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3 A PM ENQUANTO INSTITUIÇÃO TOTALITÁRIA

4.1 A INTERSECCIONALIDADE DAS CATEGORIAS SOCIAIS

4.1.1 As várias dimensões da vida social

4.1.1.2 A categoria raça/etnia

Assim como a classe social e o gênero, a raça/etnia é, também, importante, pois, demarca o lugar ocupado pelos indivíduos na vida social. Isso porque, os sistemas de opressão vão “recolocando” as posições ocupadas pelos indivíduos, o que implica que esses diferentes sistemas vão “moldando” e “remoldando” as experiências travadas pelos sujeitos sociais. Bairros (1995, p.459), ao tratar dessa questão explicita que o gênero ressignifica a experiência de ser negro/a da mesma forma em que a experiência de gênero passa a ser ressignificada através da raça, da idade/geração, da orientação sexual ou da classe. O que significa que há diferentes possibilidades entre as experiências de vida de homens e mulheres, mas também entre as experiências de brancas/os e negras/os, seja no que diz respeito a escolarização desses indivíduos, ao acesso ao mercado de trabalho, e à própria expectativa de vida dos mesmos.

A autora nos leva ao entendimento de que não há a possibilidade de considerarmos que o tempo, a raça, a classe social, o gênero não demarcam e não reconfiguram as experiências dos sujeitos sociais, ao demonstrar que a experiência de opressão das mulheres é marcada pela posição que ocupam num sistema de dominação interligado e que, portanto, experiências diferenciadas perpassam a vida de mulheres negras, brancas, com situação social mais ou menos privilegiada, num tempo social diferenciado. Não há, portanto, a possibilidade de uma experiência comum de opressão; as mulheres segundo Bairros (op. cit. p. 459) desenvolvem pontos de vistas diferentes sobre o que é ser mulher, pois, experimentam a opressão a partir de lugares diferentes. Assim, uma mulher negra trabalhadora pode

ser mais oprimida que uma mulher branca pertencente à mesma classe social, pois, pelo fato de ser negra pode ser tratada de forma distinta, portanto, mais oprimida.

Dessa forma, a categoria etnia/raça aparece como elemento que integra uma outra dimensão fundamental para o entendimento da interseccionalidade. Nesse caso, para o entendimento da articulação dessa dimensão que configura as desigualdades raciais (etnia/raça) com outras dimensões, como a de classe que configura desigualdades econômicas e sociais.

Isso significa que classe e raça encontram-se entrelaçadas, e não seria diferente no que se refere ao grupo social que compõe a instituição militar. Os/as policiais entrevistados/as que se declararam “pobres” são, em sua maioria, negros - vale salientar que, considerou-se negro neste estudo, pretos e pardos, pois, como coloca Bairros (1991) o termo compõe uma categoria social definidora de uma “identidade política.”

90.2% dos/as entrevistados/as demonstraram ter consciência da sua identidade negra (observar quadro 5 na descrição do perfil sócio-biográfico dos/as entrevistados/as)e revelaram o conhecimento de que a instituição tem atitudes ainda racistas, embora atitudes sutis, ou melhor, através do que podemos chamar de “racismo velado.” É importante ressaltar, isso não só por significar uma atitude que pode se dizer, política, por parte dos/das entrevistados/as, mas também, porque, como observa Neves em seus estudos,

“No Setor de Identificação da Polícia Militar da Bahia, não é permitida a auto-declaração. O policial, tanto faz masculino ou feminino, não pode se autodeclarar negro ou negra. Há, no serviço de identificação da Corporação, uma equipe composta de policiais militares identificadores que ainda se baseia nos critérios determinados pelo Exército Brasileiro, (Criação do Serviço de Identificação do Exército Brasileiro em 1916) que identifica o/a Praça e o/a Oficial, frustrando-lhes o direito de se auto-declarar negra ou negro; impedindo que conste em sua ficha de identificação como ele próprio se reconhece e quer ser reconhecido e sim como os identificadores oficiais os reconhecem, impossibilitando de constar nos assentamentos de cada policial militar os seus sinais fenotípicos.” (NEVES, 2008, p. 37)

Essa não possibilidade de auto-identificação pontuada por Neves aparece como um agravante à real estatística de negros e negras na PM, haja vista que essa identificação atribuída acaba por ocultar o registro de negros e negras na instituição. Em outras palavras: não há, na PM da Bahia, nas fichas de identificação dos sujeitos militares, registros de policiais negros e negras. Isso porque, segundo o setor de

identificação da PM/BA, são considerados negros somente os africanos puros (legítimos) e, a partir do momento em que os africanos misturaram-se aqui no Brasil, deixaram de ser legítimos. (NEVES, 2008).

Negros e negras parecem, de fato, não existirem na composição étnica/racial da PM da Bahia, quando analisamos os registros da instituição, pois os/as policiais são declarados/identificados como pardos/as, pardos/as claros/as, pardos/as escuros/as e brancos/as. Isso nos indica que a utilização do termo pardo/a não inclui, definitivamente, pretos/as, e que não implica, portanto (o termo pardo/a), numa categoria social que define uma “identidade política”, como sugere Bairros (1991). Interessante é perceber, também, que a PM da Bahia, apesar de considerar que no Brasil não há negros puros e legítimos, parece entender que há brancos puros e legítimos, haja vista que o termo branco/a aparece como definidor de uma categoria social na PM da Bahia.

Mas, como foi dito anteriormente, a maior parte dos/as sujeitos militares que compuseram essa pesquisa se auto-referiram negros (89,6%) e negras (92,5%) - observar quadro 5 - independentemente de como aparecem identificados em suas fichas na instituição e, além disso, fizeram alusão às categorias sociais (raça e classe) em suas falas, ratificando a interseccionalidade existente entre essas dimensões sociais. Já nos indicam Carvalho; Pereira (2006) que discriminados/as há séculos e com restritas oportunidades de educação, de inserção produtiva e ascensão social, pretos/as e pardos/as se estabelecem, historicamente, na base da pirâmide social. O Quadro 16 demonstra a percepção dos/as entrevistados/as de que a instituição tem práticas ainda racistas, embora através de atitudes sutis.

Quadro16. Percepção por parte de homens e mulheres sobre as diferenciações étnicas / raciais na PM.

DIFERENCIAÇÕES NO TRATO DEVIDO A QUESTÕES ÉTNICAS/

RACIAIS?

HOMENS MULHERES TOTAL

GERAL

Não existe dificuldade para quem se

dedica/esforça. 29 06 35

TOTAL 145 40 185

Fonte: dados colhidos com a pesquisa.

Observa-se que 80% dos homens negros entrevistados reconhecem práticas racistas por parte da PM, assim como admitem que, muitas vezes, essas práticas são sutis e quase imperceptíveis. As falas de alguns entrevistados ratificam isso:

“Pra mim que sou negro é muito mais difícil crescer, chegar a postos mais elevados. Imagine preto e pobre? É muito difícil, embora não seja impossível.”

(VARGAS, soldado, 38 anos) “...Na verdade existe uma concorrência como em todo órgão e instituição. E nessa concorrência ganham os mais fortes. E os mais fortes são os brancos, os ricos. Pra quem é preto como eu fica mais difícil. Pra quem é preto e pobre como eu fica mais difícil ainda.”

(ESPERANÇA, soldado, 35 anos) “O que sei é que não é fácil não. A gente não sabe nem por onde começar porque a gente sabe como é complicado vencer num país que é racista, preconceituoso. E estamos no Brasil, a instituição tá no Brasil e as discriminações existem. Os negros e pobres estão sempre em último plano, quando os outros (os brancos e ricos) já tiverem ocupado os espaços. E então o que sobra pra gente? os cargos mais baixos.”

(VENTURA, sargento, 39 anos)

“Pobre e negro não tem muita oportunidade não. Repare que somos nós que sempre estamos nos postos mais baixos e pegando no pesado.” (MACHADO, soldado, 41 anos)

Mas, sabemos que isso se complica quando nos referimos às mulheres negras. Isto porque, se a classe social e a raça/etnia demarcam espaços no interior da PM, as hierarquias de gênero também aparecem como um marco. Homens e mulheres ocupam espaços diferenciados, pois têm oportunidades diferenciadas na

instituição militar. Ou seja: numa instituição essencialmente masculina e patriarcal é fato que as mulheres enfrentam diferenciações sociais e assumem lugares diferenciados dos que os homens assumem.

Isso se agrava mais ainda em se tratando de mulheres negras, pois as mulheres brancas, por exemplo, têm mais espaços a postos mais altos do que as mulheres negras. Em outras palavras as hierarquias de gênero têm uma raça na PM. O quadro 16 nos revela que 85% das entrevistadas percebem e admitem diferenciações étnico/raciais, de gênero e sociais na PM. E as falas de algumas das mulheres confirmam essas diferenciações sociais na instituição militar.

“Não é fácil ser mulher, negra e pobre aqui dentro. Apesar de sermos maioria, sofremos mais discriminações sim, embora não sejam muito evidentes. Mas a gente sabe que há.”

(LEVIN, soldada, 35 anos) “Ser mulher, negra e pobre é enfrentar as três discriminações de vez aqui dentro. É complicado, mas vamos vencendo. Já somos vencedoras de estamos aqui.”

(MESQUITA, soldada, 26 anos) “(...) Ser mulher é matar um leão por dia. Ser mulher negra é matar dois. E ser mulher negra e pobre é matar três leões por dia...”

(PORTINARI, sargenta, 33 anos) “Vamos dizer que ser mulher negra e enfrentar uma instituição ainda machista é muito difícil. Ainda temos muito que caminhar na instituição para alcançarmos postos maiores. E nós, negras, temos que caminhar mais ainda. Mas é verdade que como somos maioria aqui dentro (nós, negros e negras) não tem como ser uma coisa tão forte assim - falo do racismo. Acho que para os homens fica mais fácil. Por conta do machismo, nós mulheres já somos minoria, somos minoria no poder e isso piora para nós negras.” (CARVALHO, Sargenta, 34 anos)

O quadro abaixo mostra a distribuição dos postos de mais altos escalões da Polícia Militar (Major, Capitão, Tenente) no universo pesquisado, e revela a presença marcante de homens brancos (83.3%), confirmando o fato de que esses cargos estão reservados aos homens brancos e, embora em um pequeno percentual (16,7%), aos homens negros. Quanto às mulheres, no universo pesquisado não foi encontrada sequer uma oficial. Há apenas uma sub-tenente (que é considerada, na escala da graduação, como “praça graduada”) branca. Vale salientar, porém, que

esses dados foram frutos de observações e conversas com os sujeitos entrevistados já que, como foi colocado anteriormente, na PM/BA não consta a identificação de negros e negras em seus registros.

Quadro 17 Distribuição dos postos mais altos da unidade pesquisada por etnia/raça (2012) GRADUAÇÃO Brancos/as Negros/as TOTAL H M H M Major 1 0 0 0 1 Capitão 2 0 0 0 2 Tenente 2 0 1 0 3 TOTAL 5 0 1 0 6

Fonte: Dados colhidos com a pesquisa

Dessa forma, ser policial militar vai significar vivências de trajetórias diferenciadas para homens e mulheres; para homens e mulheres com pertencimentos étnico-raciais diferenciados; para homens e mulheres pertencentes às classes sociais distintas, conforme veremos no texto seguinte.