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CAPÍTULO 1 ANATOMIAS DOS ESPAÇOS

1.6 Ferramentas da criminalidade: corpo, espaço e tempo

Ao traçarmos um panorama histórico do território e da população que se estabeleceu em Mallet, pudemos observar como os conflitos não estiveram dissociados das vivências produzidas nesses espaços. As tensões emergiram no decorrer das mudanças temporais, nos espaços que eram habitados e produzidos ou no movimento dos corpos dos seus moradores. Depois de cartografarmos as matas, estradas, roças ou casas, percebemos que as ocasiões que se tornavam crimes eram acontecimentos que rompiam com qualquer estabilidade, eram efeitos das ligações entre o corpo, o espaço e o tempo.

Registrar a criminalidade implicava em definir o tempo (quando ocorreu?), e o espaço (onde ocorreu?) de cada crime; tempo e espaço eram categorias indispensáveis para que qualquer tensão ou violência pudesse deixar de ser um conflito costumeiro, resolvido entre os próprios moradores, e adentrasse na racionalidade jurídica e suas penas. Emmanuel Le Roy Ladurie se utilizou do termo “ferramentas” para designar o tempo e o espaço como as categorias de organização mental dos montailoneses do século XIV.313 Nos apropriamos desta expressão para afirmarmos que o corpo estava ligado com o tempo e o espaço, e que essas categorias compuseram as ferramentas da criminalidade e seus registros em Mallet, nas décadas de 1930 e 1940. Desde o ato criminoso até o julgamento final, os corpos descritos nos processos criminais foram atravessados por diferentes noções de tempo e de espaço. O tópico final deste capítulo busca adentrar nas modalidades da relação tempo-espaço e corpo para que possamos situar os contornos do fenômeno da criminalidade nesse município das matas de araucárias.

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Primeiramente, muitos dos crimes ocorridos em Mallet eram marcados por temporalidades próprias nas duas décadas em que nos detemos. Vimos que as tensões poderiam surgir gradualmente da proximidade espacial, das rivalidades ou da honra desrespeitada. O historiador Sidney Chalhoulb afirma que os conflitos seguiam estágios que, por sua vez, obedeciam a códigos internos que os orientavam, excluindo, portanto, o caráter inesperado do crime.314 Concordamos, apenas em parte, com o que propõe esse historiador. Apesar de sabermos da necessidade de se levar em conta que as brigas e desavenças seguiam certas etapas de tempo até o ponto de explosão, não é possível ignorar que muitos dos crimes ocorridos em Mallet também irrompiam sem nenhuma preparação anterior, sem nenhum estágio que os precedessem. De que maneira colocaríamos em etapas os acontecimentos violentos que eclodiam sem qualquer sequência?

Por mais que a ocorrência de conflitos e tensões fosse indissociável das vivências, a transformação destes momentos e atos em crimes implicava na necessidade das autoridades em buscar antecedentes e explicações que contextualizassem a infração. É necessário compreendermos que os processos criminais apresentam o que Arlette Farge chamou de “mundo fragmentado”, uma série de estilhaços, perguntas, imprecisões e instabilidades com um fio condutor pouco visível, pois “[...] o acontecimento histórico está também na eclosão de singularidades tão contraditórias quanto sutis e às vezes intempestivas”.315

O que percebemos em Mallet, é que a fim de “domar”, explicar e situar este caráter acontecimental dos crimes, as anotações dos escrivães e os depoimentos das testemunhas fizeram usos de diferentes modalidades de tempo. Convém, agora, adentremos com maior intensidade nestas temporalidades para que possamos entender quais categorias tentavam ordenar estes acontecimentos conflituosos no discurso jurídico.

Tomemos como exemplo os casos de Tadeu e Justina, ocorridos em 1936. Primeiramente é necessário observar que ambos os processos criminais obedeciam a uma sequência temporal estabelecida e cifrada pelo Código de Processo Criminal do Estado do Paraná. Atuando enquanto instância que definia os prazos, o andamento e as normas dos processos, o Código do Processo Criminal do Estado do Paraná atribuiu temporalidades próprias aos crimes referentes aos dois malletenses. Por exemplo, segundo o artigo 47: “Todas as diligências do inquérito devem ser feitas no prazo improrrogável de cinco dias,

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Ver: CHALHOULB, Sidney. Trabalho, lar e botequim. p. 310.

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sob pena de multa, imposta pelo Juiz, a razão de dez mil réis, por dia de excesso”.316 A duração do processo em todas as suas etapas, do inquérito ao julgamento, deveria ocorrer em uma sequência pré-estabelecida.

No crime de Justina, o processo criminal apresentou a duração de dezesseis meses entre o inquérito e o julgamento; já para Tadeu o intervalo foi menor, totalizando um período de onze meses. Como discorremos anteriormente, no decorrer da década de 1930, o Termo de Mallet deveria reportar seus processos criminais a Comarca de União da Vitória que autorizava ou não o prosseguimento das investigações. Mesmo seguindo os prazos definidos pelo Código de Processo Criminal, a apuração e julgamento de muitos crimes se estendiam por um longo tempo. A prorrogação dos prazos era comum pela demora da análise dos juízes e pelo deslocamento dos processos criminais nos 70 quilômetros que separavam o Termo de Mallet da Comarca de União da Vitória. 317

Delimitado por datas precisas, o exercício jurídico só poderia ocorrer a partir dos depoimentos de testemunhas que também apresentavam em suas versões diferentes tentativas de enquadrar o acontecimento. Diante das testemunhas, o tempo ordenado das autoridades jurídicas ganhava novas delimitações com outras formas de dividir e se relacionar com a temporalidade. Habitual para o escrivão, a linguagem cifrada das datas, meses, anos e horas passava a ser atravessada por expressões imprecisas como “há muito tempo”, “certa vez atrás” ou “um tempo depois”. Nestes diferentes relatos, muitos dos depoentes e testemunhas indicavam formas próprias de narrar o tempo de ocorrência dos conflitos, fossem eles em períodos próximos ou distantes. Predominante entre os representantes do judiciário, o tempo cifrado das horas, dias e anos poderia ser usado por parte da população, mas essas menções não eram prevalecentes, pois este modo numeral de ordenar o tempo era contrastado por várias outras noções que organizavam a rotina dos malletenses nos anos trinta e quarenta.

Em um município no qual a religião exercia um importante papel, pode-se perceber que muitas das referências temporais utilizadas para situar os crimes eram advindas da religião. Uma polonesa de nome Faustina não sabia a data precisa em que presenciou um

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Ver: SECRETARIA GERAL DO ESTADO DO PARANÁ. Código de Processo Criminal do Estado do

Paraná. Curitiba: Tipografia A República, 1920. p. 12.

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Esta relação jurídica entre Mallet e União da Vitória permaneceu vigente no decorrer de toda a década de 1930 até o ano de 1943, quando Mallet tornou-se Comarca. Como veremos no segundo capítulo desta dissertação, as mudanças nas estruturas judiciárias de Mallet ocorreram no mesmo período em que a criminalidade atingiu seus maiores índices tendo a violência física como tipologia predominante dos crimes daquele município.

conflito, lembrou apenas que se dera na “volta de um terço”. O calendário religioso e seus dias festivos resultavam em descrições como as de José que contou que “na Semana Santa do ano de 1944, à noite, penetrou no quarto”, ou Vladimir, que narrou que “era véspera de Natal e ele estava na casa comercial”. Neste lugar em que os grupos étnicos possuíam calendários religiosos diferentes, era comum que muitos moradores delimitassem o tempo a partir das celebrações, jejuns e penitências de seu calendário religioso, produzindo assim distintas temporalidades. 318

Períodos religiosos como o da quaresma ou da Semana Santa eram demarcados de modo perceptível pela mudança na alimentação, já que a prática do jejum impedia o consumo da carne e do leite. Estas mudanças alimentares eram indicadoras do tempo religioso, mas o ato de comer implicava em uma temporalidade própria para muitos habitantes de Mallet. Mariano “na hora do almoço” feriu Otília pisando no corpo da mesma por diversas vezes. Jacó trabalhava em suas terras quando escutou alguns gritos, “disse não saber os horários, mas era antes do almoço”. Parte da rotina dos malletenses estava demarcada pelas horas das refeições, eram naqueles momentos importantes que os membros da família reuniam-se nas casas, que as conversas fluíam e que as desavenças poderiam ocorrer. 319

Fruto de ocasiões de medo diante das autoridades, os depoimentos das testemunhas ou dos envolvidos eram moldados pelo ambiente nem um pouco acolhedor das delegacias e subdelegacias, mas também pela linguagem oficial da narrativa jurídica. Contudo, a oralidade provoca quebras, a evocação de tempos imprecisos, religiosos ou tempos das refeições rompia com o modo habitual com que a lei oficial ordenava os relatos dos acontecimentos. A dessemelhança deve ser posta como primeira e única, como propõe Farge, a presença de categorias temporais pouco frequentes nos textos oficiais faz parte do acontecimento, o torna singular.320 O fato desses fragmentos de oralidade terem sido escritos por aqueles corpos assustados denota o fracasso da linguagem jurídica em abranger tudo o que se relacionava com os conflitos. Nas falas inseguras, medrosas e sofridas daqueles corpos, nota-se que a habitual cronologia dos dias, datas e horas se dissolvia e ganhava outras formas no discurso jurídico produzido naquele município. Não era apenas a sequência de duração de um processo criminal, os períodos de rezas ou de

318

Processo-Crime, Mallet, 1944, nº 267, Caixa 15, CEDOC/I. fls. 58; Processo-Crime, Mallet, 1945, nº 284, Caixa 16, CEDOC/I. fls. 1.; Processo-Crime, Mallet, 1944, nº 1882, Caixa 17, CEDOC/I. fls. 13.

319

Processo-Crime, Mallet, 1944, nº 267, Caixa 15, CEDOC/I. fls. 2; 39.

320

alimentação que produziam velocidades distintas de tempo – o que Deleuze nomeou de multiplicidade de tempos – mas a interação constante com os astros, a terra e o clima garantiam referências temporais próprias no cotidiano rural de Mallet. 321

Os relatos sobre a criminalidade poderiam ser ordenados por um tempo definido pelo sol, na medida em que a posição do astro resultava em divisões específicas do dia. Em vez das oito horas ou das dezessete horas, a vida de muitos moradores era ordenada pelo “sol alto” ou “sol baixo”. A escrita apressada do escrivão não conseguiu contornar a fala da brasileira Dorotéia quando ela descreveu que, “como não sabia ver as horas, disse que o sol estava baixinho”. O mesmo deve ter se sucedido em frases como: “no por do sol, retirou-se com a esposa da casa do amigo” ou, “quando o sol baixou voltou para casa”.322 Nestes breves fragmentos da oralidade – corpo – podemos observar que a lógica das horas que ordenava os momentos dos crimes desaparecia diante do tempo solar.

Enquanto alguns malletenses olhavam para o céu a fim de demarcarem o tempo com a posição do sol, outros por sua vez, voltavam os olhos para a terra e seus períodos de plantios e colheitas. A busca de localizar temporalmente os eventos tornavam frequentes afirmações como: “no tempo da malhança de trigo”, ou ainda, “na época de plantar batatinhas”. A agricultura naquele município rural possibilitava a subsistência dos habitantes, mas também os registros da criminalidade implicaram em momentos que eram narrados e localizados no tempo a partir de referenciais agrícolas, onde, portanto, espaço e tempo se encontravam, o tempo aparecia espacializado. 323

Entre o crescimento dos grãos e tubérculos, era o trigo que ocupava a centralidade das indicações temporais de diversos conflitos. Já dizia a lavradora idosa Halyna em 1938: “no tempo da colheita de trigo [...] Mateus alegou pertencer a ele toda a colheita”.324

O tempo podia ser marcado pelos períodos de plantar, capinar ou cavar, ou pelos momentos para colher, moer ou desenterrar. Articular os dias com o crescimento das plantas ou com o período específico de seu plantio garantiria em muitos casos o sucesso da colheita.

Entre os tempos do calendário, da agricultura, da religião ou do clima – atravessamentos caleidoscópios e fractais de múltiplas temporalidades –, existiam as recorrentes expressões vagas: “instantes atrás”, “meses passados” ou “anos antigos”. Em

321

Ver: DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. São Paulo: Edições 34, 1999. p. 63.

322

Processo-Crime, Mallet, 1942, nº 237, Caixa 13, CEDOC/I. fls. 10.; Processo-Crime, Mallet, 1947, nº 330, Caixa 17, CEDOC/I. fls. 18; Processo-Crime, Mallet, 1949, nº 377, Caixa 19, CEDOC/I. fls. 10.

323

Processo-Crime, Mallet, 1940, s/nº, Caixa 10, CEDOC/I. fls. 12.; Processo-Crime, Mallet, 1938, nº 148, Caixa 09, CEDOC/I. fls. 12.

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meio às narrativas de conflitos, desavenças e mortes, os malletenses constituíam uma dinâmica semelhante a qual Le Roy Ladurie nomeou como tempo flutuante, uma espécie de temporalidade incerta que ordenava os depoimentos de acusados e testemunhas. Nas imprecisões da memória ou mesmo no desconhecimento dos números e datas, esses tempos flutuantes desempenhavam a função de situar os conflitos e crimes relatados pelos moradores. 325

Se as tentativas de situar os crimes implicavam em percepções do tempo múltiplas e flutuantes entre os malletenses, longe de estar excluído, o corpo ocupava um lugar especial nessas percepções. Primeiramente, o corpo estava ligado ao tempo de vida dos indivíduos. O modo como eram categorizadas as idades nos processos criminais denotavam singularidades físicas específicas. Afirmar que alguém era um menor de idade, um adulto ou um idoso era definir indivíduos a partir de aspectos como a estatura, a força física, a fragilidade dos membros ou mesmo a cor dos cabelos. Com o avançar dos anos, os malletenses assinalavam nos corpos as transformações decorrentes das idades e das fases da vida. Nestes casos, as marcas e o desenvolvimento de certos órgãos também poderiam ser utilizados como medidas ou indicadores temporais. No ano de 1936, a moradora da Linha Três de nome Teresa viu que seu vizinho Alcides tentou beijar sua filha, imediatamente foi avisar a esposa do acusado sobre os comportamentos do marido. Após dar a notícia, a polonesa se dirigiu à delegacia onde afirmou que sua filha era criança, “nem seios desenvolvidos têm”. 326

O tamanho dos seios abria margem para que em dadas ocasiões a fisiologia humana servisse de marcador temporal dos acontecimentos pouco amistosos, outras situações como o aumento da barriga na gravidez ou a aproximação do parto também estariam ligados a este “tempo corporal”, mas podemos avançar ainda mais nestes aspectos. No transcorrer das desavenças em Mallet, os ferimentos resultantes dos conflitos implicavam em um período de recuperação e cicatrização, o que também podia configurar novas marcações temporais.

O tempo se inscrevia nos corpos ao serem marcados por cicatrizes ou ferimentos, um corte leve poderia se curar em poucos dias, já uma facada profunda demandava algumas semanas ou meses. Casos como o do agricultor Josmar, que fraturou a perna em uma briga, resultaram em um período de incapacidade de 60 dias; já o brasileiro Adailton,

325

Ver: LE ROY LADURIE, Emmanuel. Montaillou. p. 351.

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após levar um tiro, teve o seu ferimento cicatrizado após dois meses, restando-lhe apenas o sinal.327 O tempo de cicatrização poderia ser utilizado como marcador temporal após a ocorrência dos crimes. Vejamos o exemplo de Cleide, vítima de estupro, em 1933:

Os retalhos, ou melhor, as lesões consecutivas já estavam cicatrizadas, constituindo as chamadas carúnculas mirtiformes. Tudo isso leva-nos a crer que a rotura da membrana data de dois a três meses aproximadamente, época já suficientemente para se operar a cicatrização de todos os retalhos. 328

Por características como a tonalidade da pele ou o nível de melhora dos ferimentos, as marcas presentes na carne de Cleide sinalizaram o tempo na leitura dos peritos médicos. É necessário compreendermos que a cicatrização dos tecidos estava ligada a instabilidade deste “tempo corporal”. Eram diversos os fatores que poderiam acelerar o período de melhora de um ferimento: a capacidade fisiológica de recuperação de cada pessoa e o uso de remédios no processo de cura. Por outro lado, não era apenas de recuperação que o tempo corporal era feito, o contrário também era válido e frequente, por vezes o ferimento de um crime piorava, a cicatrização desaparecia e o indivíduo se aniquilava.

Ulisses acabou por ser esfaqueado após tentar assassinar Jorge em 1949. Em gritos, o ucraniano correu para a parte de trás da residência e se sentou debaixo de uma ameixeira com a coluna encostada no tronco. Com o peito perfurado, Ulisses voltou sua cabeça para cima e vomitou muito. As pessoas que se reuniram para ver o acontecimento perguntaram se o ucraniano não queria alguma coisa. Em meio aos vômitos que escorriam por sua boca Ulisses apenas respondeu: “Estou morrendo, não tem mais prosa comigo”, expirando minutos depois.329 Diferente do falecimento de Ulisses, as descrições dos crimes assinalavam que nem sempre a morte era rápida. Após ser espancada pelo marido, em 1934, Cláudia agonizou por três dias, em sua casa, até morrer, ou o idoso Meron ainda sofreu por dois dias devido aos ferimentos provocados pelo filho, em sua residência, no ano de 1932.330 O tempo corporal incluía tanto a vida como a morte em suas várias dimensões. A ação do tempo na carne implicava na criação e na destruição constante dos próprios corpos e de suas temporalidades. Entre as rupturas e imprevisibilidades, o corpo era simultaneamente a gênese e a catástrofe do tempo. 331

327

Ver: Processo-Crime, Mallet, 1948, nº 369, Caixa 19, CEDOC/I. fls. 08.; Processo-Crime, Mallet, 1941, nº 223, Caixa 04, CEDOC/I. fls. 09.

328

Processo-Crime, Mallet, 1933, nº 60, Caixa 05, CEDOC/I. fls. 09.

329

Processo-Crime, Mallet, 1949, nº 2054, Caixa 19, CEDOC/I. fls. 27.

330

Processo-Crime, Mallet, 1937, nº 3668, Caixa 07, CEDOC/I. fls. 2-6.; Processo-Crime, Mallet, 1932, nº 41, Caixa 04, CEDOC/I. fls. 29

331

Podemos compreender que corpos narrados nos processos criminais que analisamos comportavam a gênese e a catástrofe do tempo. Um corpo ferido em brigas, agressões e estupros poderia se recuperar ou se

Os sinais do estupro de Cleide, as machucaduras de Josmar e Adailton ou as mortes de Ulisses, Cláudia e Meron não compunham apenas as referências instáveis do tempo inscritas nos corpos dos malletenses. Como veremos nos próximos capítulos, a criminalidade instaurava também uma mudança no espaço das carnes e seus membros. Após os estupros, as facadas e os tiros as superfícies dos corpos eram transformadas, ganhavam novas marcas mudando sua forma. Era na ocorrência do crime que as “ferramentas” tempo e espaço se encontravam com os corpos produzindo os acontecimentos.

É importante considerar que era a partir do corpo que muitos habitantes de Mallet estabeleciam medidas espaciais. Distâncias, comprimentos, extensões das superfícies corporais, ou não, envolvidas nos crimes, obedeciam a marcadores retirados de partes do corpo. A faca utilizada para assassinar o ucraniano Paulo possuía seis polegadas; o corpo foi enterrado a cinco palmos de profundidade; as pessoas estavam a cinco passos de distância. Era com partes do corpo, como: dedos, mãos, pés, braços, pernas que muitos malletenses demarcavam as medidas dos espaços, definiam se eles eram pequenos ou grandes, elevados ou profundos. O uso das extensões corporais era um modo recorrente de dar proporção e amplitude às coisas, mas o corpo também era fundamental para que se afirmassem as posições importantes nas cenas do crime. Ao dizerem “em frente à”, “ao lado de”, “perto” ou “longe”, os habitantes de Mallet se referiam aos corpos como o ponto de referência para a localização das pessoas e coisas nos espaços, entre 1931 a 1950. 332

Mesmo que certos lugares de Mallet fossem nomeados como Linha Norte ou Oeste Quatro, eram inexistentes entre os moradores as referências a pontos cardeais como modo de localização e distância. Muitos espaços e seus percursos eram referenciados por construções, bares ou pelo local de destino, resultando em frases como: “passando pela estrada em frente à casa comercial”; “na estrada que vai para Vera Guarani” ou “perto do

desintegrar por completo. Influenciado pelo pensamento deleuzeano Kuniichi afirmou que “o corpo é essa ruptura inqualificável. Ele é esse estranho começo e recomeço que pode colocar em questão um pouco de tudo, o pensamento, a narração, a significação, a comunicação, a história: ele introduz uma catástrofe n o tempo que flui. O corpo como ruptura implica um aspecto partido do tempo, da história”. KUNIICHI, Uno. A

gênese de um corpo desconhecido. São Paulo: n-1 Edições, 2014. p. 51. Percepções correlatas sobre a

ruptura entre o tempo e o corpo podem ser aprofundadas em: BUTLER, Judith. Quadros de Guerra. p. 84- 85.; MALABOU, Catherine. Ontologia do acidente: ensaio sobre a plasticidade destrutiva. Florianópolis: