• Nenhum resultado encontrado

3 A PM ENQUANTO INSTITUIÇÃO TOTALITÁRIA

4.1 A INTERSECCIONALIDADE DAS CATEGORIAS SOCIAIS

4.1.1 As várias dimensões da vida social

4.1.1.1 A categoria gênero

A categoria gênero aparece como importante e significativa denunciadora das relações desiguais entre os sexos. Daí porque, (...) enfatizar os significados variáveis e contraditórios atribuídos à diferença sexual, os processos políticos através dos quais esses significados são construídos, a instabilidade e maleabilidade das categorias “mulheres” e “homens”, e os modos pelos quais essas categorias se articulam em termos da outra, embora de maneira não consistente ou da mesma maneira em cada momento (SCOTT, 1994, 25-26), aparece como algo imprescindível para a compreensão das desigualdades.

A autora coloca que os sujeitos sociais encontram-se constituídos por símbolos e significados culturais, institucionalidades, conceitos normativos, que devem ser considerados na análise das relações de gênero. Isso porque, a partir dessas institucionalidades, símbolos e significados atribuídos a homens e mulheres cotidianamente, estes vão ocupando lugares diferenciados no mundo. Trata-se de relações de poder travadas por homens e mulheres que conferem historicamente aos homens a posição dominante. Daí a necessidade, segundo Scott. de que gênero seja redefinido enquanto um instrumento útil na construção de uma sociedade mais

equitativa; o que só é possível, a partir de uma visão de igualdade política e social, incluindo além do sexo, classe e raça (SCOTT, 1994).

Pensar relações de gênero exige, portanto, o que evidencia Sorj (1993) sobre a necessidade de evitar as formulações simplistas que convertem o feminino e o masculino em “campos estanques e homogêneos”, deixando de lado as convergências advindas de experiências e representações ou mesmo as divergências existentes entre homens e mulheres.

Implica, também, entender, como coloca Saffioti (1992), que relações de gênero vão além da relação homem-mulher. A autora propõe uma ontologia feminista que tenha por núcleo a concepção da relação eu - outro. A partir dessa ótica, cada indivíduo é parte da história de suas relações sociais. Não se trata, portanto, de uma relação “diática” de oposição, uma vez que o ser humano não entra em relação com apenas um outro, mas com outros, sejam eles similares ou diferentes.

A ontologia a que se refere Saffioti abre mão da oposição homem-mulher e lança mão da concepção da relação homem - mulher, o que permite que as relações de gênero sejam analisadas como tendo espaço na trama das relações sociais não só entre mulheres e homens - como se fossem facções opostas e os únicos a fazerem parte dessa trama - mas também entre mulheres e entre homens. E é nessa trama que tem espaço o entrelaçamento entre gênero e classes sociais. Dessa forma, gênero, “enquanto relação humana, é parte constitutiva do ser social. Como categoria ontológica, o gênero contém a mesma capacidade explicativa que outras categorias igualmente ontológicas” (SAFFIOTI, 2002, p.2).

Daí poder dizer que o uso do gênero como categoria analítica exige uma releitura de tudo que o circunda. Em outras palavras, pensar relações de gênero implica em repensar a cultura, a linguagem, as instituições, pois só assim compreenderemos as chamadas “ideologias de gênero” e ampliaremos as possibilidades da sua desconstrução.

A relevância de pensar gênero como uma categoria importante no complexo contexto institucional militar faz-nos recorrer ao conceito de interseccionalidade, pois dinamiza o entendimento dos processos sociais ocorridos nesse contexto. Processos sociais que concretizam lógicas que geram e sustentam inúmeras formas de opressão e perpetuação de privilégios no contexto institucional militar. E nos revelam, como bem coloca Crenshaw (2002), que o peso, a dimensão das diferentes

formas de opressão vão depender do contexto social que abriga essas lógicas das desigualdades sociais.

Ainda nessa perspectiva do gênero, (SARDENBERG, 1999) afirma ser este (o gênero) uma importantíssima dimensão da vida social, pois articuladora das relações sociais e, consequentemente, de fundamental importância para o entendimento de como as formações sócio-históricas organizaram as diferenças socialmente a partir das diferenças sexuais. Daí a necessidade de pensarmos o gênero como categoria social construída e imbuída de ideologias que, em contextos sociais específicos, atribui significados para o masculino e feminino. Em se tratando da instituição militar não é diferente. Os depoimentos abaixo, de algumas policiais entrevistadas, ilustram essas diferenciações:

“(...) o maior desafio aqui dentro é, na minha opinião, ter que estarmos a todo momento, provando que somos boas, que realmente damos para a função de policial enquanto os homens não.”

(FERNANDES, sargenta, 30 anos) “(...) aqui, se erramos é porque somos mulheres e não porque somos humanas. Não que aos homens sejam permitidos mais erros, mas quando eles erram nunca os erros são associados ao fato de que eles são homens.” (ROSA, soldada, 31 anos) “(...) a gente percebe bem a diferença quando se trata dos serviços ostensivos porque sempre acham que é serviço de homens. Nós podemos fazê-los acompanhadas e sob a coordenação deles. Isso é o que eles acham.”

(MENDES, soldada, 28 anos) “O problema é que a PM sempre foi assim. Nós mulheres temos pouco tempo aqui em comparação com os homens e como foi uma instituição formada por homens ela tem a cara masculina. Hoje isso vem mudando, mas, ainda é muito forte porque acham que a gente só serve para as atividades de escritório...”

(PADRÃO, soldada, 28 anos,)

Ser homem policial é diferente de ser mulher policial, pois homens e mulheres vivenciam trajetórias diferenciadas na instituição militar. Vê-se que é um contexto com as suas especificidades no que tange à questão de gênero, principalmente por tratar-se de uma instituição essencialmente masculina.

Uma instituição tão masculina que as próprias mulheres assumem posturas em seu interior que evidenciam essas especificidades de gênero. Entre as Policiais Militares que constituíram o universo desta pesquisa (o equivalente a 40 mulheres), 80% afirmaram que irão optar sempre pelos serviços burocráticos por se considerarem inaptas para exercer determinadas atividades, a exemplo do policiamento ostensivo, conforme demonstramos dados do quadro abaixo.

Quadro 15 Preferência de homens e mulheres pelos serviços da PM (2012)

QUE TIPO DE SERVIÇO GOSTA

HOMENS MULHERES TOTAL

Serviços burocráticos/ administrativos 86 32 118 Serviços operacionais/ ostensivos 29 8 37

Qualquer tipo de serviço 30 0 30

TOTAL 145 40 185

Fonte: dados colhidos com a pesquisa.

No entanto, percebemos que os homens também têm preferências pelos serviços considerados administrativos na PM. 59.3% dos policiais afirmam a preferência por ocupar os serviços administrativos, seguido de 20.7 dos policiais que colocam que tanto faz o tipo de serviço que ocupam ou venham a ocupar na instituição e dos 20% que assumem e querem continuar assumindo os serviços ostensivos.

“Irei fazer de tudo para não ir trabalhar na rua. Não acho que a mulher tenha força física para isso. E se tem os serviços mais administrativos, deve ser ocupado por nós mesmos”

(OLIVEIRA, sargenta, 25 anos) “...Quero poder optar um dia pelo serviço de secretária. Acho que existem funções aqui que deveriam ser próprias para nós mulheres.”

Isso nos remete ao fato de que essa diferenciação de gênero, que se configura numa espécie de “exclusão” das mulheres na instituição, pode estar configurada, também, por uma “auto-exclusão”, quando as próprias mulheres admitem a preferência pelos serviços administrativos.

Vê-se também que as especificidades de gênero não são as únicas, pois há um lugar de gênero na instituição, mas esse gênero tem uma cor. Em outras palavras: não apenas o gênero aparece como definidor das oportunidades na instituição militar pesquisada mas também, a raça/etnia.