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4 CONCEITOS COMPLEMENTARES ÀS ETAPAS DO PÂNICO

4.3 Desproporcionalidade – Conceitos Complementares

A ocupação da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão abriu caminho para uma política das UPPs de sucesso e sem limites. Da objetivação da ocupação militar imaginou- se a reforma social de toda a cidade. Entre os textos, transpôs a ideia de que o Rio de Janeiro,

depois de uma decadência de 50 anos desde a transferência da capital para a Brasília, iniciava uma nova ascensão. O discurso ampliado era de uma ruptura, gênese de um novo tempo para cidade aonde o poder do tráfico nas comunidades começava a virar passado.

4.3.1 Territorialidade

―(...) subam o morro, ele é da cidade.‖

José Mariano Beltrame, secretário de segurança do Rio de Janeiro5.

Um dos pontos ressaltados na cobertura de O Globo da ocupação do Complexo do Alemão era o desafio da polícia em produzir a megaoperação, com uma matéria descrevendo o histórico do Complexo e as dificuldades que as tropas poderiam enfrentar nesta próxima invasão que se anunciava. Mais uma vez, a comparação com o contexto belicoso era feita através do título ―o empório das drogas‖. Empório era um termo do mundo romano que definia as colônias comerciais criada em país estrangeiro. Logo, a matéria implicitamente identificava o Complexo do Alemão como território de fronteira, área estranha à cidade do Rio de Janeiro.

A posterior fincada da bandeira do Estado no topo de uma montanha do complexo de favelas apresentava então uma carga simbólica muito maior do que politicamente efetiva; em nenhum momento anterior ou ulterior aquele território se declarara autônomo ou separado da cidade do Rio de Janeiro. A reconquista era simbólica e transformadora, um território do crime estaria se transmutando em um território da cidade.

Da apropriação do território físico emerge a apropriação do território simbólico. O termo território em sua origem abarca tanto uma noção material quanto uma noção simbólica. Sua etimologia permitiria traçarmos conexões com os termos terra-territorium e terreo-territor (HAESBERT, 2007). A primeira acepção terra-territorium significaria o controle e domínio político e social da terra. Já terreo-territor seria o terror, a inspiração do medo inerente à este controle e à delimitação das fronteiras. As cidades desde a Antiguidade identificam seus limites como forma de proteção a seus cidadãos e governantes. Não à toa, a introdução do

5 ―Palavra do Secretário‖. Disponível em: [http://upprj.com/wp/?p=175] acesso em 30/12/2014.

livro ‗A História do Medo no Ocidente‘ de Jean Delumeau (1978) inicia com a descrição dos mais variados aparados de segurança de uma cidade alemã do século XVI contra a presença de um singular forasteiro:

Os complicados mecanismos que outrora protegiam os habitantes de Augsburgo têm valor de símbolo. Pois não só os indivíduos tomados isoladamente, mas também as coletividades e as próprias civilizações estão comprometidos num diálogo permanente com o medo. (DELUMEAU, 1978, p. 1)

O território gerado destas duas interpretações teria uma lógica de dupla hermenêutica: uma identificação positiva de pertencimento àqueles que o dominam e um estranhamento ameaçador àqueles que estão além de suas fronteiras:

A construção do ‗nós‘ implica sempre na construção do ‗eles‘. Talvez a simultaneidade seja característica de toda posição subjetiva dominante, que pensa sua identidade como uma negação de uma identidade negativa que ela inventou, que se pensa, portanto, como um outro de um ‗outro estipulado como imoral e ameaçador. (VAZ, 2009, p. 55)

Entre as manchetes da semana da Ocupação, as comunidades dominadas pelas facções criminosas foram descritas como o ―quartel-general do tráfico‖ pelo Jornal O Globo, ―empório das armas e drogas‖ pelo jornal O DIA e ―o coração do mal‖ pelo Meia- Hora. O tráfico ali estabelecido geraria identificação com o território daquelas comunidades. Aos policiais e moradores das outras regiões da cidade, ali estaria firmado um perímetro de segurança. Rompê-lo seria sinal de ameaça e guerra. As ações policiais foram descritas como num contra-ataque ao inimigo e a tomada do morro, a vitória do Estado, descrita pela imprensa como a vitória do bem e da paz. Superada a atmosfera de tensão, o jornal Extra intitulara os policiais como ―os verdadeiros donos do Alemão‖. Com o instituído domínio militar, tem início um novo processo de legitimar o poder do Estado na região. De modo similar a uma nova colonização, as forças oficias ―civilizariam‖ aquele novo território antes dominado por bárbaros.

Lefebvre (1986) destaca além da dominação política, territorial e militar, a funcionalidade simbólica da apropriação.O espaço, além do território político, acarretaria o estabelecimento de um domínio e de uma legitimidade cultural:

Podemos então afirmar que o território, imerso em relações de dominação e /ou de apropriação sociedade-espaço, "desdobra-se ao longo de um continuum que vai da dominação político-econômica mais 'concreta' e 'funcional' à apropriação mais subjetiva e/ou 'cultural- simbólica'". (HAESBERT, 2004, p. 95-96)

Por este prisma, a comemoração de um ano da ocupação das forças policiais com um espetáculo de música erudita, o projeto Aquarius, patrocinado pelo governo do Estado e pelo principal grupo de comunicação da cidade reforça o papel civilizatório da presença das forças oficiais naquele território. Nos jornais cariocas, Vila Cruzeiro e Complexo do Alemão eram territórios do tráfico e deste poderio armado derivava também todo um universo cultural. A partir de uma contradição entre a referida cultura popular e a chamada cultura erudita, um território onde antes um jornalista fora sequestrado e morto em um baile funk transpassa ao universo da cultura erudita.

A questão do funk aparece como um dos elementos determinantes na forma de territorialização inserida no programa das Unidades de Polícia Pacificadora. Em pesquisa realizada com os policiais lotados nas UPPs, a repressão ao baile funk surge como símbolo de uma vitória sobre o tráfico:

O outro cenário de disputa, fortemente relacionado com este som, é a celebração de bailes e festas. Além do som alto, na visão de muitos policiais, os bailes são lugares de tráfico e consumo de drogas, de músicas que fazem apologia do tráfico (o famoso proibidão) e de outros comportamentos associados com a degradação e a delinquência . Esta visão de lócus do Mal é atribuída particularmente aos bailes funks, enquanto outras músicas são contempladas com mais benevolência. Para além da possibilidade de condutas delitivas, o funk é, simbolicamente, a música do inimigo, e o fim do baile funk é um troféu simbólico para muitos policiais, que mostram quem manda agora na comunidade, como se arriassem a bandeira inimiga depois da conquista do território. Quando o funk toca ‗proibidões‘, se torna não apenas simbólica, mas também literalmente, a música do inimigo. Com efeito, em muitas UPPs, os policiais dedicam um tempo considerável a perseguir estes proibidões.

A maioria das vezes quem faz baile está vinculado com sexo e crime e nem pede autorização. (Subcomandante, Comunidade 4) [sic] (CANO, 2012, p. 154)

Em outra demonstração de que o Complexo do Alemão estava sendo apropriado pela sociedade carioca, a comunidade se torna cenário de novela no horário nobre e tem seus recém-instalados teleféricos alçados ao posto de novos pontos turísticos da cidade. A visita ao teleférico do Alemão é uma espécie de itinerário simbólico (CÔRREA, 2010) da vitória das forças do Estado sobre o tráfico naquele território. Em diversos jornais e revistas e matérias televisivas, o passeio surge como símbolo de um novo turismo na cidade. Em todas as matérias, a recuperação da localidade pelo Rio de Janeiro é destacada. Controla-se uma "área geográfica", ou seja, cria-se o "território", visando "atingir/afetar, influenciar ou controlar pessoas, fenômenos e relacionamentos" (SACK, 1986, p. 6).

Territorializar um espaço não implica somente a dimensão política mas também as esferas culturais e econômicas. Estas relações formadas entre os habitantes deste território e

as forças dominantes do mesmo acabam dando um significado de lugar a este espaço. O próprio Sack afirma também que:

A territorialidade, como um componente do poder, não é apenas um meio para criar e manter a ordem, mas é uma estratégia para criar e manter grande parte do contexto geográfico através do qual nós experimentamos o mundo e o dotamos de significado. (SACK, 1986, p. 219)