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2.4 Etapas do Pânico Moral(II)

2.4.1 Aflição

As coberturas dos episódios de violência ocorridos na cidade do Rio de Janeiro na última semana de novembro de 2010 edificaram etapas de uma construção simbólica de medo, apreensão, hostilidade, alívio e esperança no imaginário de seus leitores. Desde o início do mês de novembro, veículos eram queimados em vários pontos da cidade de forma esporádica. A partir da segunda-feira 22 de novembro, a prática cresce exponencialmente ganhando as manchetes de todo os jornais da cidade. Nos dias 22 e 23 de novembro (segunda e terça-feiras), a ação de bandidos queimando carros em vias expressas da cidade aterrorizava a população. No domingo anterior na Linha Vermelha, um veículo da Aeronáutica fora atacado a tiros de fuzil, dois carros foram incendiados, motoristas foram saqueados e uma granada explodiu na via. Na segunda-feira, o ataque ocorreu desta vez em Irajá no entroncamento entre a Via Dutra e a Avenida Brasil, com mais três carros em chamas. Os assaltos seguidos de ações de vandalismo em avenidas de grande movimento na cidade começaram a repercutir nos jornais como uma afronta organizada pelo tráfico de drogas contra a política das UPPs estabelecida pelo governo estadual. O que inicialmente eram considerados assaltos violentos e afrontas às forças policiais começam a se solidificar no imaginário da população como ações terroristas.

A escalada da violência é o tema dos primeiros infográficos que mostram uma cartografia da cidade destacando os pontos em que ocorrem os ataques. Com a ação se expandindo para ônibus e vans pela cidade o medo começa a afetar todos os estratos da população não só os proprietários de veículos. A ameaça imaginada vai se tornando real e mais grave, afinal a lógica do crime estava se transmutando em uma lógica de terror. Nos primeiros dias em que as queimas de veículos começaram a se espalhar pela cidade, as matérias ainda não identificavam as ações como práticas coordenadas de um único plano. Seriam mais um dos eventos pontuais em que as ações do tráfico avançavam sobre a população do ―asfalto‖ – antes o raio de alcance da violência dos traficantes se restringiria às comunidades e seus entornos. Eram eventos que ocorriam na cidade com uma regularidade espaçada. Um dos exemplos seria a queima do ônibus 350 na entrada da favela Pára-Pedro em 2005 que deixou cinco mortos e dezesseis feridos. Na barbárie, os traficantes jogaram gasolina nos passageiros, atearam fogo e impediram que o motorista do veículo abrisse a porta traseira para que as pessoas pudessem sair.

Principal programa da esfera da segurança pública no Rio de Janeiro, as Unidades de Polícia Pacificadora eram um dos pilares da repercussão positiva do governo Sérgio Cabral nos jornais. À época, já haviam sido instaladas 12 UPPs, em diversas regiões da cidade. Sob o pretexto de desarticular o poder paralelo do tráfico de drogas e das milícias sobre comunidades carentes no Rio de Janeiro, as unidades funcionavam como um posto avançado da polícia militar dentro das favelas. Apesar de não extinguir o tráfico de entorpecentes nas regiões ocupadas, acabava por atingir o poder ostensivo que os traficantes outrora exibiam além de prejudicar sensivelmente o comércio da droga.

Com o objetivo de conter a presença do narcotráfico nesses espaços urbanos, as primeiras unidades começaram a ser implantadas em novembro de 2008, no segundo ano do primeiro mandato do governador Sérgio Cabral (PMDB), que assumiu em 2007. Ao todo, são 34 UPPs, todas na capital. Apesar de ter sido reeleito em outubro de 2010, em parte graças ao otimismo do eleitorado diante do novo projeto de segurança, o governador enfrentava críticas em relação à efetividade do modelo de combate à violência que, a rigor, não acabava com o tráfico de drogas, apenas inibia, num primeiro momento, a exposição de armas, os atos de barbárie e o poder dos traficantes sobre o direito de ir e vir do cidadão. Entretanto, os jornais não questionariam abertamente o fracasso do projeto até 2013. Naquele final de 2010, a articulação de entusiasmo em relação ao projeto parecia entrar numa curva ascendente (MATHEUS, SILVA, 2013). As UPPs geravam a valorização dos locais ocupados e o sociólogo Dario Sousa e Silva apontava em entrevista ao Terra Magazine outros fatores que influenciaram essa reação do tráfico de drogas à políticas das UPPs:

Há sempre associado às drogas uma série de outras atividades ilegais, como a gente tem acompanhado pelos próprios noticiários. O jogo, a prostituição, a cobrança ilegal de tarifas sobre o gás, transportes alternativos. Então, na verdade, o crime-negócio é uma rede que não se resume a apenas aquele ganho com o tráfico de drogas. Uma dinâmica que é interrompida pelo fenômeno dessa política das UPPs. Dessa forma, essa dinâmica não consegue se fechar, se articular. O lucro obtido através da venda de armas só acontece se há combate entre as facções. Para o traficante de armas, que, frequentemente, é o mesmo fornecedor de drogas, interessa que existam diferentes facções que se digladiem. Se não há a venda de drogas, que determina uma série de outras dinâmicas, mas que não se resume à venda de drogas, e se não há confronto entre as diferentes quadrilhas, não há demanda por arma nova. Então, o advento da UPP interrompe uma série de outras atividades ilegais que participam do crime-negócio. A questão da UPP não se resume a apenas ocupação territorial, mas a uma tentativa de bloquear essa série de outras atividades ligadas ao tráfico de drogas, das quais o tráfico depende. (TERRA MAGAZINE, 26/11/2010, online)

Sob a perspectiva do pânico moral, os primeiros dias analisados se encaixariam nas etapas da aflição (concern) e da hostilidade (hostility). A aflição como um estágio anterior ao

medo era algo recorrente na cidade do Rio de Janeiro pela escalada de violência e poder armado do tráfico de drogas a partir do final da década de 1980. Após a ocupação do Complexo Alemão, algumas reportagens descreviam a forma pelo qual aquela comunidade se solidificou na década de 1990 como o ‗empório das drogas‘ ou como ‗império das armas e do tráfico‘.

Para Singer e Sandberg (2004), a percepção da fragilidade da vida humana já seria uma das características do ambiente urbano. Esses autores afirmam que isso ocorreria em decorrência da experiência fragmentada da realidade, principalmente a partir da nostalgia de um passado supostamente tranquilo e o hiperestimulo da passagem do século XIX para o XX. Essa apreensão, entretanto, diz respeito principalmente às atitudes frente às tecnologias, como bondes assassinos, trânsito caótico, aceleração das atividades produtivas, os elevadores e a vertigem dos arranha-céus. (MATHEUS, 2011, p. 27)

O leitor do Rio de Janeiro já estaria acostumado às notícias da violência urbana. No Rio, contar histórias de violência se tornou atração própria, promovendo as sensações mais comoventes ou apavorantes. Parte da sociabilidade na cidade se dá em torno desses contos cotidianos de terror. (MATHEUS, 2011) O crescente impacto da violência no jornalismo do Rio de Janeiro se dá por exemplos claros no século XXI (SILVA, 2011): o jornal O Globo possui um blog direcionado somente para ―notícias, reportagens, estatísticas e entrevistas sobre casos de violência, Direitos Humanos, segurança e crimes‖ criado e comandado pelo jornalista pelo Jorge Antônio de Barros. É um dos principais canais da blogosfera de O Globo e está associado à uma das colunas mais populares do jornal, do jornalista Ancelmo Góis, que possui também um espaço para denúncia de eventos criminosos e locais desprotegidos da proteção policial intitulado ―Alô Polícia‖.

De temática semelhante ao ―Repórter de Crime‖, com textos menos reflexivos e opinativos, existe um blog no site do Extra intitulado ―Casos de Polícia‖. Este blog funciona como um mosaico de notícias do caderno policial e prima pelo fator quantitativo no enfoque da violência. Assim também ocorre com o ―Blog da Segurança‖ do site de seu concorrente O DIA. Na página do jornal Meia-Hora, a editoria que tem maior destaque se chama Plantão de Polícia, com notícias variadas sobre as ações criminais na cidade. Além disso, na versão impressa do jornal, o deputado estadual Wagner Montes mantém às segundas-feiras a coluna Balanço Geral, voltada para o conteúdo policial. Voltando-se para o perímetro das organizações Globo, mas indo além do impresso, o telejornal local da TV Globo possui um comentarista especialista em segurança; fato que inexistia em qualquer telejornal da cidade

até o início de 2010. Trata-se de Rodrigo Pimentel ex-capitão do BOPE, autor do livro A Elite da Tropa e roteirista do filme Tropa de Elite.

As notícias da semana de novembro de 2010 estavam além da normalidade no noticiário violento da cidade. As matérias indicavam uma ação ampla e organizada do tráfico de drogas diferentemente das tragédias esporádicas que pareciam muitas vezes serem dirigidas pelo acaso ao invés de um planejamento de uma organização criminosa específica. Existia uma racionalização no modo de produção daquela violência que começou a assustar a população. Além disso, os planos incluíam não somente as áreas desfavorecidas economicamente da cidade mas também as vias expressas, o Centro e a Zona Sul. Na cartografia do medo da cidade do Rio de Janeiro (MATHEUS, 2011, p. 22), há localidades que despertam um maior pânico nos jornais do que outras. A identidade territorial da favela como localidade tradicionalmente perigosa é naturalizada enquanto os bairros de maior poder aquisitivo permanecem numa lógica distinta:

Um grupo de pessoas pode habitar o mesmo espaço e, no entanto, considerar diferentes qualidades na composição de sua cidade imaginada (Halbwachs, 1990, p. 139). Os lugares são valores que podem tanto unir quanto separar. Ou seja, na conformação mental da cidade, a localização no sistema econômico e na hierarquia social se sobrepõe à localização espacial. (MATHEUS, 2011, p. 23)

Além desta territorialidade dispersa, as ações hostis estariam mais ligadas a operações de guerrilha e vandalismo, como o incêndio de carros, que estabeleceram o pânico e semearam a indignação moral contra aqueles que personificavam os demônios populares (folk devils) naquele momento. Na quarta-feira, 24 de novembro, este processo chegou ao auge. Em O Dia, o jornal disponibilizava um mapa do município do Rio de Janeiro, com os pontos em que ocorreram os ataques com fogo sinalizados. Em outra a ―escalada de violência‖ era ordenada como todos os eventos relacionados desde o dia 8 de novembro, totalizando 34 veículos incendiados. Em matéria subsequente, a violência era computada por minutos: ―a cada 46 minutos, um veículo incendiado‖ no Estado. A capa era de um carro em chamas com a manchete: Rio sob ataque.

No jornal O Globo, leitores descreviam uma rotina de tensão em suas vidas particulares. A onda de violência parece mesmo ter tirado o sossego dos moradores. No site do Globo e na página do jornal no Facebook, leitores relataram mudança de comportamento por causa dos arrastões e outros episódios violentos, o que fez aumentar a sensação de insegurança.

O uso de insufilm, a paranoia dos sinais de trânsito e tantas outras táticas de guerrilha, que usamos diariamente são espelhos disso. A situação de violência chegou ao absurdo‘ escreveu Nuno Moreira no site. No Facebook, a internauta Leela Santana fez coro: ‗Infelizmente, viramos prisioneiros sem cometer qualquer delito. Fica complicado sentir-se em paz‘.(...)

Outros leitores mostraram que já não se sentem seguros para circular no Rio. Diminuir as saídas à noite e evitar certas áreas já fazem parte

da cartilha de segurança. Mas as leitoras Lúcia Saraiva e Solange Luiz

Garrido acreditam que a situação exige medidas mais drásticas: ‗Estou apavorada. Só saio para o trabalho e, mesmo assim, com muito medo. À noite, ficamos eu, minha filha e minha neta presas em casa, principalmente no final de semana‘. (O GLOBO, 25/11/2010, p. 8)

O jornal Extra também disponibilizava um mapa dos ataques na cidade. Em uma chamada de primeira página com imagem de chamas, o jornal da quarta-feira 25 de novembro apontava os dois inimigos do Rio, os boatos que espalhariam o pânico na internet e os bandidos que em uma ação ―descoordenada‖ atacavam a cidade. Todas as matérias da editoria policial citavam ou pânico ou medo. Em uma página negra com imagens de várias ações policiais e criminosas que tomaram conta da cidade no dia anterior, o texto do jornal além de transmitir a atmosfera de tensão encaminhava uma espera de reação por parte da cidade:

Rio de Janeiro em chamas

A Região Metropolitana do Rio viveu mais um dia sob o terror das ações criminosas. Das zonas Norte, Sul e Oeste à Baixada Fluminense,

ameaças de bomba, adolescente morta, desespero, dor e medo. Reage, Rio! (EXTRA, 25/11/2010, p. 5)