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3 OS EVENTOS DE 2002/200 SOB A ÓTICA DO PÂNICO MORAL

3.3 Aplicabilidade do Pânico Moral em 2002/2003

Pela tradição dos moral panic studies não existiria problema em um temor ou Pânico Moral ter se alongado durante o período de um ano sem desfecho resolutivo. Alguns casos descritos por Cohen (2003), como a perseguição aos imigrantes que estariam usufruindo dos serviços públicos ingleses se estenderam por quase uma década nos jornais britânicos – em especial toda a década de 90. Além disso, vimos que a eleição dos traficantes como demônios populares assim como em 2010 tangenciou a ideia de ressentimento quando os chefes do tráfico tinham sua liberdade e facilidades privadas na cadeia e isso regozijava o público leitor. Tínhamos também as três premissas de Cohen para um Pânico Moral ter alcance na opinião pública: um mal ameaçador, vítimas identificáveis e o consenso que os atos de violência não eram eventos isolados, mas atentados coordenados pelo tráfico para amedrontar a população e desestabilizar o poder público. Observou-se até um momento único, na cobertura do dia 30 de setembro, quando os jornais caracterizaram a paralisia da cidade pelas

ações do tráfico como uma ação desmedida, um pânico exagerado frente a ameaça real aproximando-se notoriamente da noção de Pânico Moral da tradição britânica.

Um paralelo factível é de entendermos um processo de deslocamento e condensação em 2002\2003 a partir do contexto econômico e social da época. O jornal O Globo alertava nos meses anteriores para a favelização crescente e para o fato de apenas 7% dos jovens em comunidades possuírem um emprego fixo. No início dos anos 2000, o Brasil possuía uma das mais altas taxas de desemprego no mundo. Em Cultura do Controle, David Garland vê o surgimento de uma criminologia do Outro como fruto das políticas neoliberais de aumento da desigualdade social promovendo um empobrecimento dos centros urbanos e um enriquecimento dos subúrbios britânicos e americanos. A acentuação da divisão social criara uma lógica territorial em que os antigos centros tornasseiam locais perigosos. A política das janelas quebradas tão criticadas atualmente nos Estados Unidos em que a polícia é acusada de racismo institucionalizado derivam deste momento. A polícia passa a prender mais para conter a ameaça de jovens desempregados e que, pelo discurso corrente à época, buscariam o caminho do crime como alternativa. Em Garland, a situação econômica é a raiz da cultura do controle e da economia do medo que rege as políticas de segurança nos grandes centros urbanos. Trazendo esta teoria para o Brasil, aonde também o número da população carcerária nunca foi tão elevado, podemos ver no medo de uma convulsão social o medo da ameaça do tráfico. Cabe lembrar do artigo de Veríssimo que, ao comentar os panfletos distribuídos pelo Comando Vermelho, afirmava que a distância entre o pânico promovido ―é um rótulo que gruda, é a frase apropriada.‖ (VERÍSSIMO, 27/02/2003 – Opinião pg 7)

Por um mecanismo de deslocamento e condensação é factível pensarmos que o medo das ações do tráfico era condensação de um medo maior. O medo da quebra do status quo, o medo de que a população marginalizada nas favelas, condenada pelo subemprego estivesse se revoltando através da violência desmedida contra o asfalto. Se em São Paulo (CALDEIRA, 2000) na década de 90, o medo dos nordestinos que adentravam no cotidiano da população paulista era condensado em um medo do crime, o medo da violência seria também um medo que a população marginalizada socialmente se revoltasse. A associação entre criminalidade e pobreza é antiga no Rio de Janeiro e o crescente da violência seria também retroalimentado pelo crescente da pobreza.

Porém não creio que, a partir da observação empírica dos jornais analisados, possamos falar em um Pânico Moral a posteriori na cobertura jornalística dos eventos de 2002\2003 por causa principalmente de um fator determinante. O consenso entre os jornais analisados O Globo e O DIA não fora absoluto e este fator desestabiliza o ciclo do Pânico

Moral. O que não quer dizer que o modelo do Pânico Moral seja absolutamente falho na reprodução dos eventos de 2002\2003. Vimos há pouco que vários elementos encontraram correspondência – eleição do demônio popular, alta sensibilização – e que, a priori, não existiria problema em tentar uma aplicação da metodologia do Pânico Moral em 2002\2003. Porém, sem o consenso, o Pânico Moral torna-se uma ferramenta conceitual válida para analisarmos os fenômenos de 2002\2003, mas não uma ferramenta metodológica. Em 2010, o consenso acarretou a desproporcionalidade e a volatilidade elevando o discurso do sensacional na violência carioca a outro nível, ao patamar da euforia. A sucessão dos fatos acabou contribuindo para toda esta narrativa mitológica entre bem e mal, pois em uma semana passou-se da ameaça do crime à vitória acachapante das forças policiais segundo os jornais. Essa característica folhetinesca é uma realidade do noticiário criminal do Rio de Janeiro, independente da erupção ou não de um Pânico Moral:

O propósito é também fazer com que o leitor reconheça seus problemas diários ao folhear o jornal: a pretensão do verossímil neste caso é tornar familiar, conhecido e, a partir daí, transformar o quotidiano em verdade. Para isso, o jornalista apela para aspectos emocionais, chegando mesmo a comparar a realidade presumida com obras ficcionais. Todos os recursos são utilizados para produzir a proximidade do relato do leitor, transformando o conhecido em verdadeiro. É necessário, através de estratégias narrativas, fazer acreditar. (CASTILHO, 2006, p. 132)

A dramaticidade no noticiário de violência no Rio de Janeiro é uma realidade diretamente proporcional à identificação do público-leitor com a vítima.

A construção de um Pânico Moral se utiliza destas estratégias de discursos, mas estas, apesar de presentes, não o definem. O Pânico Moral é fruto de um processo político também, pois ele subentende uma reação. Se não há consenso entre opinião pública e Estado, o movimento do Pânico para pela metade e se dissipa retornando aos estágios iniciais de aflição e hostilidade. Cabe ressaltar que este trabalho não pretende homologar o Pânico Moral como regra para análise da cobertura da violência urbana no Rio de Janeiro. Esta dissertação visa referendar o Pânico Moral como estrutura válida para analisarmos os pequenos detalhes e estruturas narrativas que os jornais empregam ao analisar a violência carioca, em especial os eventos ligados as ações do tráfico de drogas e da polícia em 2002\2003 e 2010. A violência urbana e sua cobertura noticiosa são um tema complexo, que poderia não se limitar a uma só abordagem. Seria impossível tentar abarcar todas as tensões e narrativas possíveis no jogo político social entre favela e asfalto e na cobertura dos enfrentamentos entre polícia, traficantes e população. O Pânico Moral é, assim, apenas um molde possível para tentar compreender o comportamento da imprensa e sua

participação nesse processo. E, como toda moldura, o modelo do Pânico Moral é uma abstração teórica que necessita ser adaptada para que enxerguemos determinado objeto. Com intuito de relativizarmos esta abordagem, veremos em que situações da violência urbana carioca, como as situações presentes em 2010, o Pânico Moral se torna uma ferramenta válida e as possíveis causas que referendam esta acepção. Por outro lado, sabemos que, mesmo que o Pânico Moral seja um instrumento válido de análise, ele não é o único e nem surgiu ao acaso – suas conclusões derivam e dialogam com outras teorias. Mesmo a teoria do Pânico Moral apresentada aqui neste estudo não engloba toda a riqueza conceitual dos moral panic studies. Veremos alguns conceitos complementares que auxiliam na compreensão da cobertura jornalística de 2010 e sua relação com o público, além de outras ferramentas\ metodologias convergentes, ou seja, ferramentas\ metodologias distintas do Pânico Moral mas nem por isso excludentes. Ambas são aplicáveis ao mesmo objeto. Lembremos que a luz na física moderna se comporta tanto como onda quanto como partícula. Se a natureza não é newtoniana ou mecânica em seus movimentos, quiçá o são os jornais e seus leitores em tempos de violência.