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CAPÍTULO 1 ANATOMIAS DOS ESPAÇOS

1.2 As estradas, as roças e a sede do município rural

Quais superfícies preenchiam o território de Mallet? De que maneira a vila ou pequena cidade estava ligada com os outros espaços do município? Quais conflitos e tensões emergiram dessas mudanças no espaço? Para que possamos compreender os crimes ocorridos nas superfícies de Mallet se torna necessário destacar que nas décadas de

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ibidem., p. 32.

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1930 e 1940, a lógica das linhas e vicinais ainda prosseguia enquanto uma forma de ordenar o território. Por outro lado, as estradas que compunham aqueles traçados apresentavam diferenças das que haviam sido abertas pelos primeiros imigrantes no início do século XX. Singularizadas por aspectos como a largura, a responsabilidade administrativa e principalmente os itinerantes, as estradas dos anos trinta e quarenta também se distinguiam por possuírem duas grandes categorias: as estradas gerais e estradas municipais.

As estradas gerais consistiam em duas vias de ligação entre Mallet e os municípios próximos do Rio Iguaçu com o restante do Estado. A primeira destas estradas provinha do município vizinho de União da Vitória, cruzava todo o território de Mallet passando pelos distritos de Paulo Frontin, Dorizon até a sede municipal. Ao atravessar a vila de Mallet, a primeira estrada geral tinha como rumo os municípios de Rio Azul (22 km) e Irati (61 km). Já a segunda estrada geral também provinha de União da Vitória, mas seguia na direção leste através da Colônia Vera Guarani. Aproximando-se do distrito de Rio Claro o trajeto era direcionado para o município de São Mateus do Sul. 79

Traçando a ligação entre diversos municípios e de importância fundamental no deslocamento de produtos agrícolas para as estações ferroviárias de Mallet e do distrito de Paulo Frontin, as estradas gerais tinham o seu leito conservado com os recursos e investimentos do Governo Estadual. Parte desses cuidados pode ser observada, por exemplo, no restauro da estrada geral entre Mallet e São Mateus ocorrido em 1934, quando se depreendeu uma quantia de 1:801$732 para reparar uma distância de 100 quilômetros ao longo dos dois municípios.80 Assim como a responsabilidade estadual, outro aspecto singular das estradas gerais consistia em sua largura de sete metros que permitia o cruzamento simultâneo entre duas carroças carregadas de produtos agrícolas.81 Atravessando múltiplas direções do território malletense, ambas as estradas não poderiam ser evitadas por qualquer habitante das localidades, distritos ou vicinais que procurasse se deslocar pelas áreas rurais do município, como podemos perceber no mapa abaixo.

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INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Sinopse estatística do Município de

Mallet. p. 29.

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PARANÁ. Relatório apresentado ao Exmo. Snr. Manoel Ribas governador do Estado do Paraná pelo

Secretário de Estado dos Negócios de Fazenda e Obras Públicas Othon Mäder em junho de 1935.

Curitiba. 1935. p. 353.

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Ver: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Sinopse estatística do Município

Figura 5: Mapa do município de Mallet com a localização das estradas gerais, linhas e vicinais dos envolvidos nos crimes de 1931 a 1950.

Mapa produzido pela sobreposição das informações dos seguintes materiais: FOETSCH, Alcimara Aparecida. Paisagem, Cultura e Identidade: Os poloneses em Rio Claro do Sul. 2006, 111 f. Dissertação (Mestrado em Geografia). Universidade Federal do Paraná, Curitiba. p. 41.; HORBATIUK, Paulo.

Imigração ucraniana no Paraná. p. 94-95.; Mapa do município de Mallet, 1947. Departamento de

Geografia, Terras e Colonização. 25x45 cm. Curitiba. (Acervo do Museu Paranaense). Processos-Crime do Fundo Judiciário de Mallet, Mallet, 1931 a 1950. (Centro de Documentação e Memória da UNICENTRO- Irati).; SIEKLICKI, Mário Aleixo; GRENTESKI, Franciele Alessandra. Inventário Turístico Municipal de

Mallet. Prefeitura Municipal de Mallet, 2002.; WOUK, Miguel. Estudo etnográfico – linguístico da comunidade ucraína de Dorizon. p. 16.

Mesmo com suas grandes extensões, as duas estradas gerais representavam uma parcela mínima diante das muitas outras estradas que Mallet possuía entre 1931 a 1950. Segundo o levantamento realizado no ano de 1948, as autoridades municipais eram responsáveis por 44 estradas que conectavam as diferentes localidades, linhas e vicinais, mas havia outras tantas que ligavam as lavouras, propriedades ou casas que não eram consideradas em tais dados. A malha quase capilar daqueles caminhos apresentava uma largura média de três a cinco metros, variações que denotavam níveis distintos de importância, pois uma estrada que ligava dois distritos era de relevância muito superior se comparada à outra estrada que seguia por um vicinal. 82

Sem cobertura alguma além do próprio solo, as características das estradas municipais mudavam conforme a topografia, principalmente as ondulações do relevo. As vias íngremes eram chamadas de “topes” pelos malletenses. As estradas com estes topes proporcionavam duas experiências aos que seguiam a pé pelo trajeto: as descidas com passos rápidos, dado ao grau de inclinação, e consequentemente, as subidas vagarosas e cansativas com andar lento e cuidadoso, evitando quedas. Como muitas das estradas foram construídas em locais de solo acidentado, poderiam ocorrer algumas elevações nas laterais, chamadas de barrancos, ou buracos por onde a água da chuva era escoada, as valetas. 83

No que tange às distâncias, pode-se afirmar que prevalecia a variedade nas estradas dentro dos limites municipais. Existiam percursos curtos: de Mallet até a Linha Oeste Três, pertencente ao distrito de Rio Claro, bastava percorrer uma distância de dois quilômetros; já para se chegar ao sul do município, no lugar de nome Chapéu do Sol, era necessário um deslocamento de 61 quilômetros de estrada, um trajeto certamente difícil de ser feito nas carroças do período.84 Se estas diferentes estradas consistiam nas vias de circulação que atravessavam as matas de araucárias, as plantações e as localidades, quem eram os seus itinerantes? Como a vida, os corpos e as tensões se ligavam a tais caminhos?

Nas duas décadas de nossa pesquisa, muitos dos malletenses percorriam as estradas a pé, em caminhadas que poderiam seguir poucos metros rumo à casa de um vizinho ou até dezenas de quilômetros em direção à vila de Mallet. Em passos que ganhavam ritmo conforme as energias e disposição do próprio corpo, a duração dos diferentes trajetos

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ibidem., loc. cit.

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Ver: Processo-Crime, Mallet, 1948, nº 369, Caixa 19, CEDOC/I. fls. 11; Processo-Crime, Mallet, 1948, nº 6012, Caixa 16, CEDOC/I. fls. 13.

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Ver: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Sinopse estatística do Município

poderia variar conforme a velocidade e a aptidão física do transeunte, ou conforme a situação climática e a topografia do percurso, que podia envolver os “topes” e suas difíceis subidas e descidas. Seguir a pé pela estrada proporcionava o encontro com vizinhos e parentes, ocasionando viagens por vezes repletas de fofocas e conversas, pois a publicidade da estrada instigava a se falar de assuntos tidos como impróprios no espaço residencial.

Em muitas ocasiões, o movimento corporal da caminhada era ultrapassado rapidamente pelos deslocamentos de humanos montados em cavalos ou burros. Utilizados não apenas na montaria, mas também no carregamento de produtos e na tração de carroças, estes animais estavam intimamente ligados à vida daqueles habitantes. Do uso de cavalos e burros surgiam diferentes atividades comerciais, desde sua venda e troca entre os moradores, o transporte de pesadas compras realizadas em algum comércio ou o desenvolvimento de serviços exercidos pelos chamados carroceiros, indivíduos que conduziam cargas com suas carroças mediante o pagamento.

Em busca deste serviço, em agosto de 1943, o lavrador Mário85, residente em Linha Oeste Uma, relatou que próximo ao meio dia seguiu para a casa de um vizinho, “pedia para alugar sua carroça para conduzir palha de centeio e que Ládio [filho do vizinho] fosse ser o carroceiro [grifo do autor]”.86 O vizinho, que era dono da carroça, acabou por aceitar, enquanto seu filho Ládio aproveitou a oportunidade para oferecer a Mário um dos cavalos à venda. Concordando com a ideia, Mário seguiu até a casa de Ládio para ver o animal, colocaram-no na carroça e para experimentarem seguiram levando a carga até a vila de Mallet. O comportamento do animal na estrada não agradou a Mário. Sabemos que a carga de palha foi entregue de acordo com o trato, já a venda do cavalo não obteve o mesmo sucesso.

Grande parte da circulação dos produtos do município era fruto do trabalho de carroceiros e de seus deslocamentos nas estradas. A possibilidade de comercializar gêneros alimentícios como ovos e manteiga ou o transporte de cargas volumosas como madeira e grãos resultavam da força dos cavalos e burros. Nos períodos de colheita do trigo ou da erva-mate, a atividade de carroceiro garantia a subsistência de muitos moradores, que passaram a ter a agricultura como atividade secundária.

Muitas vezes cobertas com capas, chamadas de toldo, as carroças protegiam a carga ou as pessoas transportadas do calor ou da umidade. As ondulações do relevo das estradas

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Todos os nomes dos envolvidos e das testemunhas dos crimes foram substituídos por pseudônimos.

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demandava a produção de carroças de madeira reforçadas com ligações metálicas para evitar a desintegração do veículo em meio aos buracos e a instabilidade do trajeto. A circulação destes veículos era ideal para os terrenos planos ou com ondulações pouco acentuadas, já que suas rodas não eram adequadas para rodarem em locais de serras e pedregulhos. Miguel Wouk ressaltou que, “na região serrana, [principalmente em áreas como a Serra do Tigre e a Serra da Esperança], onde as estradas são muito íngremes, abertas em terreno pedregoso, o transporte ideal é o do cargueiro em lombo de burro”. 87

Seja exclusivamente no transporte de pessoas, ou como força motriz de cargueiros e carroças, os cavalos e burros garantiam a rapidez e a locomoção nas estradas gerais e municipais. O censo de 1934 indicava a existência de 12 veículos movidos a motor e 925 carroças em todo o território de Mallet. O crescimento e a prevalência da tração animal podem ser observados ao final da década de 1940, com outro censo realizado em 1948, onde os 58 veículos movidos a motor eram contrastados com as 1867 carroças.88 Com presença mínima, os carros movidos a motor estavam restritos a uma minoria dos moradores de Mallet e seus três distritos. Para a população majoritariamente composta por agricultores, a capacidade de adaptação dos animais aos problemas daqueles trajetos poderia ser superior à dos veículos motorizados.

Movimentadas de vários modos, as estradas gerais apresentavam aspectos comuns com as estradas municipais, de modo que em ambas as vias as autoridades buscavam meios para diminuírem os problemas de conservação das estradas. Uma das soluções havia sido a designação de zeladores que tapavam os buracos com terra e arrumavam as valetas para o escoamento da água da chuva.89 Apesar desta presença de zeladores nas estradas mais importantes, era prevalecente a falta de revestimentos em muitos caminhos que atravessavam Mallet. Distante da estabilidade, a terra natural que cobria as extensões daquelas estradas modificava radicalmente a textura no contato com as chuvas. Poucos minutos de garoa transformavam os trajetos poeirentos em lamaçais que tornavam perigosos os deslocamentos com cavalos, carroças ou com os raros veículos motorizados. Em meio à neblina que surgia após as chuvas encobrindo a visibilidade do percurso, e a fim de serem evitados os escorregões e quedas, as estradas lamacentas exigiam das

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Ver: WOUK, Miguel. Estudo etnográfico – linguístico da comunidade ucraína de Dorizon. p. 56.

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Ver: PARANÁ. Relatório apresentado ao Exmo. Snr. Manoel Ribas governador do Estado do Paraná

pelo Secretário de Estado dos Negócios de Fazenda e Obras Públicas Othon Mäder em junho de 1935.

Curitiba. 1935. p. 719.; INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Sinopse

estatística do Município de Mallet. p. 03.

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mulheres e homens malletenses o exercício de retirada dos calçados e a ativação da sensibilidade tátil do corpo. Com os pés nus, desprendidos de qualquer adereço, as pessoas movimentavam-se cuidadosamente pelo solo argiloso gelado, uma experiência certamente dolorosa quando as chuvas ocorriam no inverno.

Com sol ou chuva, as diversas estradas – espaços de movimento por excelência – não eram percorridas apenas com fins comerciais. O fato de um malletense percorrer a distância entre a sua residência e uma casa comercial, ou vice versa, poderia resultar em muitos outros deslocamentos que não estavam ligados com a finalidade de compra. Um mesmo trajeto comercial poderia ser atravessado por percursos amorosos; por viagens dionisíacas provocadas pelo álcool; pelas andanças de conversas entre amigos; por locais não vistos com bons olhos e, principalmente, por caminhadas sangrentas, onde os conflitos eclodiam. Superfícies que propiciavam o contato nem sempre amistosos entre os corpos, as estradas malletenses eram espaços que se produziam por cruzamentos de móveis, termo utilizado por Michel de Certeau para enfatizar as relações de coexistência, a variedade de sentidos e a prática humana que dava movimento para as estradas malletenses. 90

Dentre as andanças nem sempre pacíficas dos dias e das noites, podemos cartografar alguns dos cruzamentos móveis presentes naqueles trajetos. Começaremos pelos deslocamentos diurnos, em especial pela manhã do dia 26 de junho de 1948, quando o brasileiro Joaquim saiu de casa rumo à Prefeitura de Mallet. Morador de Vera Cruz, no norte do município, o lavrador caminhou a pé pelos 10 quilômetros de estrada geral (Mallet - Rio Azul) que ligavam o local onde vivia com a sede municipal. Ao chegar em Mallet, Joaquim seguiu rumo à prefeitura, onde seriam distribuídas as sementes de trigo aos lavradores.91 Naquele mesmo dia, o também lavrador Felício saiu com sua carroça de Santa Cruz, outro lugarejo situado no norte do município e rumou para Mallet, onde precisava fazer suas compras e igualmente buscava algumas sementes de trigo. Não

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Podemos afirmar que Certeau elaborou uma perspectiva espacializante marcada pela ação humana e pelo movimento. Diferente da noção de lugar, que pressupõe a ordem e a estabilidade, Certeau entendeu o espaço como efeito de “[...] vetores de direção, quantidades de velocidade e a variável tempo. O espaço é o cruzamento de móveis. É de certo modo animado pelo conjunto dos movimentos que ai se desdobram [...] em suma, o espaço é um lugar praticado”. CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. p. 202.

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A distribuição de sacos contendo grãos de trigo e cevada aos lavradores ocorria desde o período imigratório, tal como se observa nos relatórios de 1896. Com as sementes compradas pelo Governo do Paraná nas terras do Rio da Prata, as autoridades buscavam incentivar o cultivo de grãos e a produção moageira no estado. Ver: PARANÁ. Relatório apresentado ao Dr. Francisco Xavier da Silva,

governador do Estado do Paraná por Dr. João Baptista da Costa Carvalho Filho Secretário de Obras Públicas e Colonização em 28 de outubro de 1895. Corityba: Impressora Paranaense, 1896. p. 40.

sabemos ao certo se Felício chegou a conseguir as suas sementes, pois no caso de Joaquim, mesmo após os dez quilômetros de caminhada, o resultado foi negativo. 92

Consta no relato produzido pelo escrivão, que Joaquim entrou em uma das casas comerciais e quando já estava para regressar encontrou-se com o vizinho de nome Ari que lhe ofereceu uma carona. Joaquim aceitou o convite, passando alguns momentos no estabelecimento até tomarem o rumo em direção às suas casas. No quinto quilômetro da estrada geral, as margens do Rio Braço do Potinga, ficava um ponto de parada para dar água aos animais. Por coincidência, ali estava Felício, que descansava seus cavalos por alguns instantes. Os poucos minutos de encontro das carroças foram suficientes para o surgimento de uma discussão entre Joaquim e Felício sobre questões financeiras resultantes da construção de uma escola para as crianças. Após as discordâncias, Joaquim pensou que Felício estivesse alcoolizado e por isso pediu que o mesmo seguisse adiante com a sua carroça, o que sucedeu. Felício instigou seus cavalos a andarem rapidamente enquanto Ari e Joaquim seguiram em um ritmo lento. A diferença na velocidade logo tornou as duas carroças distanciadas. 93

Após sair com sua carroça rapidamente, Felício afastou-se a ponto de alcançar Lívio, um terceiro carroceiro que seguia adiante e que carregava consigo uma garrafa de cachaça. Como já estava relativamente embriagado, Felício não se recusou a tomar “um trago” com Lívio na beira da estrada. Enquanto isso, Joaquim e Ari, que estavam em um ritmo lento, seguiam o caminho quando se depararam com as duas carroças paradas no meio da estrada impedindo o trajeto. Era necessário parar o veículo.

Segundo o depoimento dado por Joaquim, Felício estava muito alcoolizado e assim que o viu descer da carroça empunhou uma faca e começou a dizer ofensas dando início a uma luta corporal entre os dois lavradores. Buscando uma forma de defesa, Joaquim derrubou Felício no chão da estrada jogando a faca para longe e a luta prosseguiu tendo a fratura da perna de Felício como resultado final. Os gritos de Felício, que ecoavam pela estrada, logo foram encobertos pelo barulho de metais de uma quarta carroça que se aproximava da cena. Era o alfaiate Mariano. Parado pelos demais envolvidos, Mariano recebeu a quantia de quinze cruzeiros para levar Felício deitado em sua carroça até o hospital, enquanto isso Joaquim e Ari chegaram a suas respectivas casas. 94

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Processo-Crime, Mallet, 1948, nº 369, Caixa 19, CEDOC/I. fls. 07; 22.

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ibidem., loc. cit.

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Na situação de conflito que narramos se explicita o fato de que os deslocamentos diurnos pela estrada comportavam muitos trajetos e atendiam a diferentes finalidades. Enquanto para alguns o objetivo era receber sementes ou fazer compras nas bodegas de Mallet, outros ainda terminavam por frequentar os bares, onde consumiam bebidas alcoólicas. Todavia, precisamos desconfiar das afirmações dadas pelos envolvidos na presença do delegado. Grinberg destaca a necessidade de não tomarmos as informações presentes no arquivo judiciário como uma versão transparente e inquestionável sobre o ocorrido.95 Devemos levar em conta que Joaquim era um dos envolvidos na denúncia, e a ênfase que ele dava para o fato de que Felício e Lívio haviam interrompido a viagem para beberem cachaça era também uma tentativa de garantir a sua versão sobre o caso. Não podemos esquecer Joaquim também estava em um bar consumindo bebidas alcoólicas nos instantes antes da viagem de retorno para a casa.

Prática que certamente alterava as relações dos moradores com a estrada, o consumo de bebidas alcoólicas entre os malletenses não era restrito ao período da noite, pelo contrário, era na constante movimentação da vida diurna que o álcool surgia propiciando a alteração dos ânimos e a emergência de tensões e desavenças. Não estando restritas aos bares ou comércios, as pingas e cachaças surgiam sempre nos encontros para uma conversa com algum conhecido no caminho. Das aproximações do álcool com os trajetos, ou entre a embriaguez e as estradas, traçavam-se rotas nas quais o tempo perdia suas demarcações, a consciência pouco influenciava e o corpo ganhava diferentes movimentos. Neste último ponto, o contrário também ocorria: sem movimento algum, o bêbado caía na valeta, dormindo profundamente até que os devaneios provocados pelo álcool desaparecessem.

Andando por esses caminhos, que podiam se tornar perigosos e ameaçadores, os malletenses encontravam figuras alcoolizadas como os compadres Jair, Adauto e Ruben, que em uma tarde de setembro de 1941, após algumas compras em Paulo Frontin, voltavam embriagados a cavalo pela estrada geral que ligava aquele distrito com o município de União da Vitória. Ruben, o menos alcoolizado, contou que durante o retorno, Jair começou a provocar Adauto e ambos entraram em luta corporal sujando-se de sangue. Temendo ocorrer alguma morte, Ruben separou os compadres e mandou Jair seguir em frente. 96

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Ver: GRINBERG, Keila. A História nos porões dos arquivos judiciário. p. 117; 128.

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Ao verem dois homens sujos de sangue caminhando pela estrada, os habitantes que povoavam as margens daquela via interromperam a volta do trio alcoolizado. Mesmo após serem levados para a subdelegacia do distrito de Paulo Frontin, Jair e Adauto nada conseguiram declarar sobre o acontecido e insistiram enfaticamente com o subdelegado de que eram todos amigos, impedindo assim que fosse instaurado qualquer processo. O