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5 O PORQUÊ DO PÂNICO MORAL NO RIO DE JANEIRO

5.1 Historicidade da repressão à violência urbana no Rio de Janeiro

5.1.1 A caveira como símbolo – do Estado Novo ao Bope

Um exemplo claro de como a lógica da vingança está intrincada na política criminal carioca é o símbolo do Bope:

A PM carioca gosta de cobra e de caveiras

O núcleo da Companhia de Operações Especiais (Nucoe) da Polícia Militar do Rio de Janeiro, que incorporará pessoal com cursos de especialização em guerrilha e antiguerrilha, e sabotagem e antisabotagem, nasceu, na semana passada, sob uma chuva de protestos. A apresentação de seu distintivo – uma caveira trespassada, por cima, por um sabre, que lembra o antigo Esquadrão da Morte9 – mereceu a condenação de políticos, da imprensa e da população. O coronel Nilton Cerqueira, comandante da PM, defendeu o símbolo – mas retirou-o e apressou-se a informar que vai providenciar um outro. Antes que a semana terminasse, a PM carioca serviu ao público outra surpreendente revelação: a de que o Batalhão de Polícia de

9 O Esquadrão da Morte foi uma organização paramilitar surgida no final dos anos 1960 cujo objetivo era perseguir e matar supostos criminosos tidos como perigosos para a sociedade. A mais famosa organização foi a "Scuderie Le Cocq", cujo nome homenageava o detetive Milton le Cocq, que foi perdendo importância ao longo da década de 1990 no estado do Rio de Janeiro devido a ação de membros que agiam sem controle, bem como faziam a segurança de contraventores. Seu símbolo é uma caveira com duas tíbias cruzadas semelhante à usada na bandeira dos antigos piratas

Atividades Especiais mantém presa, numa jaula, uma jiboia de 2 metros. Policiais disseram que a cobra é apenas um bicho de estimação – mas ex-detentos do Batalhão afiram que ela é usada em sessões de torturas. (VEJA, 19/08/81)

Além da alusão a um grupo paramilitar de extermínio de bandidos no símbolo da corporação, o Bope - assim como ocorre com a ROTA em São Paulo - possuem influência direta do aparelho repressor militar do regime de 1964. De forma análoga, os Esquadrões da Morte da polícia na década de 1960 eram formados com profissionais treinados na ―Polícia Especial‖ (P.E) da década de 1930, braço armado da Delegacia de Ordem Política e Social (D.O.P.S). A ―Polícia Especial‖ era uma verdadeira tropa de choque do governo Vargas aonde a ação policial passou a incorporar a tortura, a execução, prisão ilegal como técnicas comuns de atuação. Vários dos membros do Esquadrão Motorizado da Polícia Especial, cujo símbolo era também um crânio com ossos cruzados, participaram da fundação do Esquadrão da Morte:

Denúncias na justiça contra os crimes cometidos pelo esquadrão começaram a surgir. Em 1958 o detetive Eurípedes Malta foi denunciado como o primeiro chefe do esquadrão da morte. Mas a ação do grupo continuou apesar dos eventuais processos. As atividades do esquadrão continuaram, destacando-se a atuação do detetive Milton Le Cocq de Oliveira, o ―Gringo‖ que passou a liderar o grupo. Le Cocq, juntamente com o detetive José Guilherme Godinho Ferreira, o ―Sivuca‖, além de detetive Euclides Nascimento, vulgo ―Garotão‖, tinham pertencido à famosa ―P. E‖ (Polícia Especial ) que aterrorizava os presos políticos durante o ―Estado Novo‖. Assim, na genealogia do esquadrão da morte encontra-se as violências, torturas e arbitrariedades praticadas pela polícia durante o Estado Novo. (COSTA, 1997, p. 9)

A violência policial acompanhara o crescimento dos centros urbanos no Brasil, principalmente o eixo Rio-São Paulo. Várias características presentes na repressão policial atual já eram descritas na primeira metade do século XX:

Boris Fausto argumenta em Crime e Cotidiano (A Criminalidade em São Paulo (1880-1924) que, comparando-se com a atualidade, São Paulo de fins do século XIX e início do XX (1880 a 1924), era uma cidade relativamente tranquila. Contudo, segundo o autor, o sentimento de insegurança em determinados momentos e espaços urbanos já estava presente entre os moradores da cidade. A polícia, além de reprimir com violência grevistas e os inimigos políticos do Estado, era regularmente acusada pela imprensa de praticar arbitrariedades contra a população. Tanto que, em 1898, o jornal A Nação aconselhava que a população não passasse nas ruas ou lugares aonde estivessem soldados da polícia. Existiam relatos de presos comuns de serem submetidos a espancamentos, alguns deles brutais, dentro de delegacias de polícia. O famoso método de tortura chamado de ―pau de arara‖ iria originar- se nos anos quarenta em São Paulo. (COSTA, 1997, p. 2)

Até bem pouco tempo atrás esta violência policial brutal era institucionalizada nas polícias civil e militar, como afirma Luiz Eduardo Soares:

Na discussão sobre a permanência de instrumentos de tortura no ambiente policial, Soares lembrou que a Polícia Civil do Rio de Janeiro aplicou aulas sobre como bater até 1996. Segundo ele, até 2006, o Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) deu aulas de como torturar. (AGÊNCIA BRASIL, 28/11/2013)

Apesar de não existirem mais procedimentos de tortura no curso de formação dos policiais, estas práticas permanecem na cultura policial carioca, sendo propaladas nos gritos de guerra da corporação:

‗Grito de guerra‘ de treinamento do BOPE: ―O interrogatório é muito fácil de fazer / pega o favelado e dá porrada até doer. O interrogatório é muito fácil de acabar / pega o bandido e dá porrada até matar. (...)

Esse sangue é muito bom / já provei não tem perigo é melhor do que café / é o sangue do inimigo. (...)

Bandido favelado / não se varre com vassoura Se varre com granada / com fuzil metralhadora.‖ (SOARES E SOUZA, 2008, p. 1)

Além da militarização fortemente arraigada às políticas de controle do crime, a própria aflição com os elementos desviantes pode encontrar raízes profundas na sociedade carioca. ―A polícia age a partir do pressuposto da suspeição generalizada, da premissa de que todo cidadão é suspeito de alguma coisa até prova em contrário e,é lógico, alguns cidadãos são mais suspeitos do que outros.‖(CHALHOUB, 1996, p. 23)

Em Cemitério dos vivos, Lima Barreto já descrevia em 1921 esta diferenciação:

A polícia, não sei como e por que, adquiriu a mania das generalizações, e as mais infantis. Suspeita de todo o sujeito de nome arrevesado, assim os russos, polacos, romaicos são para ela forçosamente caftens,; todo o cidadão de cor há de ser por força um malandro. (LIMA BARRETO, 1993, p. 14)

A suspeita de todo o cidadão de cor ser por força um malandro se expressa na terminológica ―cor padrão‖ da polícia carioca10 que traduz a raça negra como predisposição ao mundo do crime. Elemento presente no início do século XX, ainda é moeda recorrente nas policias militares de todo o Brasil. Em 2013 um documento da PM de Campinas (SP) identificava assaltantes como elementos de cor parda e negra. No documento divulgado pelo

jornal Diário de S.Paulo, o capitão Ubiratan de Carvalho Góes Beneducci, após a ocorrência de diversos assaltos no bairro Taquaral - um dos mais nobres de Campinas -, orienta a tropa a agir com rigor, caso se depare com jovens de 18 a 25 anos, que estejam em grupos de três a cinco pessoas e tenham a cor parda ou negra. Essas seriam as características de um suposto grupo que comete assaltos a residências no bairro. Tal como em 1921, a figura do negro permanece associada à criminalidade e depositário das ações punitivas da polícia, seja ela na forma dos esquadrões paramilitares, os caveiras do século XX, ou nos esquadrões especiais, os caveiras do século XXI11.

Esta genealogia própria do símbolo da caveira nas forças policiais que, originária da Polícia do Estado Novo, passa pelos Esquadrões da Morte da década de 60 e deságua no Bope, demonstra que a violência sem limites legais reservada ao desviante, além da supressão dos direitos dos indivíduos criminalizados – em especial pobres e negros – mostram como a repressão policial margeia o cotidiano da cidade por todo o século XX.

A ideia de uma polícia agressiva e punitiva já está emaranhada no imaginário da cidade em uma violência policial naturalizada – e muitas vezes ignorada - nos noticiários dos jornais, gerando uma lógica difusa em que uma dimensão moral torpe de justiça (muitas vezes calcada em irregularidades jurídicas, supressão dos direitos essenciais e revanchismo) se sobrepõem à dimensão legal do Estado de Direito.