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CAPÍTULO II – A OBRA O TEMPLO E A FORCA EM SUAS CONDIÇÕES

2.2 O sermão em suas condições de produção – apresentação

O sermão tem uma destinação secular, de composição peculiar em sua origem (integra documentos transcendentais e conjunturais) volta-se para auditórios, comportamentos, fatos que são antes de tudo da história humana. O auditório é “numeroso” e “ilustre”. Não são mencionadas qualidades ético-religiosas; o elogio do público é feito por predicados laicos indicativos de quantidade ou capacitação político-social (e/ou intelectual) (NEVES, 1997, p. 83).

Um sermão sempre revela traços históricos do momento de sua produção e também sobre a relevância eficaz na vida cristã, como meio utilizado para a edificação, no mundo dos homens, do reino de Deus, como relata Luiz Felipe B. Neves (1997, p. 81). Existe também a interferência de Deus em situação humana, que parece se beneficiar de certa autonomia. Auditório e pregador, sermão e audição encontram-se de modo apropriado em suas condições de produção.

Antes de iniciarmos a apresentação do sermão, salientamos que lançaremos mão de alguns trechos do nosso corpus para comprovarmos alguns comentários feitos sobre esse recorte.

O sermão, ou melhor, os sermões, recortes que sustentam o discurso literário de Neves na obra O Templo e a Forca, responsáveis pelo ápice da história, inclusive pela eclosão da revolta do Queimado, são constituídos dentro da obra literária em que o enunciador se apropria do discurso literário para estabelecer uma situação de enunciação entre ele, fiéis e leitor. Por meio do discurso, encontra possibilidades de interpretação para que os envolvidos na situação possam aprimorar conhecimentos entre a linguística e o discurso literário, conforme proposições de Maingueneau (2006), que relata que o sentido da obra não é estável, nem fechado em si mesmo.

Partindo desse princípio, não se pode considerar que sejam os sermões apenas vistos como textos que trazem a intenção de converter almas para a construção de um mundo melhor. Pode-se também traçar, por meio deles, estratégias capazes de desencadear situações de grandes conflitos. Assim, ressaltamos que o sermão inicial da obra em questão encaminha toda a proposta persuasiva do autor do discurso.

O outro sermão, denominado pelo padre de sermão de agradecimento, apresenta a relevância da proposta inicial. Não só agradece, o frei, como se desvincula de toda a responsabilidade negociada no sermão anterior – a alforria. Surge, a partir daí, a ideia, concretizada pelos escravos, da organização de um movimento denominado Insurreição, já que eles, os negros, cumpriram sua parte.

Como lido anteriormente, um sermão, de uma forma geral, é mais que um texto somente religioso, com o propósito de arrebanhar um público para ouvir a palavra de Deus, trecho lido no fragmento abaixo:

O sermão também se configura como uma prática interacional, e não apenas como uma teoria da expansão da alma humana ou do desígnio divino, da vontade pessoal ou da expressão artística ou das técnicas e habilidades da locução ou de uma exibição meramente espetacular (NEVES, 1997, p. 81-82).

Nesse contexto, entendemos que o diferencial dos sermões, selecionados para análise, é que eles surgem dentro de uma obra literária, logo, também são vistos como um discurso literário, além de religioso.

Para tal evento, o frei prepara seu discurso com o sermão para a construção da igreja e, no púlpito, de onde o profere, intermedeia propósitos, legitimados pelas palavras do Evangelho. Busca Deus como seu tutor, o que lhe dá competência para angariar auxílio, objetivando construir o monumento religioso que tanto deseja. Todo esse cenário é produzido para alcançar a construção da Igreja do Queimado - projetada no seu imaginário ao chegar ao Brasil e que tantos louros lhe dariam.

Ao ar livre e em local desejado para a construção da igreja, o padre prepara o terreno para suplicar as ajudas necessárias e convoca os fiéis a fundar tão importante obra, em nome de Deus. Além da engenhosidade de seu pensamento, as questões de ordem social, política, econômica e religiosa vão se revelando ao longo do sermão. Utiliza-se do texto sagrado para conciliar, seu mundo e propósitos, voltando-se para um público da época que o escuta. Com esse intento, o padre dá ênfase a trechos do sermão que possa vir tocar, de modo contundente, os fiéis. Coloca Deus como figura que fala por seu

intermédio – homens, mulheres, pretos, brancos, ricos e pobres – cobrando- lhes doações para a magnífica obra que consolará a todos e agradará ao bom Deus no céu. Ressalta, que ninguém poderá ficar de fora, nem os que têm muito, nem os que têm pouco.

Mesmo quem nada tiver a oferecer, que erga as mãos aos céus em cânticos e orações pelo sucesso da empreitada. Reforça seu discurso, citando São José, que, certamente, saberá lhe restituir em suas aflitivas necessidades para que não lhe falte o pão nas suas dispensas. Não se esquece dos negros, conclamando que trabalhem bastante, deem o suor do seu corpo para a ereção do templo. Assim receberão a justa paga e a merecida compensação. Encerra o sermão com o tradicional, Amém!

Três anos depois, o frei envolvido em denúncias de exploração, feitas pelos próprios fiéis às autoridades locais, e com a igreja quase pronta, pintada com cal das conchas, rodeada dos verdes das matas e diante das implicações que lhe envolviam, acelera a entrega do templo e profere outro sermão, temendo que a igreja não chegasse ao seu gran finale. E numa missa celebrada do lado de fora da igreja, em outra manhã de domingo, uma nova cenografia se projeta com o sermão de agradecimento. O espaço discursivo em que a cenografia acontece, é outro. O verbo utilizado demonstra a sua preocupação de homem

prudente, sincero e virtuoso.

Assim, entendemos que a argumentação utilizada pelo padre no sermão inicial, em forma de promessa, faz parte de sua estratégia discursiva, com a finalidade de despertar na alma dos fiéis o seu comprometimento com Deus. Reforça seu poder e sua visão crítica do papel assumido pela Igreja no processo de colonização de diversos países que também utilizavam a palavra com o propósito de conversão de outros povos.

Dessa forma, ao proferir o sermão, o enunciador vai além do uso de recursos linguísticos, demonstrando seu caráter estrategista. Estuda o melhor momento do ponto de vista sociopolítico, para iniciar a colheita das ajudas. Procura revestir as palavras de certa cumplicidade moral, colocando-se como pobre e, também, como um dos que contribuirá com donativos, irmanando-o aos outros:

ofertas das santas missões e do pequeno emolumento que me subministra o Governo Imperial, assinei em primeiro lugar o livro dos donativos (NEVES,

1999, p. 29).

A fé em Deus é a fé no representante d’Ele. Mesmo sem a presença física, Ele é a esperança no discurso do padre. É o projeto de ação na e pela voz do padre. O enunciador não se coloca à parte da plateia, junta-se a ela e torna-se solidário ao seu povo. É uma estratégia planejada por ele para obter a confiança do público, na certeza de uma vida melhor, se não nessa, mas na vida eterna, com muitas alegrias.

A dinâmica da construção ficcional de Neves é o discurso religioso, a partir do discurso literário, contextualizado no gênero discursivo oral – o sermão – e seus mecanismos de validação. E é como prática religiosa de efeito persuasivo que o frei proferiu os sermões. De um lado, a figura construída do frei, falando em nome de Deus e, do outro, o público, ouvinte de sua palavra. Para esse grupo, o modelo de enunciação feito pelo religioso teria um grande peso, não só na construção linguística, mas também na construção da igreja.

Por fim, entendemos que a proposta do sermão inicial e no de agradecimento, divergem no que diz respeito aos seus propósitos. Fica claro no primeiro sermão que o objetivo é a utilização da palavra com efeito de manipulação sobre os fiéis. Como dito pelo enunciador, com as palavras faço meu jogo,

monto mal-entendidos (NEVES, 1999, p. 95). Com elas, tudo promete sem

obrigatoriedade ou comprometimento.

Em contrapartida, segue no sermão de agradecimento, mais palavras, era a edificação do templo sagrado sobre o verbo. Palavras vão e vem, qual teria valor, ele não sabe. São peças de um quebra-cabeças(NEVES, 1999, p. 96), deixem que eles tirem das palavras os significados possíveis; esperanças, sonhos, tirem até a liberdade das palavras malditas, pensava o padre. Embora deixe claro que todo esse labor é só inicial. Mas é do bom princípio que se

Até aqui nos propusemos, em linhas gerais, a traçar apenas algumas informações sobre os sermões selecionados. Em seguida, vamos diagnosticar a imagem do padre e de que maneira sur4giu a ideia da construção do templo, para que assim possamos ter uma visão mais ampla de seus propósitos.