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CAPÍTULO III OS GÊNEROS DE DISCURSO, CENOGRAFIA E ETHOS

3.4 O gênero exortação

3.4.1 Cenas de enunciação no gênero exortação

Antes de tudo, pois, exorto que se use a prática de súplicas, orações, intercessões, ações de graça, em favor de todos os homens. (Timóteo, 2.1)

Antes de entrarmos no texto propriamente dito, vamos explorar didaticamente o entendimento sobre esse dom, o de exortar, tão usual, principalmente em contextos religiosos. O gênero exortar significa chamamento, trazer pessoas para, aproximar para algum propósito. No que diz respeito à religião, que é o nosso foco central, trata-se de aproximar pessoas de Deus ou levá-las a participar dos propósitos religiosos.

Pode-se entender também como uma maneira de conclamar os fiéis a assumir certas atitudes a favor de Deus e a obedecer a um propósito divino. O que

exorta faça-o com dedicação... (Romanos 12.8). Em Romanos, o apóstolo

Paulo nos instrui a nos dedicarmos à prática dos dons. Temos que desenvolvê- los e fazer uso deles.

A exortação pode ser aclamada ainda como um fortalecimento da fé, como lido em Atos 22: Fortalecendo a alma dos discípulos, exortando-os a permanecer

firmes na fé; e mostrando que, através de muitas tribulações, nos importa entrar no reino de Deus. Portanto, entendemos que todo aquele que tem o dom

de exortar, pode convencer por meio de palavras e / ou atitudes o outro. Os apóstolos, os profetas, os evangelizadores, pastores, padres, mestres entre outros, cheios de propósitos ou do espírito de Deus, podem exortar.

Embora extensivo a todos os espaços discursivos em que a persuasão se faz presente, o gênero exortação, aqui, está sendo analisado em situação enun- ciativa onde o enunciador é um frade que deseja a todo custo conquistar a adesão de um grupo de escravos para a construção de seu sonho, a igreja de São José, o que remete a exortação ao campo religioso.

O pesquisador Roberto Segundo (2008) apropria-se das ideias sobre exortação trazidas por Longracre (apud REBELO, 1999) e avalia que um exemplar de texto exortativo deve apresentar uma situação problema seguida de uma solução ou resposta para a mesma. Podem conter determinações bem como sugestões, com verbos no imperativo ou modalizados, que exijam alguma ação do leitor; além de estágios de argumentos que demonstrem a autoridade do enunciador, no caso, do escritor. Assim, procurar-se-á analisar o papel que a modalidade exerce nesse processo de exortação e persuasão, inerente ao gênero, principalmente nos estágios de comandos e / ou sugestões e na constituição da autoridade do enunciador.

Como já vimos anteriormente o enunciador dessa cenografia é um frade que se reconstrói em várias cenas, assumindo um ethos em combinação para cada situação.

A cenografia da exortação foi construída no capítulo 23 (NEVES, 1999), no qual o narrador retoma a cena inicial e expõe a situação do enunciador com os co-enunciadores que, após o primeiro sermão, prepara o mutirão para a construção da igreja, iniciada em setembro de 1845.

Escravos cedidos pelos fazendeiros trabalhariam aos domingos e feriados. Não se esquecendo das noites de lua cheia, para aproveitar a luz natural. Os que primeiro ocuparam o posto, denominados pelo frade de menos obreiros, foram Chico Prego, Elisiário, João da Viúva, Domingos Corcunda, Carlos, Adão e Cipriano. O problema central da cena de enunciação é a construção do templo, seguida da adesão dos co-enunciadores para tal empreitada.

Embora reconhecidos pelo enunciador como menos obreiros, eles se posi- cionavam e se mantinham prontos para quebrar e carregar pedras, bem como escavar valas para as fundações e depois levantar as paredes que desenha-

riam a igreja. O trabalho foi iniciado sem que eles, os co-enunciadores, sequer questionassem o que receberiam em troca. Ninguém perguntou o que iam ganhar com a construção da igreja. Contudo, não se pode deixar de destacar que todos confiavam e fortaleciam a ideia da liberdade, imaginada após ouvirem o primeiro sermão, como leremos abaixo:

Recorte 58

Frei Gregório celebrou a missa propiciatória que terminou num viva ao padroeiro São José, o coro de vozes vivando em resposta.

Durante a celebração, empolgado com o início dos trabalhos, pediu as bênçãos do Senhor e do padroeiro do templo para o sucesso da empreitada, espargiu água benta sobre o sítio em que a igreja seria assentada, exortou os escravos a se empenharem nas obras (NEVES, 1999, p. 52).

Podemos dizer que essa é a cenografia da exortação, de convencimento aos co-enunciadores para a doação de seus préstimos na edificação da obra. Partindo do pressuposto que exortar também é uma maneira de conclamar os fiéis a assumir certas atitudes a favor de Deus e a obedecer a um propósito divino, o que exorta faça-o com dedicação... e, fortalecendo ainda mais o pedido, utiliza-se das palavras, não despretensiosas, mas selecionadas com aquela magia que cada palavra tem. Enaltece os co-enunciadores, combina implicitamente com eles uma negociação e repete na cenografia abaixo o que já havia falado no primeiro sermão. Vejamos:

Recorte 59

– São José está velando por todos, – anunciou como se promulgasse uma bula papal. E tornou a prometer que intercederia pelos trabalhadores do templo, junto aos seus donos, a fim de lhes amainar a pesada canga do cativeiro (NEVES, 1999, p. 52).

Podemos observar na cenografia acima que o enunciador se respalda nos termos que sugerem autoridade, confiança e promessas em nome do Santo como: São José está velando por todos, tornou a prometer, intercederia.

Mais uma vez os co-enunciadores ouviram, mais uma vez guardaram. E cons- truíram no íntimo, apoiados pelas palavras, a alforria. Eles conheciam o signi- ficado da palavra canga, mas ignoravam o da palavra amainar. Mas pelo que

sabiam, deduziam o que não sabiam, para bom entendedor meia insinuação basta.

3.4.2 A constituição do ethos discursivo no gênero exortação

Nesta cenografia o frade se apresenta como um enunciador que constrói o templo com as palavras ditas para os co-enunciadores. Reforça a sua imagem já anteriormente produzida na cenografia inicial, ou seja, na celebração da primeira missa rezada para a construção da igreja. Seu estatuto de verdade criado anteriormente é fortalecido no momento da exortação.

Novamente o religioso fala em nome de Deus e garante a liberdade para os coenunciadores ali presentes pelo fato de ser detentor de conhecimentos espirituais. Apresenta-se como enunciador de um discurso já ouvido pelos cativos presentes no decorrer da outra cenografia. A confiança que se estabelece entre enunciador e co-enunciador cria, no universo dos cativos, um cenário esperado.

O enunciador fala sob a voz de Deus como na primeira missa em Queimado. Repete as expressões justa paga e merecida compensação, que impulsiona- ram os co-enunciadores ao trabalho em dias santos, domingos e feriados. Nesse sentido e como forma de amenizar a culpa, o enunciador, representado, ali, pelo autor, faz algumas argumentações posteriores relatando que talvez o verbo empregado pelo frade tenha sido de modo errado, mas, soou aos

escravos igualmente promissor. Vejamos abaixo o que diz o recorte:

Recorte 60

O fato é que uma expectativa favorável se instalara entre eles, desencadeada pelas palavras do frei. Já não era possível esquecer o que se tomava como certo, ainda que fosse duvidoso (NEVES, 1999, p. 53).

Observamos que o enunciador se mantém perseverante nos seus propósitos enunciativos. Esse ethos é perceptível pela sua resistência e pelo tom de certe- za com o qual faz referência aos co-enunciadores. Em um momento único pro- meteu em nome de São José: São José está velando por todos, assegurou e anunciou, como se promulgasse uma bula papal. Era preciso convencer os negros do compromisso com São José.