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CAPÍTULO I – DISPOSITIVOS DA ANÁLISE DO DISCURSO

1.5 Cenas de enunciação

Prosseguindo com nossos estudos, encaminharemos nossas reflexões sobre cenas de enunciação, ressaltando que a sua importância para a nossa pes- quisa é porque o ethos, o principal foco entre os princípios estudados, surge na cenografia, uma das cenas de enunciação.

Durante muito tempo a AD buscou, por meio de suas metodologias, aprimorar mecanismos de produção de efeitos de sentido dos textos, que superassem os já existentes. Dessa forma, suscita uma leitura verdadeira, trazendo uma contri- buição às hermenêuticas contemporâneas, visto que os analistas entendem que um sentido oculto deve ser captado e para tal, necessita de técnica apro- priada.

Nesse percurso, a AD apropriou-se de corpus independente dos atos de enun- ciação, não por negligência, mas por entender tais fatos apenas como conjun- tos moduladores e que não constituíam a dimensão do discurso, no sentido de que a língua era reconhecida como instituição, e o discurso não.

Uma situação de enunciação é caracterizada por princípio básico, que é a ce- nografia, materializada por meio da enunciação. Seria inaceitável avaliar uma cena de enunciação como um mero quadro empírico, sem levar em conta a circularidade com que se desenrola o discurso, o qual implica um enunciador e um co-enunciador, um lugar e um momento da enunciação que valida a própria instância e autoriza sua existência. É o que direciona a cenografia tanto para o

momento em que surge a obra, quanto para o desaguadouro da obra, valendo- se da expressão de Maingueneau (2008b, p. 51).

Algumas divergências, com relação à cenografia, podem surgir, muitas vezes entendida como uma simples cena estática no momento da enunciação, mes- mo porque podemos considerá-la, ao mesmo tempo, como cena e processo enunciativo.

Nesse contexto, Maingueneau (2008b, p. 51) destaca que o termo (grafia) é um processo de inscrição legítimo que traça o seguinte círculo: o discurso que im- plica certa situação de enunciação, um ethos e um código linguageiro. Com este círculo, se constitui um mundo validado por esses elementos, sendo que o conteúdo surge inseparável da cenografia, dando-lhe o suporte.

A cenografia também sofre influência da linguagem, o que Maingueneau (2008b, p. 51) denomina de código linguageiro. Dizemos que é o que delimita a cena enunciativa, como mostra o trecho abaixo:

Uma cenografia implica a certo uso da linguagem e é igualmente indissociável dele. Tratando-se de discurso constituinte, a língua (idioma escolhido e o uso que se faz dele) não pode ser, com efeito, um instrumento neutro, mas está investida como apropriada ao uni- verso de sentido que o posicionamento pretende impor (MAINGUE- NEAU, 2008, p. 52).

Como se pode vê, o universo de sentido está associado ao código linguageiro que por sua vez está ligado à acepção de sistema semiótico que permite a comunicação; e a de código prescritivo: o código linguageiro que mobiliza o discurso é, com efeito, aquele através do qual ele pretende que se deva enun- ciar, o único legítimo junto ao universo de sentido que ele instaura (MAINGUE-

NEAU, 2008, p. 52).

Para Maingueneau (2006, p. 249), as teorias da enunciação linguística atri- buem um papel importante à reflexividade da atividade discursiva e de modo particular às coordenadas implicadas por todo ato de enunciação como as coordenadas pessoais, espaciais e temporais nas quais se baseia a referência

de tipo dêitico. Por sua vez, a semântica, trazendo marcas profundas da pragmática, destaca o papel do contexto no processo interpretativo, o caráter radicalmente contextual do sentido.

Dessa forma, com o surgimento de disciplinas que abordam o discurso – em particular a análise do discurso e a análise da conversação – muitos pesquisa- dores das ciências da linguagem direcionam sua atenção aos gêneros do dis- curso, às instituições de fala através das quais ocorre a articulação entre os textos e as situações em que são produzidos.

Vale ressaltar que, com relação às perspectivas que englobam a teoria da enunciação, a da semântica e a das disciplinas do discurso, há entre elas influência mútua, sendo por isso compreensível que noções como situações de

enunciação, de comunicação e contexto tendam a se confundir umas com as

outras, na maioria das vezes. Conforme leremos abaixo:

Cabe reconhecer que a noção de “situação de enunciação” se presta ao equívoco, na medida que se é tentado a entender essa “situação” como o entorno físico ou social no qual estão os interlocutores. Na realidade, na teoria linguística de Antoine Culioli, que a conceituou nos anos 1960, na sequência de Émile Benveniste, a situação de enunciação não é uma situação de comunicação socialmente descrití- vel, mas o sistema no qual se definem as três posições fundamentais do enunciador, do co-enunciador e da não-pessoa. Como se sabe, esse sistema está na base da identificação dos dêiticos espaciais e temporais, cuja referência é constituída com relação ao ato de enun- ciação. Ele permite ainda distinguir entre dois planos de enunciação: de um lado, os enunciados “embreados”, ligados à situação de enunciação (o “discurso” de Benveniste) e, do outro, os enunciados “não embreados” (a “história” de Benveniste), porém estendido em seguida a enunciados não narrativos (MAINGUENEAU, 2006, p. 250). Assim, tem-se em destaque a obra literária, objeto de nossa pesquisa, que, como todo enunciado, implica uma situação de enunciação. E a partir desse conceito surge o questionamento sobre qual seria a situação de enunciação de uma obra? Várias abordagens poderiam ser feitas em torno das circunstâncias de sua produção e de sua situação de comunicação, que implicariam aspectos sobre período de sua escritura, lugar e autor.

Afirma-nos Maingueneau (2006, p. 250) que, ao tomarmos como ponto de partida uma situação de comunicação, consideramos que o processo de

comunicação seja visto do exterior, isto, numa abordagem sociológica. Mas também se pode considerar, ao falarmos de cena de enunciação, que esse processo seja do interior, tendo em vistaa situação que a fala pretende definir, o quadro que ela mostra (no sentido pragmático) no próprio movimento em que se desenrola. Um texto é um rastro de um discurso em que a fala é encenada.

Para melhor delimitarmos esse processo ou como acontecem as variadas ce- nas de enunciação desenvolvidas por meio de diferentes discursos, destaca- mos, para melhor compreensão, três cenas enunciativas, de acordo com a pro- posta de Maingueneau (2006, p. 51), produzidas sobre planos complementa- res, que são a cena englobante, a cena genérica e a cenografia.

Definir cena englobante é quase impossível, visto que ela corresponde ao que podemos compreender por um tipo de discurso. Quando se recebe um folheto

na rua, deve-se ser capaz de determinar se é membro do discurso religioso, político, publicitário etc., em outras palavras, em que cena englobante se deve situá-lo para interpretá-lo, [...] (MAINGUENEAU, 2006, p. 251).

Os discursos literários, para Maingueneau (2006), vinculam-se à cena englo- bante literária, a partir da qual o autor se permite usar um pseudônimo que lhe autoriza a propor fatos criados ficticiamente. Logo, uma cena englobante não é suficiente para determinar as suas condições de produção, visto que não existe nenhum vínculo com os autores. Dessa forma, é por meio de um gênero do discurso determinado que a obra é enunciada e que, a partir daí, pode ser determinada como cena genérica como postula Maingueneau:

As condições de enunciação ligadas a cada gênero correspondem, como vimos, a certo número de expectativas pelo autor. Elas são facilmente formuladas em termos de circunstâncias de enunciação legítimas: quais são os participantes, o lugar e o momento neces- sários para realizar esse gênero? Quais circuitos pelos quais ele passa? Que normas presidem ao seu consumo? E assim por diante (MAINGUENEAU, 2006, p. 251).

Para que se possa definir uma cena englobante e cena genérica, dizemos que a cena englobante está vinculada ao tipo de discurso e é o discurso que vai de- marcar o território para o início da cena genérica. Portanto, ao tomarmos como

ponto de partida o que é dito por meio da noção da cena englobante enten- demos que um determinado grupo de gêneros do discurso compartilha domes- mo estatuto pragmático e que a apreensão de um texto ocorre por referência a esse estatuto (MAINGUENEAU, 2006, p. 252).

Dessa forma, têm-se a cenografia e podemos identificá-la de acordo com as indicações textuais. Na verdade, não se pode esperar que ela se determine por si mesma. A ideia que se pode ter de cenografia é muito mais ampla, vai além do dito. A noção de cenografia adiciona ao caráter teatral de cena a dimensão da grafia. Porquanto a grafia é o que legitima o texto para a cena.

Numa narrativa literária é de praxe que nos coloquemos sempre diante de uma cenografia e não de uma cena englobante, tornando-se, o texto, uma armadilha para o leitor, visto que o texto lhe é apresentado em primeira mão por meio de uma cenografia e não pela cena englobante ou genérica, mas que constituem a porta de entrada para a enunciação. Porém, é a partir daí que a obra se legiti- ma, traçando um emaranhado de situações de comunicação que vão estabele- cer rastro para que as cenas se constituam.

Em suas proposições, Maingueneau (2006, p. 253) diz que: a cenografia não é

um procedimento, o quadro contingente de uma mensagem que se poderia transmitir de diversas maneiras; ela forma unidade com a obra a que sustenta e que a sustenta.

O autor deixa claro que, cena englobante, genérica e cenografia fazem parte de um enlaçamento que dá sustentabilidade à obra. Uma cena de enunciação não se produz somente com as ideias que se pode expressar, é importante que se produza e legitime os aspectos que formam o quadro de sua enunciação.