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3 A PM ENQUANTO INSTITUIÇÃO TOTALITÁRIA

4.1 A INTERSECCIONALIDADE DAS CATEGORIAS SOCIAIS

4.1.1 As várias dimensões da vida social

4.1.1.4 A categoria idade/geração

No que diz respeito a categoria geração parece não haver o consenso teórico que há quando estar-se referindo a gênero, classe e raça/etnia. Em outras palavras, não é atribuído à categoria geração o mesmo estatuto teórico atribuído a essas outras categorias (gênero, classe ou raça/etnia) (SAFFIOTI, 2000). A idéia é a de que gênero, classe, raça/etnia constituem-se em dimensões fundantes da vida social, haja vista serem geradores de processos de diferenciações e contradições sociais. Enquanto que geração não aparece como dimensão fundante da vida social e não se apresenta, portanto, como categoria que produz diferenciações sociais. Britto da Motta (2000, p.6) argumenta que posições como essas defendem o uso do gênero, classe e raça/etnia no campo das contradições sociais, enquanto que geração estaria apenas situado no campo hierárquico. E isso faz da geração uma dimensão da vida social que, embora gere contradições, não se apresenta como grande geradora de diferenciações sociais entre os indivíduos, pois acaba por homogeneizar experiências desses indivíduos e, inclusive, diluir diferenças de gênero e classe. Isso explica, portanto, porque estudos não atribuíam grande importância teórica à categoria geração.

No entanto, estudos mais recentes como os de Britto da Motta (1999; 2000); Sarmento (2000); Castro (1992) vêm discutindo e demonstrando a necessidade de atribuir à categoria geração uma maior importância, pois categoria (como as outras) fundante da vida social, e que perpassa o campo da hierarquização social, estruturando os diversos grupos etários e as diversas experiências desses grupos na sociedade atual.

Nessa perspectiva, Sarmento (2005, p. 3) argumenta que

“A geração não dilui os efeitos de classe, de gênero ou de raça na caracterização das posições sociais, mas conjuga-se com eles, numa relação que não é meramente aditiva nem complementar, antes se exerce na sua especificidade, activando ou desactivando parcialmente esses efeitos.”

Ainda nessa perspectiva, Britto da Motta (2000) analisa o par idade/geração, colocando que a tentativa de entendimento desse par nos direciona, inevitavelmente, ao campo das relações de poder. Isso

“porque se realizam num entrelace mútuo que se faz e desfaz, ao mesmo tempo em que se articulam com outras categorias relacionais (...) como dimensões co-extensivas (...)” (BRITTO DA MOTTA, 2000, p.6).

A autora reforça em sua discussão o que denomina de “inseparabilidade analítica” entre idade/geração e outras categorias relacionais.

“A determinação geracional não é, em cada conjuntura, nem única nem unívoca. (...) É distinta em cada classe social, em cada categoria de sexo, etc. É específica para cada uma delas”. (BRITTO DA MOTTA, 2000, p.6)

A partir dessa perspectiva, o tempo dos indivíduos, vivido simultaneamente como idade e geração é, não só tempo biográfico mas também tempo histórico. E, através desse tempo social (que nos situa enquanto crianças, jovens, adultos ou velhos,) as relações de poder são travadas, pois formadas categorias ou grupos de idades. E é exatamente a partir da formação desses grupos de idades que é permitida a realização ou não de determinadas ações sociais e a expressão de relações de poder vai sendo concretizada na perspectiva geracional (Britto da Motta, 2000).

Dessa forma, é importante pensarmos a realidade de indivíduos no contexto militar, tendo como eixos as categorias relacionais que permeiam esse universo - o gênero, a etnia/raça, a classe e a idade geração, pois isso permite a compreensão do espaço militar a partir do entendimento de como a vida social dos indivíduos que o constitui encontra-se envolta de limites e possibilidades. E mais: que estes limites e possibilidades perpassam o campo hierárquico das relações sociais e das relações de poder, que são travadas no espaço militar.

A categoria idade aparece como uma definidora de postos ocupados, haja vista que o tempo de serviço é um definidor da ascensão aos postos obtida pelos/as militares. Espera-se anos para completar tempo de serviço e idade suficientes para alcançar postos mais altos na instituição. Ou seja, a divisão por idade impõe limites e produz uma ordem de onde cada um/a deve se manter na instituição.

Uma divisão, portanto, socialmente induzida, pois, como coloca BOURDIEU (1993) “as divisões entre as idades são arbitrárias”, haja vista não se saber onde se inicia a velhice. Uma arbitrariedade camuflada, no interior da instituição, pela afirmativa, através do discurso, de que com o tempo de serviço e a maturidade adquirida com a idade, os/as militares vão galgando e adentrando postos mais

avançados quando, na prática, assistimos na referida instituição, esse dado biológico que é a idade, sendo socialmente manipulado e manipulável. O que confirma a colocação de MOTTA (1999), quando diz que a idade não é apenas biológica, assim como a geração não é apenas social. Vivemos a geração de acordo com a idade, mas também de acordo com as relações de gênero.

Os/as militares, principalmente em se tratando dos homens militares, já que têm mais tempo na instituição, ao alcançar 50-60 anos, são considerados incapazes de continuar assumindo certos cargos, a exemplo das atividades ostensivas, dos serviços de rua. A instituição, portanto, “oxigena a produção” com pessoas com menos idades e vai perpetuando o conflito de gerações, cuja dominação encontra-se cada vez mais, assumida por parte das idades consideradas medianas (25 - 40 anos).

As colocações de alguns dos entrevistados ilustram o fato de a instituição militar definir lugares para situar as pessoas em termos de idades:

“Não é fácil sairmos da função de soldado e chegarmos a postos mais altos. Os mais altos escalões não são para qualquer um. Mas para quem tem mais conhecimento, por exemplo. E os que vão chegando, os mais novos que a gente em termos de idade também vão ocupando postos que deveriam ser nossos”

(REIS, soldado, 40 anos) “(...) não é fácil crescer aqui dentro. Tem sempre os que são protegidos e seguram logo o seu lugar. E a gente vai ficando no posto raso mesmo, com a idade avançada. Digo a gente desprotegido, que é pobre, negro.”

(NEVES, soldado, 48 anos) “(...) nós, mais velhos, que não alcançamos postos mais altos, também não ficamos na mesma atividade. Por exemplo, normalmente não fazemos atividades muito pesadas quando alcançamos mais idade.”

(FERNANDES, soldado, 46 anos)

O tempo não é, portanto, o mesmo tempo para todos no interior da PM. Principalmente se pensarmos que há um “tempo de gênero” na instituição. As mulheres, que chegaram posteriormente aos homens numa instituição essencialmente masculina, ainda não enfrentam, em sua maioria, tantos problemas com a questão da ascensão a postos mais altos quando se trata dessa questão “tempo”, haja vista não terem cumprido o tempo cronológico mínimo exigido para tal ascensão. Por outro lado, vê-se mulheres, em cargos de oficiais, por terem

adentrado a instituição não como praças (soldado ou sargento), mas como já oficiais (tenentes). Assim, homens e mulheres se situam, na PM, num tempo social diferente, pois o mesmo tempo não é o mesmo tempo para todos e todas. É o que Mannheim chama de “tempo social diferente”, por vivermos cada tempo de acordo com as nossas identidades - de gênero, de classe, étnica/racial, idade/geração, enfim. Assim, para cada grupo de idade “o mesmo tempo é um tempo diferente” (MANNHEIM, 1928, p. 124).

Atualmente, há conflitos de gênero e de geração na PM porque, se de um lado, homens se indignam com mulheres ocupando postos mais elevados que os que eles ocupam, homens mais velhos também não aceitam que os mais jovens assumam cargos mais elevados. Mas é o que tem acontecido, principalmente porque são os jovens de classe média aqueles que têm alcançado cargos do oficialato, já que o formato para acesso a esses cargos é o vestibular que acaba excluindo os mais velhos, negros e oriundos de classe menos oportunizada, pois mais distantes dos conteúdos exigidos para o concurso. A colocação de um dos oficias trouxe a tona essa questão:

“...não temos dados precisos sobre isso, mas é certo que a PM tem absorvido cada vez mais jovens para o oficialato. Porque são os jovens que passam na prova que é feito seja externo ou interno; os mais velhos estão pouco preparados, é isso.”

(SAMPAIO, Capitão, 37 anos)

As falas abaixo mostram as disputas travadas no seio das relações sociais na instituição em meio aos conflitos de gênero e geração na PM.

“...imagine se eu vou bater continência para uma mulher?! Acho isso um absurdo...”

(CRAVO, Soldado, 31 anos). “...um dos problemas da PM é a ascensão por parte de policiais muito jovens. Não têm maturidade para estar no comando. No meu tempo não era assim; a gente precisava crescer na profissão, amadurecer e só assim, depois de muito tempo poderíamos ocupar cargos mais altos.”

(MARDEN, Capitão, 53 anos)

No que diz respeito ao conflito geracional, percebe-se por parte dos oficiais mais novos - que podem vir a ser ou foram beneficiados com as novas formas de

alcançar postos mais elevados na PM, a exemplo da meritocracia e dos concursos internos - uma defesa que, sabemos, perpassa o campo de interesses pessoais. Avançar para postos mais elevados sem considerar a idade e o tempo de serviço significa, para os oficiais tenentes, por exemplo, beneficiar-se e passar para o campo do domínio, enquanto para outros (os já capitães, majores e que tiveram que esperar longo tempo para alcançar postos mais elevados) significa dividir ou, quem sabe, até perder espaço para que outros (os mais jovens) passem a exercer o domínio que antes era seu. Uma disputa de poder, portanto.

A verdade é que as representações simbólicas, que permeiam as relações de trabalho e a construção de identidades de gênero e idade/geração dos/as policiais militares, reforçam e encontram-se reforçadas pelas relações acerca da natureza estrutural da organização militar. Daí porque, ao se pensar essas identidades na PM, deve-se considerar que elas incluem práticas de significação e sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são traduzidos pelos/as policiais em identidades. E mais: as categorias sociais gênero e idade/geração estão envoltas por relações de poder e expressam diferenças, oposições, conflitos e/ou alianças e hierarquias no interior da Instituição Militar.

O que significa que categorias sociais como gênero, etnia/raça, classe social e idade/geração estão inscritas no corpo e cultura dos sujeitos militares e expressam relações de poder pois, envoltas nessas dimensões sociais estão as convenções, normas e práticas sociais da instituição, que acabam por se materializar nos corpos desses sujeitos. Daí a importância de entender o entrelaçamento das categorias sociais como trazendo implicações na produção de sujeitos, corpos, e identidades coletivas no contexto da instituição militar e, consequentemente, compreender as formas de dominação/opressão sob a qual está estruturada a PM, e as várias formas de exercício de poder que, sem dúvida, concretizam essas opressões.

5 CONFIGURAÇÕES DAS RELAÇÕES SOCIAIS DE GÊNERO E DAS RELAÇÕES DE PODER NA PM

“Da perspectiva das relações sociais, homens e mulheres são, ambos, prisioneiros de gênero, embora de maneiras altamente diferenciadas, mas inter- relacionadas” (Jane Flax)

Este capítulo traz a pesquisa empírica da temática trabalhada com mais rigidez de detalhes, haja vista tratar-se, mais especificamente, da compreensão das relações de gênero e de poder na instituição militar, a partir da análise dos símbolos e significados revelados pela instituição, como constituintes dessas relações.

Dentre as muitas instâncias onde se pôde observar a instituição de símbolos e significados na PM, a linguagem foi, sem dúvida, a mais eficaz e persistente. A linguagem corporal aparece como elemento que aponta para os/as militares como seres que se comunicam, se interagem, também através de suas expressões corporais. É que “o gênero reflete um saber que estabelece significados para as diferenças corporais” (SCOTT, 1992, p.13). Trata-se, aqui, de comunicação espontânea, anterior mesmo às regras conceituais e comportamentais que são estabelecidas em forma de linguagem verbal.

A linguagem do corpo do/a policial baseia-se em atitudes diretas, presentes e tão fortemente marcadas que nos dá indícios do tipo de formação a que “são submetidos” e a que “se submetem” os/as militares, no que tange às questões como as voltadas às relações de gênero e às relações de poder.

É claro que a linguagem corporal por si só não denuncia todo o cabedal de informações que nos levam à constatação da instituição militar como “despreparada” para receber as mulheres em seu interior. Mas sinaliza a importância da comunicação não-verbal nas relações sociais.

Por outro lado, a linguagem verbal, enquanto universo de símbolos que permitem homens e mulheres se comunicarem entre si, aparece, sem sombra de dúvidas, como outra importante denunciadora das relações sociais dos/as militares.

As falas que aparecem entre os/as policiais militares, e que foram valorizadas para a análise das relações sociais de gênero e de poder, possuem

características peculiares a esses indivíduos. Características que permitem uma variedade de interpretação e exposição sem, contudo, fazer desaparecer o seu caráter (significado) público. Em outras palavras: há uma completa relação entre o mundo dos fatos reais e as estruturas de linguagem detectadas entre os/as policiais militares.