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2.4 Etapas do Pânico Moral(II)

2.4.5 Volatilidade

De forma volátil, o pânico desapareceu do noticiário no pós ocupações militares. Mas diferentemente de outros eventos de Pânico Moral, ela não sucumbira à saturação do tema ou a falta de interesse do público no embate que emergira dias antes na formulação do Pânico Moral. No caso da semana de violência de novembro de 2010 no Rio de Janeiro ele se transformara em euforia e determinaria toda uma atmosfera de catarse nos dias posteriores às ocupações. Uma alegria contagiante e um discurso de esperança no futuro da cidade surgira como efeito colateral da adrenalina dos dias anteriores.

Na sexta-feira 26 de novembro, a euforia tomou conta dos jornais. Com a espetacularização da transmissão ao vivo pela TV da ocupação do dia anterior, os jornais destacavam a fuga dos traficantes pela mata enquanto os blindados avançavam sobre a Vila Cruzeiro. ―A fortaleza era de papel‖ (O Globo), o ―Rio contra-ataca‖ (O Dia), ―Bundões da Vila-Cruzeiro fogem como baratas‖ (Meia-Hora), ―Deu para entender quem manda no Rio?‖

(Extra) foram as manchetes daquele dia, com júbilo pela vitória. No sábado e domingo subsequentes, os jornais ainda colhiam os louros do confronto anterior em termos de geração de conteúdo sobre o acontecimento, enquanto se delineava aquela que fora batizada como a batalha do Alemão. Na segunda-feira 27 de novembro, com a ocupação do Complexo pelas forças militares, os jornais exaltaram a reconquista do território pelo Estado e a esperança de paz no futuro com a nova realidade estabelecida. Estava alcançado o último estágio do Pânico Moral - a volatilidade - assim como subitamente a atmosfera de medo surgia ela se dissipava também sem alarde.

As matérias posteriores à segunda-feira passaram a destacar não apenas o apoio às ações policiais, mas o regozijo e a alegria com a vitória.

Cartas de amor para os guerreiros da paz

EXTRA leva mensagens dos cariocas para policiais no Alemão e emociona o comandante da PM, coronel Mário Sérgio (EXTRA, 30/11/2010, p. 1)

O Meia-Hora, no mesmo dia, dispunha aos seus leitores um pôster com dizeres similares aos da Operação Lei Seca: ―Operação paz no Rio: Eu apoio‖. No Globo, uma das cartas destacadas expressava o discurso de esperança e ruptura que era corrente nos quatro jornais analisados:

Uma nova história para o Rio

A máscara caiu. A retórica dos defensores destes marginais de que a polícia entrava atirando e matando foi por água abaixo. O que estamos

assistindo é a força legalizada dar todas as condições a estes facínoras

de se entregarem ordeiramente. Mas não querem. Preferem o confronto. E muitos de seus familiares, que também deveriam ser presos como cúmplices, continuam dando cobertura a eles, como a família de Zeu. Esta ocupação é emblemática. Agora, até os pequenos bandidos que intimidam o cidadão nas ruas vão começar a ver medo. É questão de tempo. Parabéns a todos que apoiaram integralmente a ação da polícia, dos militares e das Forças Armadas. Começamos a escrever uma nova história para o Rio e, quiçá, para todo o país. (Osmany Magalhães Lacerda Rio. O GLOBO, 30/11/2010, p. 8)

É preciso ressaltar que o discurso de entusiasmo frente às ocupações não se encontrava exclusivamente nesses jornais, mas espalhado por amplos setores da sociedade, que repercutiram imediatamente o caso, ao ponto de o presidente Lula anunciar num programa de rádio que faria uma visita ao Complexo do Alemão. Além dessa atitude evidenciar um apoio a Sérgio Cabral, com pretensões à presidência como se especulava na época, Lula tentava mostrar com a declaração que o Alemão estava tão seguro que poderia até receber o Chefe de Estado de forma mais segura:

Eu já ia visitar o Complexo do Alemão. Agora vou com muito prazer. (O GLOBO, 30/11/2010, p. 15)

O editorial de O Globo chegou a dizer que aquela era a queda de uma das últimas cidadelas do tráfico na cidade, aonde se ―afirmou o monopólio do uso da força pelo poder público, como deve ser em território nacional. E ainda sai fortalecido o estado de direito democrático‖ (O GLOBO, 30/11/2010, p. 6).

O jornal traçava uma agenda para depois do Alemão aonde via a possibilidade de uma revitalização dos subúrbios derivada do processo de recuperação da área portuária do Rio de Janeiro. A atuação no Rio era destacada como exemplo para o país pelo Ministro da Justiça Luiz Paulo Barreto e os soldados do Exército presentes tanto na missão brasileira da ONU no Haiti quanto na ocupação do Complexo do Alemão eram caracterizados como a ―tropa gente boa‖.

Duas matérias em O Globo e em Extra parafrasearam a música de Gilberto Gil ―Aquele Abraço‖ afirmando a o retorno da tranquilidade do Rio de Janeiro:

E o Rio de Janeiro continua lindo

Aliviados e mais seguros, cariocas retornam a rotina e enfim, aproveitam a cidade. Depois de uma semana tensa e cinzenta, o sol voltou a brilhar forte num

final de semana decisivo para os cariocas, correspondendo à expectativa de que tempos melhores estão por vir. Da mesma forma que Gilberto

Gil escreveu em 1969, no quartel de Realengo onde estava preso a

canção ―Aquele abraço‖, enaltecendo o melhor do espírito carioca. Com os baluartes do tráfico retomados pelo Estado e a drástica redução dos ataques incendiários, a população do Rio de Janeiro pôde, enfim, desfrutar de uma sensação de maior segurança, retornando às atividades normais de lazer. Em toda a orla da Zona Sul, as areias ficaram lotadas de banhistas de diversas partes da cidade e de turistas que aproveitaram o dia ensolarado - que deve se repetir até o meio de semana, conforme a previsão de tempo - e o clima da paz. (O GLOBO, 29/11/2010, p. 12)

Houve um deslocamento no imaginário da cidade de uma representação como ―violenta‖ para ―maravilhosa‖ (FREITAS; GONÇALVES, 2012). No Extra, a tônica foi similar. Cabe lembrar que ambos veículos pertencem à Infoglobo, braço das Organizações Globo:

E o Rio continua lindo

Após a onda e violência, a cidade começa a voltar ao seu ritmo normal, com praias lotadas (..)

Paz no aterro

(...) O casal de atores Ronnie Marruda e Luana Lopes resolveram aproveitar o domingo ensolarado para passear na Lagoa Rodrigo de Freitas. Os dois namoravam em um dos píers do local, embalados pela vista de um dos pontos turísticos mais famosos pela cidade. (...)

- Não senti medo. Na verdade, ainda não acredito que isso tudo foi real. Para mim, o Rio deve ter sempre o gostinho dessa vitória transborda paz - disse a médica Teresa Cristina enquanto admirava do Aterro a Baía de Guanabara. (EXTRA, 29/11/2010, Especial, p. 11)

As fotos mostravam pessoas na Lagoa Rodrigo de Freitas e na Praia de Ipanema:

Famílias aproveitam o domingo de sol num dos deques da Lagoa Rodrigo de Freitas: sensação de paz, mais segurança e otimismo após a vitória do Estado sobre os bandidos que vinham aterrorizando a cidade. Meninas se refrescam na Praia de Ipanema, lotada de banhistas ontem. (O GLOBO, 29/11/2010, p. 12)

Em outra reportagem, O Globo enfatizou a ideia de um retorno à normalidade e à segurança na vida noturna:

Vida noturna também já volta ao normal Noite de sábado teve bares e restaurantes cheios

Depois de dias marcados pelo terror em várias regiões da cidade, sobretudo na Zona Norte, o carioca voltou a sair de noite. No sábado, o movimento de bares, restaurantes e casas de shows chegou próximo do normal. Até mesmo as áreas de lazer ao ar livre voltaram a atrair frequentadores, mesmo após o escurecer. No campo de futebol que fica próximo ao Túnel Rebouças, um torneio entre quatro times começou por volta das 19h de anteontem e só terminou às 23h. A confraternização entrou pela madrugada de domingo, com direito a churrasco e cerveja, numa grande confraternização. (O GLOBO, 29/11/2010, p. 12)

É importante apontar que as matérias destacavam o retorno à tranquilidade em locais distantes de onde houve os confrontos entre polícias e traficantes - os locais relatados eram na Zona Sul. Além disso, em nenhum deles - Praia de Ipanema, Lagoa Rodrigo de Freitas, Aterro do Flamengo, entrada do Túnel Rebouças na Fonte da Saudade - houve relatos de ataques criminosos nos dias anteriores e que ajudaram a justificar todas essas ações do Estado. Após a escolha do Rio de Janeiro como sede das Olimpíadas de 2016 e a proximidade com a Copa do Mundo de 2014, gerou uma onda virtuosa, pautada e reproduzida pela mídia (FREITAS; GONÇALVES, 2012) A pacificação foi adotada como um slogan e acolhida como necessária pelos jornais:

Esse quadro começa a se transfigurar, com a candidatura do Rio de Janeiro a sediar a Copa do Mundo e as Olimpíadas, respectivamente em

2014 e em 2016, e a união da prefeitura, do governo do estado e da União Federal em torno do projeto de trazer, para o Brasil, esses dois importantes megaeventos desportivos. Mas, para isso, a cidade precisava livrar-se de sua imagem violenta, precisava ser ―pacificada‖, ou não teria chance de vencer a disputa pela sede. (FREITAS; GONÇALVES, 2012, p. 57)

A ameaça do tráfico fora enquadrada como uma ameaça terrorista a realização dos grandes eventos no Rio. A euforia da ocupação acompanhava a euforia com a realização dos megaeventos na cidade. Kleber Mendonça (2011) aponta que esta vinculação fora feita posteriormente ao Complexo do Alemão, quando da ocupação do Morro da Mangueira:

De volta à edição de 20/06/11, a conversa entre os repórteres do RJTV e o major do Bope nos oferece ainda outras evidências deste funcionamento discursivo. (...) [Major Nunes termina a medição. Vemos o Maracanã ao fundo]: "O equipamento acabou de me confirmar a distância de 580 metros desse ponto até o anel superior do Maracanã.

[Hélter Duarte pergunta ao comentarista da Globo. Os três aparecem na imagem em que vemos o Maracanã bem próximo ao fundo]: "Qual a importância disso, Rodrigo? Qual a importância desse lugar? Estamos muito perto do Maracanã, né?" [Rodrigo Pimentel responde]: "Exatamente. Os fuzis utilizados pelos traficantes aqui na Favela da Mangueira (...) são os fuzis 762. Major Nunes, um fuzil 762 atinge o anel do Maracanã com letalidade ainda?

[Major Nunes]: "Sem dúvida nenhuma. Com esta distância de 580 metros um fuzil calibre 762, utilizado muito pelos traficantes, ele consegue sim atingir com letalidade o Maracanã".

[Hélter Duarte retoma a palavra]: Quer dizer, nessa área, Rodrigo, onde o poder público não chegava, os bandidos tinham um camarote privilegiado para o Maracanã. É isso?

[Rodrigo Pimentel conclui]: Exatamente. Para a Olimpíada e para a Copa do Mundo. A inusitada conversa é rica em apontamentos acerca dos deslocamentos simbólicos e espaciais vivenciados no Rio de Janeiro de hoje. De um lado, testemunhamos a ênfase na importância dos futuros eventos mundiais e a evidência dos riscos que a proximidade entre esta espécie de sítio de importância global e os territórios outrora dominados pelas 'classes perigosas' representava. (MENDONÇA, 2012, p. 8)

O poder do tráfico era visto diretamente como ameaça a realização dos jogos e os processos de pacificação eram verdadeiros ritos de instituição3 alterando os sentimentos e representações da população carioca:

O Globo apropriou-se do termo ―pacificação‖, replicando-o como um slogan. Veículos com a penetração do periódico examinado tendem a estabelecer como lugares significativos de consenso em torno de certas políticas públicas, daí a importância de sua adesão a essas iniciativas. (FREITAS; GONÇALVES, 2012, p. 66)