• Nenhum resultado encontrado

Do nível micro ao macro do poder: a concepção de poder relacional

2.1 O NÍVEL MACRO DO PODER: A CONCEPÇÃO DE PODER ESTATAL

2.1.2 Do nível micro ao macro do poder: a concepção de poder relacional

As análises de poder em Foucault (1979) aparecem como elucidativas ao entendimento da posição dos militares quando do cumprimento do chamado “profissionalismo clássico”. O autor apresenta uma nova perspectiva sobre o poder. Pensa o poder, histórica e politicamente quando abraça a genealogia que permite a articulação entre corpo e história.

Ao invés de uma análise jurídico-filosófica, Foucault instituiu uma análise histórico-política. Para ele, o poder deve ser encarado como prática social construída historicamente. Essa nova perspectiva produziu um deslocamento com relação à ciência política, que limita ao Estado o fundamental de sua investigação sobre o poder. Para o autor, existem formas de exercícios de poder diferentes do Estado, a ele articulado de maneira variada e que são, inclusive, indispensáveis à sua sustentação e eficaz atuação.

Foucault (1979) busca explicar as relações de poder sem recorrer a esquemas pré-estabelecidos e categorias gerais como burguesia, capitalismo, Estado. Para compreender essas relações, buscou apreender essas categorias e uma série de focos locais no nível microfísico ou periférico. É preciso chamar atenção para o fato de que esse nível micro não é uma ramificação do Estado, mas um domínio diferente deste, com história e existência própria.

Isso não significa, porém, que haja descontinuidade com o nível macro ou central, mas que as análises de Foucault se dão de forma ascendente, pois partem de uma multiplicidade de exercícios regionais de poder sem, contudo, deixar de reconhecer e analisar os aparelhos estatais, as leis. Esses aparelhos e leis são formas finais desses exercícios de poder. Ou seja: são investidos e anexados por estruturas mais amplas de dominação (o nível macro - o Estado, as leis). Substitui-se, então, a noção de um poder fundamental por outra de uma rede difusa que se propaga por toda a sociedade.

O poder é algo que se exerce e que se disputa em uma multiplicidade de lugares. Daí porque Foucault viu delinear-se, através de seus estudos, uma não sinonímia entre Estado e poder, e operou deslocamentos com referência à suposição partilhada pela filosofia política clássica e pelo marxismo de que o Estado e suas instituições são o lugar privilegiado, o centro onde se aloja o poder.

“El análisis de las relaciones de poder en una sociedad no puede retrotraerse el estudio de una serie de instituciones, ni siquiera al estudio de todas aquellas que merecerían el nombre de “política”. Las relaciones de poder están arraigadas en el tejido social.” (FOUCAULT, 1968, p.05)

A partir dessa perspectiva de Foucault, os efeitos repressivos que a Polícia Militar apresenta, enquanto aparelho do Estado se constitui através de aparelhos disciplinares, isto é, através das relações de poder nas quais a mesma está imersa. A PM enquanto instituição estatal situa-se num campo diverso e flexível, onde são transmitidas e implantadas as relações de poder. Relações estas que investem e constituem o que Foucault (1979) chama de “dispositivo militar”. O que significa dizer que, há na PM relações de poder voltadas para o adestramento dos corpos, para a sua docilização através de meios eficazes de controle. Esses meios são configurados através do conhecimento e utilização de técnicas. Ou melhor, o poder no interior da PM vai se deslocando através de uma rede de relações distintas na interelação dos seus membros entre si, onde são evidenciadas estratégias de utilização e expropriação do saber. Essas estratégias utilizadas, as formas de hegemonia, são o resultado de lutas maiores que, segundo Foucault, não abandonam nunca as formas de lutas localizadas.

É importante ressaltar que, embora Foucault valorize as lutas localizadas, situa-as num campo distante da totalização sem, contudo, negar que essas lutas se inscrevem num universo geral. Reconhece a importância do caráter local das lutas,

devido ao fato de que elas (as lutas) acontecem num espaço onde se organizam os saberes das classes dominadas, e que as classes dominantes procuram expropriar. Foucault deixa claro que, para que as lutas locais tenham sentido, é necessário que as pensemos de modo geral, uma vez que, embora os campos de lutas sejam múltiplos e dispersos, elas não são fragmentadas e não se perdem.

As análises de Foucault partem do nível microfísico, constituindo-se, portanto, numa análise ascendente, uma vez que considera insuficiente a definição do Aparelho de Estado como repressivo. A repressão é, para o autor, uma das diversas formas de expressão das relações de poder, pois, na medida em que não se pensa o poder como sendo extensivo a toda a sociedade, a produção da individualidade não aparece como um elemento constitutivo das relações de poder, mas “pertencente” a aparelhos que compõem a chamada superestrutura. E, dessa forma, a idéia a percorrer é a de que os indivíduos se deixam sujeitar sem, contudo, ter nenhuma participação ativa nessa relação de sujeição. Esse sujeito não seria histórico, e o seu efeito seria apenas a sujeição no plano ideológico.

A partir da perspectiva de Foucault, o poder, no seu exercício real, não pode ser pensado como essencialmente negativo, cujos únicos efeitos seriam barrar, excluir, reprimir, proibir, etc., mas como capaz de produzir efeitos positivos, produtores. O poder aparece, a partir dessa concepção, na trama das relações sociais e, consequentemente, das relações de produção. E a disciplina - conceituada por Foucault (1979) como, poder-se-ia dizer, forma fria que a classe dominante utiliza para dirigir a classe dominada - aparece enquanto instrumento do poder que dá face nova às relações de dominação. Isso nos remete ao fato de que, para o autor, o aparelho repressivo - a polícia, por exemplo - não funciona unicamente pela repressão, e que ela (a repressão) nem sempre aparece enquanto forma física e visivelmente bruta, mas também é exercida sutilmente, sob a forma de uma violência aparentemente normal sobre os corpos.

Por fim, pode-se afirmar que, tanto Foucault quanto Althusser buscaram nos libertar de uma teoria estreita de Estado. Embora em alguns momentos se encontrem e, em outros, se prolonguem e se diferenciem, ambos trazem contribuições importantíssimas, para pensarmos e dialogarmos as relações sociais de gênero e as relações sociais de poder no interior da Polícia Militar. O primeiro (Athusser), por possibilitar-nos pensar a PM enquanto instituição repressiva e ideológica que é e, o segundo, por possibilitar-nos pensar o poder no interior dessa instituição como sendo,

também, relacional, ou seja, como fazendo parte das relações sociais vivenciadas por homens e mulheres.

É possível apresentarmos algumas razões para pensarmos que as relações sociais de gênero, constituídas no interior da PM, encontram-se caracterizadas pelo poder relacional, conforme veremos com mais detalhes em capítulos seguintes:

Em primeiro lugar, o gênero é relacional. Ele acontece nas relações entre indivíduos - entre homens e entre mulheres. Portanto, embora exista um discurso que é masculino no interior da instituição, o discurso feminino também aparece como sendo ativo nas relações de poder que homens e mulheres enfrentam e compartilham.

Em segundo lugar, o poder como sendo relacional traz elementos constitutivos das relações sociais. Elementos esses que não se esgotam no próprio poder, mas do qual fazem parte também os saberes, a subjetividade, a sexualidade etc. Esses elementos expressam relações significantes por meio das quais o poder é articulado no interior da PM.10

Em terceiro lugar, homens e mulheres estão imersos em relações de produção e de significação, e em relações de poder muito complexas. E essas relações de poder são tão complexas que ultrapassam as relações baseadas em modelos legais. Como legitimar, dessa forma, o poder, se ele acontece em relações mutáveis, entre indivíduos e grupos de indivíduos? O que significa que, embora se trate de um dispositivo policial (a PM), não se pode pensar o poder unicamente como advindo desse dispositivo, mas como resultante de processos interativos e comunicativos, através dos quais os sujeitos militares constroem uma rede de significados que concretizam as suas relações sociais.

Por fim, uma razão que parece abarcar todas as apresentadas anteriormente é que essa conceituação de poder o faz aparecer não só como uma questão teórico- conceitual, mas como fazendo parte das experiências dos indivíduos. E, no que diz

10 Um exemplo concreto de um desses elementos, a sexualidade, foi percebido através do “jogo

sexual” estabelecido por homens e mulheres no interior da instituição militar. As mulheres que exercem poder quando se insinuam para os seus superiores no intuito de alcançarem alguns benefícios a exemplo do ingresso ou mesmo da permanência nos serviços mais burocráticos, a concessão de dispensa de trabalho, etc. Os homens que mantêm esse poder quando concedem à essas mulheres espaços por elas pretendidos ou mesmo quando dizem “não” demonstrando quem tem o poder de decisão na instituição. Um jogo sutil, cuidadoso tanto por parte das mulheres como dos homens militares, a fim de não tornarem visível o descumprimento de normas disciplinares. Em capítulos posteriores tratar-se-á mais detalhadamente desse assunto.

respeito a esse estudo, como fazendo parte das experiências de homens e mulheres policiais.

Ademais, torna-se fundamental entender a questão do poder nesse sentido mais amplo para, consequentemente, entender o processo de incorporação das mulheres na PM e a dimensão do empoderamento legitimado para e por elas na instituição.