradores mencionados nas folhas amareladas, imigrantes ou brasileiros, eram muito diferentes das descrições pacíficas que eu estava acostumado a ler e a ouvir. Dos relatos policiais emergiam muitos corpos espancados e perfurados; corpos que se envolviam em tensões com familiares, amigos e vizinhos; corpos que gritavam, possuíam sensações, desejos, sofrimentos e medos. Tudo isso me chocou. Os cenários bucólicos das matas de araucárias que tanto ouvi se dissiparam, pois percebi que as próprias estradas, casas, roças e florestas se tornaram indissociáveis daquelas desavenças. Eram os espaços dos afazeres, das sociabilidades e da vida familiar que

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propiciaram os encontros nem sempre amistosos dos corpos. A carne ferida e os locais de ocorrência dos crimes praticados nesse município sinalizavam que a história das áreas rurais do Paraná não era tão pacífica assim.

A análise da década de 1930 apontava para um período de muitos registros de delitos entre os malletenses. Interessado e assustado decidi investigar o que teria acontecido a partir dessa década para tentar entender as relações dos crimes que atingiam os corpos com as tensões que ocorreram naqueles espaços. Afinal, quais seriam os padrões da criminalidade em Mallet, a partir dos anos trinta? O que este aumento de registro de crimes significava? E, principalmente, quais semelhanças poderiam ser encontradas das sombras do presente projetadas para o passado?

Nesse percurso, o fato de eu ser descendente de eslavos e de fazer parte deste grupo étnico afetava diretamente os meus questionamentos. Por diversas vezes, minhas menções e indagações sobre o conteúdo do arquivo judiciário recebiam respostas pouco amigáveis das pessoas do meu contexto sociocultural: “Qual a necessidade de falar isso?”, “Por que dizer essas coisas da sua terra?”, “Qual o motivo de alguém nache lhude comentar esses assuntos sobre os antepassados?”.13

A recorrência dessas perguntas foi importante para mim, pois o temor e a repulsa que as acompanhavam eram indícios de que as imagens do passado não estavam dadas, cristalizadas e prontas. Pelo contrário, o modo como esses indivíduos viam a própria história eram fabricações humanas, eram efeitos de elaborações estratégicas, de tramas discursivas, de jogos de interesses, enfim, de invenções.14 A construção de um dado passado implicou na organização sobre quais seriam os arquivos e as documentações aceitas nos estudos referentes à colonização do Paraná e seus efeitos – o que propiciou uma ausência das fontes jurídicas e policiais. Mas a manutenção das narrativas sobre o passado também resultaram da constante seleção do dito e do não dito, pois os grupos étnicos, nesse caso os eslavos, poderiam interditar temas que eram pouco favoráveis à imagem idealizada que se buscava produzir sobre essas comunidades. 15

13

O termo ucraniano “nache lhude” (наши люди) significa “nossa gente” ou “nosso povo”. Trata-se de uma expressão utilizada entre os descendentes de ucranianos para delimitar os indivíduos pertencentes a esse grupo da etnia eslava.

14

Sobre a noção de invenção na historiografia, ver: ALBUQUERQUE JÚNIOR. Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado (ensaios de teoria da história). Curitiba: Editora Prismas, 2017. p. 19-44.

15

Sobre os mecanismos de seleção e a produção dos arquivos, ver: DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo,

uma interpretação freudiana. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2011. p. 12-13.; Uma pesquisa que permite

problematizar com maior intensidade essas “produções de si” realizadas pelos imigrantes eslavos foi realizada por Joab Monteiro, ver: SOUSA, Joab Monteiro de. Agenciamentos polono-brasileiros em

movimento: descrições sociotécnicas de polonidades em ação. 295f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais).

(21)

Por um lado, minha posição de historiador via a necessidade de falar sobre os crimes e tudo que fazia parte dessa dimensão conflituosa pouco mencionada propositalmente. Por outro, eu reconhecia que o pertencimento a um grupo étnico teve um peso na maneira como a minha vida se desenvolveu. Todavia, os dois lugares não poderiam ser impedimento para que um olhar alternativo fosse produzido. Lendo Butler, cheguei à conclusão de que a identidade cultural e os critérios supostamente definidores de uma tradição deveriam ser transpostos em detrimento da alteridade e da dimensão ética da prática historiográfica. Era preciso me distanciar de certos laços para articular essa dupla-posição, de descendente de eslavos e de historiador. Era necessário que eu me afastasse de mim mesmo para que a diferença pudesse emergir.16 Sentindo-me desconfortável e desconfiado do meu próprio passado, decidi partir para além do Paraná. Mais do que um simples afastamento, a distância era fundamental para que eu pudesse ver melhor os contornos que davam formas para aquele território e sua história.

Esta pesquisa tem como objetivo principal produzir um estudo sobre a criminalidade e a relação que ela implicou entre os corpos e espaços em Mallet durante os anos de 1931 a 1950. Tendo como principal suporte documental os processos criminais desse município, a presente investigação busca concentrar as suas análises na década de 1930, quando o número de processos criminais do fundo judiciário passou a se elevar, até o final da década de 1940, quando o município foi dividido pela emancipação de um dos seus distritos. Em meio aos constantes silêncios sobre essa temática quando se trata das áreas rurais do Paraná, notadamente nos territórios de colonização europeia, procuramos questionar como e porque o registro da criminalidade se intensificou nos anos trinta e quarenta? Quais fatores propiciaram a emergência deste fenômeno? O que a ocorrência repetitiva de certos delitos permite dizer sobre as tensões, desavenças e conflitos presentes naquela população? E quais relações os crimes produziram com os corpos e os espaços?

Ainda que tivéssemos definido a noção de criminalidade no início desta introdução, devemos levar em conta que, embora Machado tenha analisado este fenômeno durante a escravidão e Fausto tenha investigado tal temática no período referente à Primeira República, ambos convergem no entendimento de que a criminalidade diz respeito ao conjunto dos conflitos, enquanto o crime é o evento singular.17 Estas perspectivas são

16

Ver: BUTLER, Judith. Caminhos divergentes: judaicidade e crítica do sionismo. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 11-37.

17

Ver: FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano. p. 09.; MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Crime e

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fundamentais para entendermos que o crime e a criminalidade não se anulavam em Mallet, pelo contrário, um era parte indissociável do outro. É a partir dessa característica ampla da criminalidade que se pode perguntar: quais eram os padrões mais recorrentes de crimes neste município? Haveria fatores que ligavam os diferentes crimes ocorridos em um mesmo espaço? As maneiras como os corpos eram atingidos indicavam quais singularidades e quais regularidades? Da mesma forma, a criminalidade no seu aspecto mais singular – o crime – também é de extrema importância, pois é a análise de cada caso que torna possível problematizar a atuação do Estado, as várias versões dadas para um único delito, os motivos que teriam propiciado a desavença, os valores evocados e o papel que as tensões poderiam ocupar nas matas de araucárias entre os anos de 1931 e 1950.

A partir de Piore e Müller, podemos pensar que o crime é um tipo de infração condenada pela lei e reprovada pela moral, todavia, a própria prática de um crime, no seu caráter mais singular, pode compreender o exercício da violência como uso da força ou da coerção por parte dos envolvidos ou das autoridades. Embora o crime seja efeito da transgressão de uma lei ou de uma norma, ele comporta a violência, a crueldade, as tensões, as desavenças e os desentendimentos no seu funcionamento.18 Os crimes no nível singular, ou a criminalidade de forma ampla, abrangem aspectos da dimensão violenta e brutal das sociedades e das formas de contenção dos conflitos desenvolvidos a cada período. Neste caso, como podemos pensar as relações entre a criminalidade, os corpos e os espaços em Mallet, nas décadas de 1930 e 1940? E quais hipóteses podem ser investigadas para o aumento do registro de crimes percebido durante esses vinte anos?

Em meio a milhares de folhas que permitiam assinalar a elevação do número de crimes naquele espaço, era necessário compreender como os conflitos ocupavam uma função particular nos códigos e valores dos moradores. A probabilidade de que a intensificação da convivência entre os habitantes fosse marcada por rivalidades entre vizinhos, provocações, questões de família e de honra se tornavam uma importante hipótese para o aumento do registro da criminalidade. Mas também temos que considerar que muitas tensões que atingiam os corpos eram conduzidas até os tribunais pela presença de policiais e inspetores de quarteirão que atuavam em Mallet nos anos de 1931 a 1950. Embora ambos fossem representantes das leis, não se pode ignorar que a maioria dos inspetores era composta por moradores responsáveis por manter a ordem. Neste sentido, o

18

Ver: PRIORI, Mary Del; MÜLLER, Angélica. (org.). História dos crimes e da violência no Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 2017. p. 07-10.

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aumento do registro da criminalidade não poderia estar igualmente ligado com as articulações de interesses particulares com a norma oficial?

A tentativa de analisar historicamente este fenômeno conflituoso nas matas de araucárias se torna ainda mais complexa com a gradual judicialização das relações costumeiras ocorrido no Brasil, nas décadas de 1930 e 1940. Característica da Era Vargas (1930-1945), a centralização do poder de Estado convergia para um projeto político de controle social dos indivíduos, suas condutas e práticas.19 A ampliação do registro da criminalidade em Mallet, nas duas décadas que buscamos investigar, foi marcada por transformações legislativas, principalmente a instituição do Código Piragibe, em 1932, e do Código Penal de 1940. A partir destas alterações legais, os corpos atingidos pelos crimes passaram a ser compreendidos a partir de novos critérios que definiam o enquadramento dos delitos, as tipologias dos ferimentos e a gravidade dos atos.20 Diante de um intervalo de tempo caracterizado pela maior presença governamental, pela racionalização das tensões e pelas rupturas nos próprios conceitos e percepções sobre os corpos pelo poder judiciário, tornou-se relevante interrogar quais foram os efeitos dessas mudanças em áreas rurais como Mallet? Dado o aumento da presença do Estado, podemos também considerar a hipótese de que a elevação do registro da criminalidade estava ligada ao embate entre os valores costumeiros dos moradores com as leis e práticas do poder judiciário. Mas, nesse caso, de que forma os corpos e os espaços eram relacionados com os crimes?

Como apontamos até aqui, os corpos e os espaços eram mais do que simples noções evocadas na documentação, ambos eram componentes indissociáveis da criminalidade no território malletense dos anos de 1931 a 1950. Problematizar os crimes demandava uma atenção para a historicidade dos usos dos corpos, para os aspectos simbólicos ligados a corporeidade, para as mudanças nas posturas, gestos, expressões e movimentos. De maneira semelhante, era preciso abordar as reconfigurações dos espaços, as transformações nas superfícies de encontros e desencontros, nos locais de interferência do Estado ou de transgressões produzidos pelos moradores. Problematizar a criminalidade a partir dos

19

Ver: CANCELLI, Elizabeth. O mundo da violência: a polícia da Era Vargas. Brasília: UnB, 1993. p. 22; 79-80.; PIERANGELI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. São Paulo: Rev. Dos Tribunais, 2001. p. 415-490.; ALVES, Paulo. O Poder Judiciário no Estado Novo (1937-1945). História, São Paulo, n.12, p. 253-271, 1993.

20

Ver: FRY, Peter; CARRARA, Sérgio. As vicissitudes do liberalismo no Código Penal brasileiro. Revista

Brasileira de Ciências Sociais, p. 48-54, 1986.; PIERANGELI, José Henrique. Códigos penais do Brasil.

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corpos e dos espaços implicava em produzir um olhar diferente para o passado. Nesse caso, como a historiografia voltada para os temas dos crimes, dos conflitos ou da violência no Brasil poderia nos auxiliar?

As pesquisas referentes à criminalidade e ao uso dos processos-crimes como fontes documentais ganharam impulso entre os historiadores brasileiros a partir da década de 1980. Inspirados pela historia social inglesa, mas também impactados pela Nouvelle

Histoire, as investigações desenvolvidas a partir deste período apontaram para uma

abertura aos diferentes métodos, para a aproximação com outros saberes e principalmente para uma ampliação das temáticas de estudo.21 Todavia, devemos levar em conta que tais pesquisas foram marcadas pelo número restrito de trabalhos referentes aos espaços rurais. Indispensável para as nossas análises, a obra Homens Livres na Ordem Escravocrata (1969) de Maria Sylvia de Carvalho Franco, havia sido produzida alguns anos antes deste impulso historiográfico, mas a sua relevância concentrava-se, sobretudo, no entendimento de que as violências, tensões e conflitos eram componentes centrais nas relações de vizinhança, nos códigos sociais e nos laços de sociabilidade das populações agrícolas. 22

Além da obra de Franco, que foi publicada nos anos sessenta, Bretas aponta que foram as pesquisas realizadas por Zenha e Machado nos anos oitenta – ambas referentes ao período da escravidão –, que buscaram destacar os crimes que ocorriam nas lavouras e matas. No entanto, o impulso historiográfico brasileiro a partir de 1980 implicou em uma dinâmica na qual eram as obras referentes à escravidão que abordavam os crimes ocorridos nos campos, enquanto os trabalhos sobre as mudanças dos séculos XIX e XX – centralizados em Chalhoub e Fausto – reiteravam o modelo citadino da criminalidade. O número restrito de produções voltadas para as áreas rurais era contrastante com a prevalência de estudos sobre os espaços urbanos, tidos como lugares do aumento populacional, da pobreza e do desemprego.23 Todavia, as transformações nos centros

21

As novas percepções sobre a criminalidade na historiografia brasileira dos anos oitenta foram marcadas pelo contato com as produções de Edward P. Thompson, e das aproximações com o que se denominou como a Nova História. As publicações e problemas desenvolvidos por Le Roy Ladurie e Ginzburg sinalizaram novos olhares para fontes criminais. Destaca-se também o impacto provocado por Foucault, notadamente nas análises referentes às prisões e na questão do poder para além da centralidade do Estado. Ver: BRETAS, Marcos Luiz. O crime na Historiografia Brasileira: uma revisão da pesquisa recente. BIB-Boletim

informativo e bibliográfico de Ciências Sociais, v. 32, 1991.; RAMOS, Igor Guedes. Genealogia de uma operação historiográfica: Edward Palmer Thompson, Michel Foucault e os historiadores brasileiros da

década de 1980. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015. p. 231-291.

22

Ver: FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Editora Ática, 1974. p. 22-41.

23

Ver: BRETAS, Marcos Luiz. O crime na Historiografia Brasileira. p. 52-54.; FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. p. 22-41.; ZENHA, Celeste. As práticas da justiça no

(25)

urbanos implicaram no desaparecimento da criminalidade nas áreas rurais? Sabemos que não.

Por mais que os trabalhos de Zenha e Machado tivessem abordado questões relativas a delitos ocorridos nas roças e lavouras durante a escravidão, a historiografia dos anos oitenta tinha pouco a dizer sobre os conflitos e violências no campo. Mas, de todo modo, esta característica não nos permite contrapor as pesquisas referentes à escravidão aos estudos sobre o Período Imperial e a Primeira República, pois havia uma convergência: todos estes estudos eram semelhantes quanto à ausência dos corpos em suas narrativas. Apesar de tratarem de assassinatos, castigos, estupros e outras práticas que atingiam os corpos, as discussões realizadas pelos estudiosos desses períodos históricos ignoravam a dimensão sensível, frágil e temporal da carne. As questões abordadas por esses enfoques historiográficos davam prevalência para as mudanças econômicas ou políticas, mas minimizavam os corpos em suas expressões, desejos e sentimentos.

Não é novidade que a escrita da história naturalize ou despreze os aspectos corpóreos dos personagens descritos nos conflitos, violências ou desentendimentos. Albuquerque Júnior aponta que, apesar do gênero historiográfico ter nascido das guerras e lutas que dilaceravam os corpos, os historiadores desde as suas primeiras narrativas minimizaram as dores, sensações e fragilidades como integrantes dos acontecimentos.24 A historiografia das últimas décadas pouco mudou nesse sentido, as pesquisas que abordam a questão dos crimes ou da criminalidade no Brasil permanecem negligenciando o caráter temporal dos corpos. Acostumados a negar o sentimental, o passional e o sensível em suas análises, percebi que os aspectos relacionados com os corpos pareciam aterrorizar os historiadores que, em muitos casos, recorriam ao uso das quantificações como uma forma indireta de minimizar a centralidade corporal presente na documentação.

Observamos, por exemplo, que as investigações desenvolvidas por Boris Fausto, que analisou a criminalidade na cidade de São Paulo, entre os anos de 1880 a 1924, pareciam tentar dar certo destaque para o corpo nos casos de homicídios ou quando tratava da atuação do saber médico na capital paulistana. Contudo, o âmbito corporal logo era substituído por percentuais e quantificações. Por exemplo, Fausto pareceu ignorar a

cotidiano da pobreza. Revista Brasileira de História. V. 5, nº 10. março/agosto. 1985.; FAUSTO, Boris.

Crime e cotidiano. p. 09-15. CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos

trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle époque. Campinas: Editora da UNICAMP, 2001. p. 08-20.

24

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. O passado, como falo?: o corpo sensível como um ausente na escrita da história. no prelo, 2016. p. 01.

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materialidade dos corpos ao fazer uso de suas tabelas para afirmar que os indivíduos brancos e negros eram tratados de maneira diferenciada pela prática jurídica. Apesar de problematizar uma sociedade que assinalava na pele as distinções sociais, Fausto em nenhum momento questionou qual o impacto que se ter um corpo negro ou um corpo branco produzia quando se estava diante do tribunal? Aspectos semelhantes se repetiam no uso de categorias como “porte físico”, “sexo” ou “idade”, termos que nunca eram trazidos nos corpos viventes, mas sim através de estatísticas, tabelas e dados que reduziam as sensações e as expressões a números e porcentagens. 25

Assim como em Fausto, a ausência do corpo também se fazia sentir no trabalho de Sidney Chalhoulb sobre a criminalidade no Rio de Janeiro na transição entre os séculos XIX e XX. Podemos citar como uma breve demonstração o capítulo dedicado ao estudo dos comportamentos de homens e mulheres cujas relações amorosas se transformavam em crimes sexuais. Chauhoub, mais do que Fausto, buscou apontar para temáticas até então pouco comuns na historiografia brasileira, temas que envolviam a dimensão física, erótica e sentimental – âmbitos corporais por excelência –; mas, contraditoriamente, precisamos questionar algumas das suas discussões, afinal, como falar dos crimes sexuais sem levar em conta o corpo? Como descrever a violência conjugal sem mencionar as marcas das pancadas e das sevícias feitas nos corpos? Como ignorar os aspectos físicos nas descrições de estupros? Chalhoub afirmou que seus personagens Zé Galego, Paschoal e Júlia “berram bem forte” em meio à documentação, mas o historiador não percebeu que acabou por torná-los semelhantes a manequins frios ao negligenciar a historicidade presente em cada ato daqueles corpos. 26

Fausto e Chalhoub não são exceções, os historiadores influenciados por suas obras persistem em descrever os delitos, os processos e os julgamentos sem enfatizar que o crime e todas as etapas decorrentes dele estão mediados pela presença do corpo. O desenvolvimento desta pesquisa se tornava necessária não apenas pela falta de estudos sobre a criminalidade nos espaços rurais, mas principalmente, por tentar destacar a presença corporal nas narrativas historiográficas desenvolvidas a partir dos arquivos judiciários. Nestas perspectivas, este estudo se aproximou do pensamento de Michel Foucault para compreender o corpo como a superfície de inscrição dos acontecimentos.27

25

Ver: FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano. p. 51-59; 98-101; 163-173.

26

Ver: CHALHOULB, Sidney. Trabalho, lar e botequim. p. 20; 60; 51-59; 163-173.

27

Ver: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. p. 22.

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Eram nos corpos dos habitantes das matas de araucárias que as transformações históricas, as trocas culturais e os conflitos foram marcados. Utilizando a compreensão do corpo como uma superfície moldada temporalmente em seus aspectos físicos e materiais, simbólicos e discursivos, buscamos ressaltar as posturas, os gestos, as vestimentas e os padrões físicos evocados pelos brasileiros, ucranianos e poloneses que residiam em Mallet como resultados de inscrições historicamente ligadas a um contexto sociocultural.

Analisar os homicídios, agressões, estupros e rivalidades que emergiam nos afazeres corriqueiros ou nos momentos de sociabilidade demandava um olhar preciso para as ações humanas que produziam e significavam os corpos e as vivências naquele espaço rural paranaense. Como propõe Sant’Anna, torna-se necessário entender que “o corpo não cessa de ser (re)fabricado ao longo do tempo”, pois ao contrário do entendimento do corpo como algo pronto, é de fundamental importância considerarmos como as leis e os códigos de cada cultura resultaram em formas de controle e práticas corporais.28 Longe de serem dados naturalizados e fixos, os corpos atingidos pela criminalidade eram produzidos por atravessamentos de normas costumeiras presentes nas relações entre os integrantes dos grupos étnicos que habitavam o território malletense. Mas também podemos analisar como tais valores foram articulados com as estratégias utilizadas pelas autoridades jurídicas e policiais nesse município. Os corpos eram compreendidos pelos juízes e policiais de modo distinto das formas como os inspetores de quarteirão, geralmente agricultores, entendiam os aspectos corporais, o que poderia resultar em singularidades na aplicação das leis. Michel de Certeau afirmou que “não há direito que não se escreva sobre corpos”, esta prerrogativa é válida na medida em que as singularidades de cada lugar demandam mecanismos próprios para estabelecer o código e gravar a lei nos indivíduos. 29

A ênfase atribuída ao corpo no estudo sobre a criminalidade em Mallet demandava também outras compreensões sobre o espaço. Desse modo, esta pesquisa se afasta de qualquer abordagem que tome o espaço enquanto um dado natural, atemporal e estático. Os contatos nem sempre amistosos entre os habitantes apontavam para novas percepções sobre as superfícies malletenses. Os movimentos dos corpos, as interações com a vegetação ou a imprevisibilidade dos crimes tornavam possível romper com a visão imóvel do espaço. Os conflitos, as fúrias e os impulsos dos indivíduos produziram espaços de fluxos e devires, geografias nas quais os códigos se confrontavam com as transgressões e

28

SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de (org.). Políticas do corpo: elementos para uma história das práticas corporais. São Paulo: Estação Liberdade, 2005. p. 12.

29

(28)

onde a própria superfície do corpo era transformada com o desenrolar dos acontecimentos. Nestas perspectivas, longe da fixidez, procuramos compreender os espaços malletenses a partir do movimento, da instabilidade e das polivalências. 30

Para relacionarmos os corpos e os espaços diante do aumento do registro da criminalidade em Mallet, nos anos de 1931 a 1950, a cartografia se tornou um importante conceito a ser instrumentalizado no decorrer de toda esta dissertação. Partindo da perspectiva de que os corpos estiveram diretamente ligados com as mudanças ocorridas nos espaços malletenses, a noção de cartografia nos permite assinalar as rupturas nos espaços geográficos, simbólicos, corporais, entre outros. Diferente da imobilidade de um mapa, Rolnik compreende que a cartografia é produzida pelos movimentos de transformação das paisagens. Não apenas a criminalidade seria marcada pelos deslocamentos corporais que alteravam os espaços, mas partimos da perspectiva de que a própria história das matas de araucárias onde se desenvolveu Mallet foi produzida e atravessada por mudanças entre os espaços de códigos e transgressões, públicos e privados, abertos e fechados, permitidos ou proibidos, reconfigurações estas que podem ser cartografadas pelo historiador. 31

Quanto aos aspectos metodológicos, o objetivo de estudar a criminalidade implica em estabelecermos alguns apontamentos sobre o uso dos processos criminais. É preciso compreender que as fontes jurídicas não foram produzidas com a função de serem utilizadas pelo historiador. Ao invés disso, suas páginas eram resultado de situações específicas, de momentos em que as normas e as leis eram transgredidas ou confrontadas, em que as posições desiguais entre os envolvidos e suas relações com os aparatos governamentais se expressavam através de conflitos. Na escrita apressada do escrivão, os relatos dos corpos dos depoentes e as palavras que emanavam de suas bocas, não eram fruto de encontros espontâneos, pois o arquivo jurídico não comporta estas passividades e calmarias. Arlette Farge já apontava que as vidas narradas nas documentações jurídicas não pediram para serem descritas de tal forma, mas sim foram coagidas devido ao choque

30

Ver: CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. p. 157-197.; DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire.

Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998. p. 140-156.; FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as Heterotopias.

São Paulo: n-1 Edições, 2013.; INGOLD, Tim. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015.; PERLONGHER, Nestor. O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. São Paulo: Brasiliense, 1987.

31

Ver: ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989. p. 15.

(29)

das suas existências com a repressão.32 Resultados de embates de versões, tentativas de acusação ou defesas, o uso dos processos criminais por parte do historiador deve ser associado ao conhecimento das estruturas jurídicas que regiam a organização dos procedimentos. Em entendimentos semelhantes, Bacelar e Grinberg destacam que a documentação criminal é resultado de regras, prazos, estruturas textuais, etapas e outros aspectos que ordenavam a sua ordem e sua materialidade. Portanto, torna-se impossível fazer uso dos processos criminais sem que as estruturas e os códigos jurídicos vigentes sejam minimamente conhecidos. 33

É de fundamental relevância apontar que os procedimentos jurídicos não resultavam em informações límpidas e prontas para que estudássemos a criminalidade registrada em Mallet entre os anos de 1931 e 1950. Foi necessário levar em conta as verdades e mentiras como provisórias, como efeitos das estratégias de convencimento, das astúcias dos depoentes ou das contradições dos relatos. Para Farge, estas especificidades não comprometem a pesquisa historiográfica, pois “talvez o arquivo não diga a verdade, mas ele diz da verdade”. Nas palavras espalhadas dos depoimentos, confissões e testemunhos surgem fragmentos de realidade que, sendo reais ou não, produziram sentido em um período. A leitura dos processos criminais demanda, portanto, um constante trabalho com as verossimilhanças, contradições e incoerências. Farge nos instigou a compreender os relatos do judiciário malletense como uma eclosão das singularidades, como acontecimentos onde se defrontavam os valores de um período, as formas de se relacionar com os espaços ou as maneiras de perceber os corpos e suas sensibilidades. 34

Nas imprecisões dos processos criminais, a variedade de casos de conflitos, trechos e relatos se fez presente em uma dispersão de informações encontradas nas páginas, pastas e caixas do arquivo judiciário. O entendimento da criminalidade como um fenômeno amplo em meio à eclosão de singularidades demandou o uso da história serial como a principal metodologia desta pesquisa. Enquanto a história econômica considera os aspectos numéricos dos documentos, a particularidade da história serial é caracterizada pela análise de um indicador principal – a série – que possibilita que os acontecimentos pouco perceptíveis na dispersão ganhem forma. A partir das séries resultantes dos processos

32

FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009. p. 13.

33

Ver: BACELLAR, Carlos. Uso e mau uso dos arquivos. In. PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes

Históricas. São Paulo: Contexto, 2005. p. 128.; GRINBERG, Keila. A História nos porões dos arquivos

judiciários. In. PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina de (org.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009. p. 128.

34

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criminais dos anos trinta e quarenta, buscamos produzir investigações quantitativas referentes às ondas de mudanças no registro de crimes, nos padrões recorrentes e nas formas como os corpos foram atingidos. Já nas análises qualitativas, procuramos apontar os significados, os sentidos e as singularidades dos crimes e seus gestos registrados em Mallet. 35

A partir da constatação de um problema central – o aumento do registro de crimes que atingiam os corpos –, tornou-se necessário estabelecer um recorte inicial para traçar as características gerais do fenômeno. Fazendo uso das quantificações, as análises dos 320 processos criminais referentes aos anos de 1931 a 1950 foram delimitadas em 128 casos nos quais os corpos foram atingidos, compondo assim a série utilizada nesta pesquisa. Com o número de processos criminais já definidos, a etapa quantitativa passou para a análise qualitativa a fim de extrair de cada documento o que se destacava em relação ao objeto de estudo. Esta série ampla de 128 processos permitiu a produção de séries menores que destacaram as tipologias dos crimes, os locais de ocorrência, as legislações evocadas, a idade e o sexo dos envolvidos, as armas usadas, as profissões ou os vereditos. 36

Além da historia serial como metodologia e dos processos criminais como o principal suporte documental, esta pesquisa também faz uso de informações encontradas em trechos jornalísticos, narrativas de imigrantes, relatórios governamentais produzidos no Estado do Paraná e dados disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Tais documentos se tornam relevantes para a análise dos contatos entre os moradores do município, das condições de emergência da criminalidade, das singularidades dos delitos registrados e da sua comparação com o âmbito estadual.

Esta dissertação está dividida em três capítulos. O primeiro capítulo, intitulado

Anatomias do Espaço, propõe uma análise histórica do desenvolvimento de Mallet em

meio às matas de araucárias. Tomando o corpo, o espaço e o tempo como eixos indissociáveis da história deste município, busca-se problematizar a partir dos

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Mesmo fazendo o uso da estatística, a atenção da história serial não é apenas direcionada para os elementos quantitativos, mas principalmente para constatar as diferenças, crescimentos ou declínios do objeto estudado. Neste sentido, como enfatiza Vovelle, as fontes devem se fazer presentes em um aspecto duplo, seja na abordagem “quantitativa”, que faz uso de indicadores numéricos para atingir uma “massa documental”, ou na visão “qualitativa”, que explora as diversas informações que compõe o estudo de caso. Ver: VOVELLE, Michel. A história e a longa duração. In. NOVAIS, Fernando; SILVA, Rogério da. (org.). Nova História em

perspectiva. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 370-408.

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Como apontam Dosse e Foucault, a história serial permite uma multiplicação dos acontecimentos e das descontinuidades históricas. Mas ela induz as temporalidades diferenciais, uma desordem de temporalidades múltiplas, cada uma detentora de um certo tipo de acontecimento. Ver: DOSSE, François. Renascimento do

acontecimento: um desafio para o historiador: entre Esfinge e Fênix. São Paulo: Unesp, 2013. p. 160.;

Referências

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