• Nenhum resultado encontrado

3 A PM ENQUANTO INSTITUIÇÃO TOTALITÁRIA

3.2 TRILHANDO OS CIRCUITOS DO PODER DISCIPLINAR

A partir dessa seção, pretendemos trilhar os caminhos do poder disciplinar apresentados por Foucault (1999), considerando as diversas técnicas e procedimentos que o concretizam (o poder disciplinar) e a implementação dessas técnicas e procedimentos no interior das instituições totais.

Foucault admite que o poder disciplinar é tão forte e eficaz nas instituições totalitárias que chega a promover aos indivíduos que dela fazem parte um espaço útil e, ao mesmo tempo, controlador e absolutamente disciplinador. Isso, através do que Foucault (1999) denominou em seus estudos de “tecnologia disciplinar”.

Essa tecnologia disciplinar promove uma espécie de controle do corpo humano, através do aumento das habilidades desse corpo, da sua sujeição e, principalmente, da transformação desse corpo em um corpo tão útil que, quanto mais útil se torne, mais obediente se apresente e vice-versa. (Foucault, 1999, p.119). Para isso, o corpo dos indivíduos que fazem parte dessas instituições (as totalitárias) é, segundo o autor, esquadrinhado, desarticulado e recomposto.

Tudo se inicia quando esse corpo passa por uma ressocialização direcionada para a negação do antigo status e identidade dos indivíduos (esquadrinhamento) e, com isso, é degradado, desorientado, estressado (desarticulação) até chegar à aceitação do status e cultura do novo grupo (a recomposição). Poder-se-ia dizer, uma espécie de rejeição, morte e renascimento do corpo do indivíduo, se considerarmos que essa ressocialização envolve os “ritos de iniciação”, que significam a passagem do indivíduo de um grupo para outro, e objetivam assegurar a lealdade desse indivíduo ao novo grupo.

Porém, os chamados “ritos de iniciação’ não são suficientes para assegurar a passagem e manutenção dos indivíduos nas instituições totais. Daí porque são utilizadas técnicas e procedimentos, poder-se-ia dizer, fixos, permanentes nessas instituições. Foucault traz a tona que a tecnologia disciplinar se utiliza de vários procedimentos para distribuir os indivíduos no interior desses espaços, que vão desde o enclausuramento destes, perpassando pela individualização dos corpos desses indivíduos e, inclusive, pela “socialização’ desses corpos em alguns momentos.

Foucault (1999) refere-se a procedimentos resultantes do poder disciplinar como “o enclaustramento”, a partir do modelo conventual, onde os indivíduos ficam

isolados da vida social mais ampla; “o quadriculamento celular e individualizante”, que implica na distribuição dos indivíduos no espaço na melhor forma possível, no sentido de que cada indivíduo estaria em seu lugar e em cada lugar um indivíduo, transformando as multidões em multiplicidades organizadas; aliás, segundo o autor, a primeira das grandes operações da disciplina é exatamente essa transformação através da constituição do que ele chamou de “quadros vivos”.

Outro procedimento utilizado pelo poder disciplinar, segundo Foucault, é “a regra das localizações funcionais”, que trata do estabelecimento da localização imediata dos indivíduos, vigiando, ao mesmo tempo em que se cria um espaço útil. Para isso, cada indivíduo deve estar em seu lugar para que se possa vigiar a cada instante os seus gestos, os seus comportamentos e, assim, poder dominar e utilizar os corpos desses indivíduos nesse espaço. A “classificação e a serialização” aparecem como outro procedimento do poder disciplinar porque, para o autor, essa classificação e serialização individualizam e distribuem os corpos dos mesmos e os fazem circular numa rede de relações. (FOUCAULT, 1999, p. 127-135).

Esses procedimentos aparecem, para Foucault, como forma inicial de exercício de poder pelas instituições totalitárias, que chegam a criar um espaço arquitetônico funcional, pois fixam os indivíduos nesses espaços - recortando segmentos individuais, marcando lugares, indicando valores, garantindo a obediência dos indivíduos - e, ao mesmo tempo, permitem a circulação desses mesmos indivíduos no espaço institucional.

No entanto, esses procedimentos iniciais não só garantem a obediência, mas também uma melhor e maior economia dos tempos e dos gestos, quando os indivíduos têm as suas atividades controladas. O tempo é cuidadoso e rigorosamente administrado, buscando-se manter uma extrema correlação entre corpos e gestos. Para isso, são valorizados os minutos, os segundos, através do estabelecimento e exigência de cumprimento rígido do horário nas instituições totalitárias. Os gestos são valorizados, no interior dessas instituições através do controle do tempo; é estabelecida e exigida, nessas instituições, uma precisão entre gestos e movimentos, através desse controle minucioso do tempo. Como coloca o próprio Foucault, “o tempo penetra o corpo, e com ele todos os controles minuciosos do poder” (...) E acrescenta: “um corpo bem disciplinado é a base do gesto eficiente”. (FOUCAULT, 1999, p.129-130).

Ora, um corpo disciplinado, instrumentalizado, vai utilizar gestos e movimentos com a máxima rapidez e eficiência. É o corpo disciplinado produzindo num tempo disciplinado. Esse tempo disciplinado valoriza o uso do mínimo instante, “o tempo é precioso” na extração de mais e mais forças úteis, pois o máximo de rapidez deve encontrar o máximo de eficiência. Eficiência essa que só é possível através da formação de corpos tão dóceis que capazes de oferecerem-se a novas formas de saber, ou seja, à medida que novos mecanismos de poder vão operando sobre os corpos, estes corpos, agora dóceis, assumem individualidades, quando mostram as condições de funcionamento próprias de um organismo. “O poder disciplinar tem por correlato uma individualidade, que não só é analítica e celular, mas também natural e orgânica.” (FOUCAULT, 1999, p.132). Nesse sentido, os corpos são alvo de um poder disciplinar que os repartem, extrai o máximo desses corpos e que acumula o tempo desses corpos no intuito de obter uma composição de forças capaz de alcançar rapidez e eficiência nessas instituições.

Na busca de um aparelho institucional eficiente, o poder disciplinar atua sobre os corpos dos indivíduos, através do espaço, das atividades, do tempo, das forças. Daí porque Foucault (1999. p 141) refere-se ao poder disciplinar como sendo celular, orgânico, genético e combinatório. O poder disciplinar é celular, porque se efetiva a partir de todo o investimento das instituições totais na concretização da segmentação espacial; é orgânico, pois se efetiva com a segmentação, fragmentação e codificação das atividades organizadas em tarefas ao mesmo tempo repetitivas, diferentes e graduadas através do agrupamento, todos os indivíduos cumprem suas tarefas, sob um sistema preciso de comando; é genético por se efetivar com a segmentação, serialização e o acúmulo do tempo, ou seja, divide a duração em segmentos, organiza seqüências de acordo com um esquema analítico, institui uma prova de qualificação no final do processo e estabelece séries de séries; por fim, é combinatório, pois encontra sua efetivação na concretização da composição de forças, na medida em que extrai a máxima quantidade de forças de cada indivíduo e busca combiná-las num resultado eficiente.

A partir das ideias foucautianas descritas acima, o poder disciplinar vai (re)modelando os indivíduos e construindo uma sociedade disciplinar com a produção de corpos dóceis, individualizados11 e úteis. Aqui, o poder essencialmente

11

A ação do poder disciplinar é essencialmente a produção de subjetividade, daí porque a produção de individualidades.

repressivo dá lugar ao poder produtivo, àquele que produz uma multiplicidade de forças e delas faz uso, através da disciplinarização dos corpos dos indivíduos.