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CAPÍTULO 1 ANATOMIAS DOS ESPAÇOS

1.3 Imigrantes, brasileiros e outros corpos

Mencionamos até aqui figuras como o ucraniano Oles, a polonesa Nástia, os três compadres brasileiros Jair, Adauto e Ruben, entre tantas outras pessoas sem que tivéssemos nos aprofundado especificamente em relação aos aspectos populacionais, demográficos, étnicos ou de convívio entre os habitantes. A partir dos personagens anteriormente citados, pode-se afirmar que predominava naquele município uma variedade de grupos étnicos e nacionais que em suas singularidades constituíam diversas relações de sociabilidade, de auxílio mútuo ou de desavenças uns com os outros.

Crescente nas décadas de 1930 e 1940, a população de Mallet era caracterizada tanto pela diversidade de origem étnica e nacional de seus moradores, dentre os quais se destacavam os ucranianos, poloneses e brasileiros, como também pelas diferenças de idiomas falados, de práticas religiosas e de tradições.141 É inegável que muitas das transformações espaciais ocorridas em Mallet foram promovidas com a vinda de europeus, mas ao nos atentarmos aos processos imigratórios, ocorridos entre os fins do século XIX e meados do século XX, podemos perceber que as transformações espaciais obedeceram a padrões e modelos específicos, seja nas estratégias políticas traçadas pelas várias instâncias do poder público, ou também nos deslocamentos e ocupações do solo postas em prática pelos grupos de imigrantes, que permaneceram vindos em número reduzido até a década de 1920.

Teriam sido diversos os fatores históricos para a chegada de imigrantes como Oles, Milna ou Inácio para as terras brasileiras. Entre as décadas de 1880 e 1950, milhares de imigrantes eslavos, como eles, se dirigiram ao Paraná. Por exemplo, apenas entre 1895 e 1896, 5.000 ucranianos desembarcaram nos portos brasileiros e entre os anos de 1890 a 1896, 28.000 poloneses.142 Longe de serem precisos, os números de imigrantes apresentados por vários historiadores são contraditórios entre si, mas estas diferenças nos permitem compreender algumas das singularidades do contexto social, étnico e cultural de Mallet, a partir da década de 1930.

141

Os processos criminais entre 1931 a 1950 registraram também a presença isolada de 01 italiano, 01 português e 02 russos.

142

Ver: BORUSZENKO, Oksana. A imigração ucraniana no Paraná. In. Simpósio Nacional dos Professores

Universitários de História, 1967, Porto Alegre. Anais do IV Simpósio Nacional dos Professores

Universitários de História. Colonização e migração. São Paulo: [FFCL]-USP, 1969. p. 429.; HORBATIUK, Paulo. Imigração ucraniana no Paraná. p. 45.

Após uma briga motivada pela dívida no pagamento de uma calça, o lavrador Valdomiro e o alfaiate Adriano foram intimados a comparecerem na delegacia de Mallet para a instalação de um inquérito policial. Ao apresentarem seus depoimentos, ambos os personagens afirmaram serem austríacos, mas não constavam em nenhuma das listas de imigrantes os locais de onde eram provindos. Nas décadas que são objeto de nossa pesquisa, era comum que alguns dos imigrantes envolvidos em crimes dissessem serem austríacos ou apresentassem ambiguidade ou incerteza no que tange a nacionalidade a que pertenciam. 143

Por exemplo, em junho de 1940, Nicolau foi denunciado por andar alcoolizado agredindo as pessoas. Segundo o inquérito: “O promotor público no exercício de seu cargo vem denunciar Nicolau, austríaco, casado, com 52 anos, lavrador, residente em Vera Guarani, neste município” [grifo do autor]. Nas páginas iniciais do processo criminal Nicolau foi descrito como austríaco, mas a partir da folha 15, no auto de qualificação, a descrição se alterou: “Perguntado: Qual a sua nacionalidade? Respondeu: Ser de nacionalidade ucraniana. Perguntado: Qual o seu lugar de origem? Respondeu: Ser nascido em 1881 na cidade de Lviv na Europa” [grifo do autor].144 De austríaco Nicolau passou a ser denominado como ucraniano pelas autoridades jurídicas.

Parte desta ambiguidade se explica pelo fato de que a Ucrânia não existia enquanto território autônomo. A maioria dos imigrantes que habitavam em Mallet, tanto ucranianos como poloneses, eram provindos da Europa Oriental, especificamente da Galícia (Halych), região densamente povoada que pertencia ao então Império Austro-Húngaro.145 Muitos ucranianos adentraram no Brasil como austríacos ou poloneses, “como austríacos, porque aquele território, entre os anos de 1795 a 1918, pertenceu ao Império Austro-Húngaro. Poloneses, por causa da semelhança do tipo étnico de ambos os grupos”.146

Esta ambivalência torna difícil, se não impossível, estabelecer o número preciso dos que imigraram para o Paraná de cada lugar da Europa, bem como a qual etnia pertenciam a

143

Os envolvidos afirmaram serem austríacos em 10 processos criminais entre os anos de 1931 a 1950.

144

Processo-Crime, Mallet, 1940, nº 221, Caixa 12, CEDOC/I. fls. 02; 15.

145

Segundo Maria Luiza Andreazza, a Galícia (atual oeste da Ucrânia e sul da Polônia) foi durante o século XIX, a maior província do Império Austro-Húngaro. Era composta em sua maioria por camponeses, registrando em 1886 uma população de 5.958.907 habitantes entre poloneses, ucranianos (denominados como rutenos), judeus e alemães. Por outro lado, Gluchowski também ressalta a presença de imigrantes de outras regiões do Reino da Polônia, principalmente intelectuais, que seguiram rumo ao Brasil em decorrência do impacto e dos efeitos da Revolução Russa de 1905. No caso de Mallet e do Paraná, prevaleceram os imigrantes vindos da Galícia, pertencente ao Império Austro-Húngaro Ver: ANDREAZZA, Maria Luiza. O

paraíso das delícias. p. 16. GLUCHOWSKI, Kazimierz. Os poloneses no Brasil. p. 246.

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maioria dos envolvidos nos crimes ocorridos em Mallet, entre os anos de 1931 a 1950. Os habitantes declaravam sua origem estrangeira em muitos inquéritos, mas no decorrer do processo passavam a ser denominados como brasileiros, denotando assim um processo de nacionalização pelas autoridades locais. Já a especificação dos lugares de origem estava longe de ser uma prática recorrente, pois os processos criminais eram irregulares na indicação deste quesito. 147

Poucos sabemos dos sonhos, dos anseios e motivos pessoais que levaram o idoso Oles, o polonês Inácio, a ucraniana Halyna entre tantos outros habitantes de Mallet a se dirigirem ao Brasil, mas a historiografia da imigração eslava buscou apresentar e discutir alguns fatores que teriam suscitado tal deslocamento populacional. Desde a década de 1960, algumas das produções de Valdomiro Burko e Oksana Boruszenko analisaram a imigração dando uma ênfase especial aos aspectos específicos do contexto europeu. Para Burko, a vinda de imigrantes seria consequência de uma grande população agrária e de uma industrialização débil; já para Boruszenko, a saída dos ucranianos para o Brasil esteve ligada com as más condições socioeconômicas vivenciadas na Europa.148 Compreensões não muito distantes fizeram-se presentes em parte das obras de Ruy Waschowicz, que ressaltou as questões agrárias, principalmente as divisões do solo que empobreciam os camponeses na Polônia e Ulisses Iarochinski, que centralizou grande parte de suas explicações para a imigração polonesa nas invasões territoriais promovidas por povos vizinhos. 149

Estas produções que tomaram a imigração eslava como objeto de estudo não nos permitem compreender o que sentiam ou expressavam pessoas como o carroceiro polonês Inácio ou a ucraniana Halyna. Quais sentimentos provocava o abandono de suas terras? De que modo à vida em um local desconhecido foi sentida por seus corpos? Como demonstravam esses afetos? Como era seu gestuário ou suas vestimentas? As perguntas seriam intermináveis. Os ucranianos ou poloneses descritos pela historiografia não possuem corpo, não são dotados de qualquer sensibilidade ou desejo. Os historiadores que investigam a imigração dos eslavos preferem narrar os dados estatísticos, os fatores

147

A imprecisão dos grupos étnicos nos processos criminais do município de Mallet é perceptível a ponto de um austríaco poder ser também um ucraniano ou polonês. Já um brasileiro poderia ser um habitante caboclo anterior à vinda dos europeus ou um imigrante naturalizado e vice-versa.

148

Ver: BURKO, Valdomiro. A imigração ucraniana no Brasil. Curitiba: s/e., 1963. p. 39.; BORUSZENKO, Oksana. A imigração ucraniana no Paraná. p. 427.

149

Ver: WACHOWICZ, Ruy Christovam. O camponês polonês no Brasil: raízes medievais da mentalidade emergente. Universidade Federal do Paraná (Tese de Livre Docência). Curitiba, 1974. p. 60-70.; IAROCHINSKI, Ulisses. Saga dos Polacos. Curitiba: Gráfica Mansão, 2000. p. 65.

econômicos, os núcleos populacionais desenvolvidos ou as entidades criadas por imigrantes. O que esta historiografia não pôde perceber, ou se negou a fazê-lo, é que foram corpos que compuseram seus dados, suas colônias e suas instituições.

Negando as dimensões físicas, desejantes e conflituosas descritas em suas documentações, muitos historiadores da imigração não cessaram de produzir certas corporeidades. Em suas pesquisas sobre Mallet, tanto Miguel Wouk como Paulo Horbatiuk, desejaram indicar um modelo corporal para os habitantes envolvidos em suas análises.150 Wouk, na década de 1960, enfatizou os aspectos físicos dessas populações com uma tipologia que incluía a velha teoria dos humores, “de modo geral, o ucraniano difere do russo; este é louro, de ombros largos, pesado e melancólico; ao passo que o ucraniano aparece mais delgado, alto, ativo, alegre e de caráter meridional”.151

Como Wouk, Horbatiuk buscou em suas páginas iniciais definir o ucraniano a partir de características corporais. Vejamos:

[O ucraniano] é um tipo escuro de cabeça arredondada, com uma face longa e estreita. Outro elemento racial importante é o tipo alpino, diferente do dinarico por ter o rosto arredondado. Essas duas raças determinaram o tipo nacional ucraniano: face estreita, o nariz reto e relativamente fino, braços relativamente curtos, pernas longas, estatura elevada enquanto o cabelo e os olhos são, na maioria, escuros [grifo meu]. 152

Não é apenas a descrição física dos habitantes eslavos que foi salientada. Para alguns historiadores o corpo do imigrante constituiu as próprias características do território paranaense. Iarochinski parafraseou a fala de um governador estadual sobre os poloneses para afirmar:

Estes imigrantes de cabelo louro, pele rosada e olhos claros foram os primeiros de milhares que no entender de Bento Munhoz da Rocha Netto, ex-governador do Paraná, mudaram a face da terra dos pinheirais. Depois desta gente loura e corajosa, o Paraná nunca mais foi o mesmo. 153

Assim como Iarochinski, Horbatiuk diz que o imigrante ucraniano predominou no Sul do Brasil, “[...] dando ao Paraná uma feição característica”.154 Para estes historiadores,

150

Nas décadas de 1950 e 1960, Wouk desenvolveu pesquisas sobre os aspectos etno-linguísticos da colônia ucraniana de Dorizon, um dos distritos pertencentes ao município de Mallet. Seu estudo pretendia ser uma tese para a Cátedra de Filologia Românica da Universidade Federal do Paraná, o que não ocorreu devido a extinção das cátedras. Sua pesquisa resultou no livro Estudo etnográfico-linguístico da comunidade ucraína

de Dorizon publicado em 1981. Já em 1983, Horbatiuk produziu seus estudos sobre a cultura ucraniana em

Mallet. A obra Imigração ucraniana no Paraná, publicada em 1989, resultou de sua dissertação de mestrado em História, A colônia ucraniana de Mallet: núcleo de preservação e irradiação da cultura ucraniana (Um

estudo de caso), defendida naquele mesmo ano na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

151

WOUK, Miguel. Estudo etnográfico – linguístico da comunidade ucraína de Dorizon. p. 27.

152

HORBATIUK, Paulo. Imigração ucraniana no Paraná. p. 72.

153

IAROCHINSKI, Ulisses. Saga dos Polacos. p. 73.

154

o espaço foi rostificado pelo imigrante, o Paraná teria uma face, um rosto, um semblante que o diferenciava dos demais lugares do país pela presença do corpo estrangeiro. O Paraná, tal como os imigrantes, seria branco e europeu, como enunciou Wachowicz.155 Foi a partir destas perspectivas e destes modelos de corpos que muitos dos espaços habitados pelos imigrantes, tal como Mallet, foram compreendidos.

Ao problematizarem a história dos habitantes dos núcleos eslavos, as produções acadêmicas enfatizaram os processos imigratórios a partir de três grandes justificativas: as questões fundiárias no contexto europeu, a necessidade de camponeses para substituir o trabalho escravo e a propaganda do governo brasileiro para ocupar as vastas “terras desabitadas”. Mesmo negado enquanto objeto de análise para esta historiografia, pode-se perceber que o corpo ocupou a centralidade nas percepções que consideravam o imigrante como o habitante ideal para as terras do Brasil.

A perspectiva que procuro tomar busca afirmar que a imigração não foi somente econômica e agrária, tal como a conceberam Burko e Boruszenko; ela não se restringiu apenas aos territórios, como enunciou Iarochinski; ela não buscou simplesmente preencher os espaços vazios como insistiram Horbatiuk, Wouk e outros historiadores. Indo além, a vinda de imigrantes não se restringiu a epopeia muitas vezes produzida e reiterada constantemente pela historiografia. Os milhares de europeus que se tornaram os habitantes de Mallet estiveram ligados a um fenômeno estratégico, a chegada de imigrantes pode ser compreendida como um deslocamento corporal que envolveu diferentes disputas em torno de concepções raciais e padrões culturais que predominaram no Brasil na transição dos séculos XIX e XX.

Como vimos, a agricultura constituía a principal atividade econômica dos malletenses e entre os lavradores estavam indivíduos como Oles, Halyna, Milna, Adriano, entre muitas outras pessoas que haviam imigrado para este município. A região da Galícia, da qual a maioria destes habitantes provinham, era um dos mais importantes centros agrários da Europa durante o século XIX, aspecto referido constantemente por Burko, Boruszenko ou Wachowicz ao descrevem o perfil rural dos imigrantes.156 Embora estes historiadores tenham considerado a Galícia como um centro agrícola relevante, o que se

155

Para o historiador Ruy Wachovicz, o Paraná seria “[...] um estado com população predominantemente branca e com majoritária influência europeia”. WACHOWICZ, Ruy Christovam. História do Paraná. Curitiba: Ed. Gráfica, 2001. p. 159.

156

Ver: BORUSZENKO, Oksana. A imigração ucraniana no Paraná. p. 427.; BURKO, Valdomiro. A

questiona em suas explicações é o fato de que ao fazerem a transição entre o agricultor da Europa para o colono agricultor no Brasil, esta historiografia ignorou completamente os aspectos corporais implicados nos conceitos de “mão” de obra, trabalhador “braçal” ou “raça” estrangeira presentes em suas análises.

A vinda de muitos europeus para territórios como o de Mallet se deu em um contexto específico da história do Brasil: o regime escravocrata, que perdurou por 300 anos e estava entrando em decadência no decorrer do século XIX. Como enfatiza Gillies, a escravatura adentrava em todos os aspectos da vida social, religiosa ou moral. Os escravos “não representavam apenas as mãos e os pés dos seus senhores, como simbolizavam o único instrumento de trabalho, o qual era considerado, na sociedade escravista brasileira, desonroso entre as pessoas livres, digno apenas de escravos [grifo do autor]”. 157

As relações escravistas envolviam e insidiam diretamente sobre o corpo do escravo, desde o período colonial brasileiro. Era através de marcas nas carnes que o poder se inscrevia nos corpos dos escravos e os imigrantes europeus, ao aqui chegarem, precisaram se inserir numa sociedade marcada pela legitimidade e banalidade do suplício corporal. O impacto decorrente da Lei Eusébio de Queiróz, em 1850, ou da Lei do Ventre Livre, em 1871, também foi utilizado pelos historiadores da imigração eslava como uma justificativa para a vinda de europeus. Tomemos, por exemplo, o que afirma Burko: “Com a abolição da escravatura, em 1888, tornou-se mais premente o problema da imigração europeia para cuja solução o governo estabeleceu uma série de disposições tendentes a interessar ao imigrante”.158

Mesmo que os eslavos estivessem inseridos em um contexto rural na Europa, a compreensão de que seriam eles a mão de obra ideal para a agricultura no Brasil é passível de questionamento. 159

157

GILLIES, Ana Maria Rufino. Políticas públicas e utensilagem mental: uma análise das reformas propostas por Henrique de Beaurepaire Rohan em 1856 e 1878. 2002. 130f. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal do Paraná, Curitiba. p. 80.

158

BURKO, Valdomiro. A imigração ucraniana no Brasil. p. 44.

159

O historiador norte-americano Larry Wolff questiona a compreensão de que a Europa Oriental estaria ligada ao campesinato por excelência. Em seu livro Inventing Eastern Europe (Inventando a Europa Oriental) publicado em 1994, Wolff enfatiza que anterior ao século XVIII não existia uma divisão clara entre a Europa Ocidental e a Europa Oriental. Com o Iluminismo, Paris tornou-se o grande centro do continente afirmando- se como o espaço da racionalidade e do pensamento, características da civilização. Para Wolff, esta noção de civilização, “[...] descobriu seu complemento, dentro do mesmo continente, em terras sombrias de retrocesso, e até mesmo de barbárie [tradução do autor]”. Nestas perspectivas a Europa Oriental emergiu enquanto espaço que se tornou o sinônimo do atraso e da irracionalidade, características consideradas como pertencentes ao mundo rural. Ver: “[...] the civilization discovered its complement, within the same continent in shadowed lands of backwaedness, even barbarism” WOLFF, Larry. Inventing Eastern Europe: the map of civilization on the mind of the Enlightenment. Stanford: Stanford University Press, 1994. p. 04.

Enfatizando a falta de consenso sobre esta escassez, Gillies ressalta que o trabalhador europeu nem sempre era considerado a solução, já que algumas experiências imigratórias resultavam em insucessos. A historiadora também afirma que os anos de 1877-78 foram marcados por problemas na agricultura: a seca que atingiu o Ceará, e o crescente número de filhos de escravos livres afetavam as produções cafeeiras no sul. Ocorridos, em 1878, os Congressos Agrícolas realizados no Rio de Janeiro e no Recife reuniam fazendeiros e agricultores preocupados com a queda de suas produções e com o modo de suprir a falta de braços para a lavoura. Entre os envolvidos nos debates, opiniões como as de Henrique de Beaurepaire Rohan e Candido Barreto de Souza Faria faziam parte dos discursos que consideravam desnecessária a vinda de trabalhadores estrangeiros. 160

Nestas perspectivas, a afirmação de que a presença de habitantes europeus seria considerada como mão de obra agrícola por excelência deixa de ser consonante. O Congresso do Recife “concordava que não havia ausência de mão de obra, mas de capital e de medidas firmes que levassem os trabalhadores livres nacionais ao trabalho regular”.161

O final da escravidão, em 1888, não representou uma incorporação dos negros na sociedade brasileira. Pelo contrário, o trabalhador nacional (escravo liberto ou filho de escravos) era alvo de preconceito e desprezo, “visto como preguiçoso, não confiável e privado de mentalidade moderna (burguesa acumulativa)”.162 Intensa naquele período, a explicação desenvolvida para tais percepções era resultado da aliança entre os aspectos biológicos e sociais. Para os cientistas do século XIX, as dificuldades e os transtornos do Brasil seriam decorrentes da raça, estariam entranhadas nos corpos.

Burko ressaltou a intensa propaganda do governo brasileiro para a vinda de imigrantes, mas a questão racial é ausente em suas problematizações, prevalecem as descrições ligadas ao leste europeu e aos aspectos econômicos.163 Já Horbatiuk se aproximou das recorrentes interpretações do Brasil como resultado do encontro das três raças formadoras: “a índia, elemento nativo da terra; o colonizador português e o negro

160

Henrique de Beaurepaire Rohan colocava em questão as vantagens da escravidão, instigando para a necessidade de transformar o escravo em um trabalhador que mantivesse as vantagens dos antigos senhores. Não seriam necessárias as grandes propriedades ou a vinda de europeus, mas sim a formação de colônias com nacionais e escravos. Já Candido Barreto de Souza Faria também propôs a criação de leis que regularizassem o trabalho dos escravos, mais viável do que a colonização seria eficiente aproveitar as forças nacionais. Ver: GILLIES, Ana Maria Rufino. Políticas públicas e utensilagem mental. p. 89-96.

161

ibidem., p. 102.

162

CARDOSO, Adalberto. A construção da sociedade do trabalho no Brasil: uma investigação sobre a persistência secular das desigualdades. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. p. 62.

163

africano que era escravizado”.164

Iarochinski apontou para a existência de questões raciais implicadas na imigração, mas reduziu o seu argumento a uma única frase: “após a proclamação da República, com o governo brasileiro instituindo a imigração europeia, ou branca como ação governamental, o número de imigrantes cresceu bastante”.165 Ignorado por estes historiadores é o corpo que ocupa a centralidade no processo imigratório. As elites nacionais ansiavam por substituir os corpos negros, indígenas, mestiços que habitavam o Brasil, ambicionando assim o corpo branco e europeizado como a solução para seus problemas.

A intensa propaganda imigratória no leste europeu não visava apenas à força de trabalho, mas estava intimamente ligada às chamadas políticas de branqueamento populacional defendidas a partir do século XIX. Como assinala Seyferth, o temor de que o Brasil viesse a se tornar a nação com o maior número de habitantes negros fora da África resultou na construção eurocêntrica do homem branco como ideário de cultura, trabalho e civilidade. A raça ecoava tanto nas justificativas da vinda de imigrantes, bem como na