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CAPÍTULO III OS GÊNEROS DE DISCURSO, CENOGRAFIA E ETHOS

3.1 Diálogo interior

3.1.2 A cenografia do gênero diálogo interior

Um texto é na verdade o rastro de um discurso

em que a fala é encenada.

(MAINGUENEU, 2006, p. 250)

Sabe-se que o princípio básico que caracteriza uma cena de enunciação, além da cena englobante e genérica, é a cenografia, que se materializa por meio da enunciação. Aceitar uma cena de enunciação como um mero quadro empírico não seria viável, pois é a partir dela que, conforme Maingueneau (2011), ao se desenvolver, esforça-se para constituir progressivamente o seu próprio dispositivo de fala. Porém, algumas divergências podem surgir a respeito da cenografia por ser, muitas vezes, entendida como uma cena estática no instante da enunciação.

Retomando Maingueneau, dizemos que uma cenografia sofre influência da linguagem (código linguageiro) que se propõe utilizar, não podendo ser desassociada do conjunto de informações. Logo, não é um instrumento neutro, é utilizada de maneira apropriada ao universo de sentido que o posicionamento pretende impor. No caso do nosso estudo, analisaremos duas cenografias, observando-as com relação à utilização da linguagem, à construção das cenas empíricas e das discursivas.

O enunciador de A visão do frade inicia a cena a partir da descrição do local e situando-a no tempo e no espaço. Narrada, inicialmente, em primeira pessoa e, no segundo momento, lê-se a mesma cena em que o enunciador se apresenta em terceira pessoa e fala sobre a condição do frade em atitude beatífica contemplando a igreja. O cenário é o espaço real de construção da igreja, o que podemos denominar de dêixis empírica. A partir daí, parte para outra criação, a dêixis discursiva, conforme leremos nos recortes.

Recorte 9

[...], pesa-me o corpo da caminhada pela encosta do morro, doem- me as pernas da marcha que começou na margem do rio e me trouxe, por trilhas tortuosas, ao ponto onde estou e parei, sob a carapaça vegetal das árvores que disparam, como rajadas silenciosas, galhos por todos os lados. Mesmo à sombra das

andirobeiras gigantes, sinto o calor que se irradia do sol imperial,

encosta onde paira o silêncio que convida à contemplação e à prece

(NEVES, 1999, p. 21–22) [grifos nossos].

Recorte 10

Não se trata, porém, de uma visão que explode completa e acabada diante de mim, mas de uma imagem que se vai compondo por partes, peça a peça, volume a volume, [...], a igreja em formação, luminosidade e efeito sagrado inerentes a uma obra sobrenatural que se constrói a si mesma [...] (NEVES, 1999, p. 22).

Os dois recortes nos remetem a momentos enunciativos em diferentes espaços e mostram de que forma o enunciador constrói essa cenografia, materializada pelos termos em destaque na cena, em que descreve com visível sofrimento o calor da época, era outono. Por meio das expressões utilizadas pode-se entender o quão doloroso estava sendo para ele a busca pelo local adequado para que a igreja fosse erguida. Sol e calor no alto de uma colina não era um cenário muito agradável para quem estava acostumado aos ares italianos. Quanto ao Monólogo, o enunciador apresenta a cena de modo sutil e faz abordagem à forma como utilizou a palavra. Apresenta-a com um universo de poder e o que se pode obter, a partir de sua manipulação, no seu caso - a construção de uma igreja e também a sua desconstrução.

Recorte 11

[...] Com palavras digo e não digo, insinuo suposições, tecendo subentendidos. [...]. Uma palavra vai outra vem. Com palavras construirei a minha igreja, [...]. Com elas ergo paredes. [...] Qual a que vale, qual a que não vale, são peças de um quebra cabeças. Falo para não ser entendido, prometo para não ficar obrigado (NEVES, 1999, p. 95-96).

No recorte acima, o discurso do enunciador é uma simulação de uma autoconfissão. Momento em que ele procura se redimir, com seu outro sobre seus propósitos, tentando o autoperdão, caso tenha cometido o pecado de enganar, por meio das palavras, os cativos. Mas, justifica que tudo foi feito em nome de Deus e pela construção da igreja.

A construção dessa cenografia tem como base a dêixis discursiva mate- rializada no seu desejo de construir a igreja, nas palavras e em Deus como

elemento de maior valorização no conjunto da cena e a quem atribui a responsabilidade dos acontecimentos de acordo com o que se lê no recorte abaixo.

Recorte 8

Não hei de medir o verbo, não hei de poupar a carne, não hei de conter o sangue das mortes que daí vierem. São mortes que a Deus pertencem. Eu sou aquele que transformará o verbo em pedras, que transformará verbo em sangue. As mortes que daí vierem, não digo ao meu confessor (NEVES, 1999, p. 96-97).

A cenografia criada pelo discurso, como já dito, remete-nos a uma confissão, cena validada e instalada positivamente, não só pelas marcas do discurso instauradas por meio das palavras utilizadas de acordo com os seus propósitos, mas também pelo cenário religioso conforme recorte.

Recorte 12

As palavras que proferi, à sombra das andirobeiras gigantes, não disse ao meu confessor, são frases de amargura e dor. [...]

Eu sou aquele que transformará verbo em pedras, que transformará verbo em sangue. As mortes que daí vierem, não digo a meu

confessor. Faz parte da sina dos homens ouvir e guardar palavras

(NEVES, 1999, p. 95-96) [grifos nossos].

Com a última frase dita pelo enunciador no recorte acima, fica claro que, no cenário religioso, aquele que ouve e guarda palavras é o padre ou quem ele chama de confessor. Embora o enunciador não determine o local da cenografia, é possível supor ser um espaço religioso, uma igreja.

Para validar ainda mais a cenografia, o enunciador cita Jó e José, personagens bíblicos, com quem estabelece um interdiscurso, para justificar sua articulação com as palavras e atingir o seu propósito.

Recorte 13

As palavras que Deus disse a Jó. Jó ouviu e guardou, e revelou ao Senhor o limite da paciência dos homens. As palavras que o anjo lhe disse, José ouviu e guardou, e conheceu, patriarca, a vinda do filho do Homem (NEVES, 1999, p. 97).

A cenografia incita a pensar no espaço e no tempo abençoado pelo divino. A busca dos nomes Jó e José valida a enunciação interligando tempo e espaço dos acontecimentos. Deus lhe daria o respaldo assim como fez com Jó e José. Encerra o discurso com as seguintes palavras:

Recorte 14

Das frases que não me entortam a boca, tirem o significado possível, do mal entendido do verbo, tirem a esperança dos sonhos, das insinuações proferidas, a alforria das cartas, e tirem a liberdade impossível, dessas palavras malditas (NEVES, 1999, p. 97).

Portanto, esclarece-se que as cenografias são base de uma obra literária e é onde se desenvolve e engendra o discurso, legitimando um enunciado. A cenografia de onde surge a fala do enunciador é a mesma necessária para que seja enunciado o que convém a ele e ao seu co-enunciador. É por meio dessa cenografia que é apresentado o seu núcleo, tornando possível os efeitos de sentido de um texto.

Enfim, as condições de produção dos diálogos interiores analisados perpassam espaço físico e tempo cronológico, assinalados na enunciação, é possível que se delimite esse espaço e tempo por meio de marcas linguísticas no discurso. Em se tratando do espaço discursivo, ele perdura por quase todo o diálogo, melhor dizendo, durante o tempo em que perdura a visão do padre e a sua imaginação, acentuando que as palavras lhes dão o direito de prometer sem ficar obrigado.