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CAPÍTULO III OS GÊNEROS DE DISCURSO, CENOGRAFIA E ETHOS

3.1 Diálogo interior

3.1.3 A constituição do ethos discursivo nos diálogos interiores

No sentido de avaliar o investimento cenográfico do discurso, um código

linguageiro e o imaginário do enunciador, é que procuramos entender como se

dá a construção efetiva do ethos do frade no interior dessas cenografias, relacionando as cenas do gênero escolhido e os efeitos de sentido que por meio das análises possam surgir.

Ter uma posição no interior de uma cenografia não implica apenas definir certa relação com a linguagem, devemos também levar em conta o investimento

imaginário do corpo, a adesão física a certo universo de sentido, para que assim, o enunciador possa extrair do público os efeitos desejados.

As ideias no diálogo interior, A visão do frade, são apresentadas por meio de uma maneira de dizer, pela forma como direciona a visão da igreja que ainda não está pronta no espaço físico, mas já se elabora peça a peça no espaço discursivo. É também uma maneira de o enunciador mostrar, associada às representações e normas de disciplina do corpo, que recebe intervenções divinas para a realização da obra.

Por meio da enunciação, o enunciador incorpora características de um homem religioso, assimila um conjunto de facetas que fazem correspondência de maneira específica com o universo criado, habitando seu próprio corpo. Mundo esse que faz parte de sua imaginação, de sua construção interior, de onde emerge a igreja, nomeando-a de obra sobrenatural por fazer parte da criação divina.

Recorte 15

[...], em meio a uns poucos raios solares que varam a ramagem da mata para dar, à igreja em formação, luminosidade e efeito sagrado inerentes a uma obra sobrenatural que se constrói a si mesma ao inverso do processo de construção com que a arquitetura dos homens edifica seus templos, [...] (NEVES, 1999, p. 22). [grifo nosso]

Sabemos que o ethos emana do mostrado: o enunciador é percebido através de um tom que implica certa determinação de seu próprio corpo. A medida do mundo que ele instaura em seu discurso permite, assim, a adesão da comunidade imaginária que adere ao mesmo discurso.

Vale mostrar que o ethos contribui para moldar comportamentos, podendo ficar mais claro a sua eficácia no que diz respeito ao discurso nas obras literárias pela sua capacidade de atrair adeptos pelo seu modo de dizer. E é por esse modo de dizer que o enunciador consegue a adesão de sua comunidade religiosa, remetendo-a a uma maneira de ser em seus comprometimentos com Deus e ao imaginário preciso de uma vivência religiosa.

Ainda em relação ao discurso literário, os posicionamentos e os gêneros afetam igualmente o que se transmite por meio da imaginação, o que não é

possível, muitas vezes, estabelecer coerência entre o que é dito e a forma como se diz pelo fato de as ideias pertencerem ao plano subjetivo, fato esse comprovado com a descrição da igreja. Por isso, podemos dizer que, nas amostras selecionadas, o enunciador apresenta um ethos depreendido da cenografia e em meio às condições sócio-históricas de produção, conforme observamos no recorte abaixo.

Recorte 16

Gregório José Maria de Bene era um dos muitos frades menores que vieram da Itália pregar missões no Brasil. Desembarcou no Rio de Janeiro, depois de retornar de Goa, onde aprendeu o português, embora o falasse com carregadíssimo sotaque. Veio recomendado à imperatriz Tereza Maria Cristina, esposa de D. Pedro II, filha de Fancisco II, rei das Duas Sicílias.

No Espírito Santo chegou na primavera de 1844, com o objetivo de converter ao cristianismo os bugres que habitavam nas brenhas e nelas viviam à maneira de feras, como diziam os próprios capuchos, imbuídos de fervor catequético capaz de remover estrelas.

Apesar de no Espírito Santo não faltarem bugres nem brenhas – e brenhas cerradas como as do rio Doce e do rio São Mateus, no norte da província -, coube a Gregório de Bene, a quem lhe valeram as recomendações da rainha, a itinerância missionária na região da Serra, próxima da Capital. Ali espalhavam-se fazendas de algodão, milho, café, mandioca e cana de açúcar, com suas casas de farinha e seus alambiques recebendo a melaço. Nenhumas delas opulenta, mas todas com sua escravaria nostálgica, seus senhores tradicio- nalistas e acoronelados, seus costumes consagrados e férreos. Era com estes coronéis de alpercatas e alforjes de couro, de dedos encardidos pelos cigarros de palha, que Frei Gregório iria contar para a construção do templo de São José. Com eles e com seus escravos (NEVES, 1999, p. 26-27).

As condições de produção mostradas no recorte acima nos levam a pensar sobre a construção do ethos do enunciador, na época dos acontecimentos, para atingir sua meta. População historicamente escravizada, os chamados bugres que viviam como feras e os senhores coronéis endurecidos e consa- grados na época como representante da lei, assessorados por uma vasta escravaria, não seriam alvos fáceis de atingir e convencer, caso não investissem fortemente na sua imagem e não fizessem uso das palavras como meio de convencimento.

Haveria de se deixar incorporar por um ethos de um enunciador que se revestisse com tom e postura de homem simples, que assumisse como

enunciador, Deus, para atrair para si a comunidade religiosa. Ilustra a cena da visão com o lirismo das palavras e da luz que vem do alto, quanto mais brilho desse ele à cena, mais crédito ganharia e, por isso, se assume na própria visão ostentando o seu ethos de coragem ao desbravar o local escolhido pelo Criador, como leremos abaixo em que se expõe como enunciador em terceira pessoa.

Recorte 17

O que vejo agora é o próprio frade em atitude beatífica contemplando a igreja que tem pela frente, ardem-lhe os olhos do suor que escorre das pálpebras, pesa-lhe o corpo da caminhada pela encosta do morro, doem-lhe as pernas da marcha que começou na margem do rio e o trouxe, por trilhas tortuosas, ao ponto onde está e parou, sob a carapaça vegetal das árvores que disparam, como rajadas silen- ciosas, galhos por todos os lados (NEVES, 1999, p. 23).

Um ethos sofrido, porém, articulador, toma o enunciador. É diante de tamanho esforço e sem nenhum interesse, que está lançada a semente para a construção da igreja. Segundo o frade, a visão durou pouco, mas o suficiente para confirmar que ali deveria ser erguida uma igreja em homenagem a São José.

Enquanto isso, no Monólogo, o enunciador assume um ethos descontraído para falar, não mede as palavras, sem escrúpulos, sem tabus e consciente de sua circulação por registros diversificados dos quais lança mão para falar de suas reais intenções. Utiliza as palavras como armas para persuadir os fiéis e assume que as utiliza propositalmente. Com elas diz e não diz, cria suposições e desentendimentos. A certeza dos propósitos desse ethos define bem o seu posicionamento distanciado da imagem de um religioso, que fala em nome de Deus, como se pode confrontar no excerto 18.

Recorte 18

Uma palavra vai, outra vem. Uma me serve agora, outra depois. Rapo, tiro, ponho e deixo, fazendo as pregações da mentira, rezando as orações da incerteza. Com palavras digo e não digo, insinuo suposições, tecendo subentendidos. Com elas faço meu jogo, monto mal-entendidos (NEVES, 1999, p.95).

Diferentemente da forma como se apresenta o enunciador em A visão do frade, no Monólogo ele se mostra como o que barganha, que contradiz o anterior. Um novo ethos se incorpora. Alguns termos utilizados por ele marcam e fortalecem suas proposições na cenografia: mentira, incerteza, suposições, subentendidos e jogo. São termos chaves para criar um emaranhado de interpretações na mente dos fiéis, entre eles, os de maior interesse, os cativos, que entendem que o trabalho será trocado pela alforria. Dessa forma, o ethos apresentado exercita a desconstrução do anterior, em função dessa imagem que tira, rapa e põe palavras, criando especulações sobre suas pregações.

Devemos lembrar que o ethos de um discurso resulta de uma interação entre a

corporalidade, o tom e o caráfter que dá sustentação ao enunciador no interior

da cena para maior validade de suas ações. Com essa interação entre as funções, ele faz a sua apresentação:

Recorte 19

Eu, Gregório de Bene, indigníssimo servo de Deus, sou aquele que vai edificar sobre o verbo a casa do senhor São José, custe a João e a Chico a crença na liberdade, custe-lhes a vida na forca, custe a queda de um despencado, custe o badalar de um sino antes do chamamento das missas. [...]. Por São José não me peçam, que só

tenham olhos no santo, que veja o vulto das forças na sombra das

mãos dos negros. Eu, Gregório de Bene, sou servo do verbo que falo (NEVES, 1999, p. 95-96). [grifo nosso]

Instaura-se, então, a amostra de um caráter e um tom que unidos à corpora-

lidade fortalecem a imagem de um religioso revestido de perspicácia e parato-

pias difusas que emergem da enunciação e da intenção do enunciador.

As duas cenografias, nas quais o religioso se apresenta em situações que se diversificam, ele se constrói e se desconstrói. No interior do Monólogo, o enunciador realça, por meio dos termos em destaque no recorte acima, que não quer ser visto com os olhos daquele que só vive voltado para o santo, isto deixa implícita a sua posição oposta aos propósitos de religioso.

Parafraseando o autor que diz devolvo o lugar ao frade, digo que, com as palavras do frade no recorte dezenove, devolvo o lugar ao homem, incorporado do ethos dotado de interesses pessoais por suas ligações na Corte e que deseja garantir sua imagem de homem operante aos olhos da imperatriz

Tereza Maria Cristina, esposa de D. Pedro II, augusto imperador, já que foi nomeado vice-prefeito da Missão dos Sagrados Corações de Jesus e Maria, instituída por ordem imperial em 1845: Por São José não me peçam, que só

tenho olhos no santo, que veja o vulto das forças na sombra das mãos dos negros (NEVES, 1999, p. 23).

Assim se elabora a imagem desse enunciador que interage e confere a si próprio uma identificação compatível com o mundo, sobre a qual ele, indiretamente, deseja construir em seu enunciado.

3.2 Diálogos compartilhados