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CAPÍTULO I – DISPOSITIVOS DA ANÁLISE DO DISCURSO

1.6 O ethos discursivo

Há uma grande variação em torno da concepção de ethos, bem como sobre a sua escrita. Entre elas assinalamos algumas considerações que Maingueneau

faz sobre o ethos, em nota de rodapé, no livro Cenas da Enunciação (2008, p. 55), elencando que o termo em questão traz alguns problemas ortográficos, mas se quisermos seguir as convenções em relação às palavras gregas, deveríamos escrevê-la com um ê, e não como é usado normalmente e, como o próprio autor destaca.

Hoje está cada vez mais frequente nos estudos a noção de ethos discursivo, o que não acontecia anteriormente devido aos constantes interesses sobre a re- tórica. Na verdade, o ethos só teve sua ascensão em 1980, quando começou a ocupar um lugar de reflexão com relação ao discurso, como leremos no recor- te:

No que se refere à França, parece-me que é em 1984 que começa a exploração do ethos em termos pragmáticos ou discursivos: Ducrot, que integra o ethos a uma conceituação enunciativa (Ducrot, 1984: 201) e eu mesmo, que proponho uma teoria de ethos em um quadro da análise do discurso (Maingueneau, 1984, 1987). Anteriormente, M. Le Guern (1977) havia chamado a atenção para o valor que essa noção tinha na retórica do século XVII (MAINGUENEAU, 2008, p. 55). Dessa forma, o ethos tornou-se objeto de estudo ainda maior, a partir da pro- posta de Maingueneau, que não só desperta comentários sobre ethos e sobre conceito do corpus retórico, como também dá lugar a novos prolongamentos no

quadro das disciplinas que estudam o discurso, conforme discorre no recorte

acima. Tal interesse surge em consonância com o domínio das mídias audio- visuais: com elas, o centro de interesse deslocou-se das doutrinas e dos apare-

lhos que lhes estavam ligados para a apresentação de si, para o look; fenô- meno que Regis Debray, por exemplo, teorizou em termos de midialogia

(MAINGUENEAU, 2008, p. 55-56).

Não nos deteremos sobre esses aspectos. Apenas fizemos algumas observa- ções, para que possamos compreender as questões que envolvem a noção de

ethos discursivo. É também importante fundamentar que, sobre o ethos, Aris-

tóteles, na Retórica, visa examinar o que é persuasivo não para esse ou aquele indivíduo, mas para esse ou aquele tipo de indivíduo. O ethos consiste em transmitir uma boa impressão, no instante em que se produz um discurso e, por meio dele, projeta-se uma imagem de si capaz de convencer um público, que

vê revestido nele a sua imagem. A partir desse momento estabelece-se entre eles a confiança.

O ethos, do qual o enunciador dispõe com a finalidade de estabelecer a con- fiança, mobiliza o seu co-enunciador que, na enunciação discursiva, se vê en- volvido pela imagem que se apresenta, familiarizando-se com sua situação naquele momento e lugar. O ethos discursivo projeta-se a partir de elementos os quais, sem eles, não se poderia formar uma imagem psicológica e socio- lógica do enunciador, que são: o tom de voz da fala, seleção de palavras, argumentos, gesticulação, as mímicas, o olhar, a postura, a atitude, entre ou- tros tantos elementos que atribuímos a ele e que formam um caráter e uma corporalidade. Lembrando que caráter e corporalidade não se separam, for- mando valores no interior de uma coletividade na qual a enunciação é produ- zida, conforme leremos:

Persuade-se pelo caráter (=ethos) quando o discurso é organizado de maneira a tornar o orador digno de confiança; confiamos de fato de modo mais imediato e intenso em homens de bem, no tocante a todos os assuntos em geral, e completamente no tocante a questões que, não admitindo nenhum grau de certeza, deixam margem a dúvidas (1967, DUFOUR, apud MAINGUENEAU, 2006, p. 267).

De acordo com Maingueneau (2008b, p. 57), o ethos não age no primeiro ins- tante, é preciso que se estabeleça entre o enunciador e os co-enunciadores laços confiáveis intercalando ligações que Maingueneau denomina de laterais. Esses laços podem ser observados ao longo do discurso. Numa experiência sensível, o ethos trabalha questões de afetividades junto ao público.

Tratando da Retórica, Aristóteles aponta interferências de duas formas em re- lação ao ethos: a primeira, quando se persuade pelo caráter, quando o discur- so é produzido com a finalidade de destacar a dignidade do enunciador. Assim, confiamos com maior rapidez. Principalmente quando são entrelaçadas com as três características importantes que são: a prudência (phronesis), a virtude (arete) e a benevolência (eunoia), tendo em vista que o ethos retórico, ainda no primeiro emprego, está ligado à própria enunciação.

No que diz respeito à segunda hipótese, a noção de ethos está ligada à cons- trução da identidade. As palavras são utilizadas considerando a representação que o enunciador e os coenunciadores produzem entre eles, bem como a es- tratégia trabalhada pelo locutor para que se estabeleça entre eles uma nego- ciação.

Embora pareça simples, a noção de ethos apresenta uma série de questões a serem discutidas. Por exemplo, sabemos que esse princípio está ligado ao ato de enunciação. Todavia, destacamos que o público também constrói a imagem do sujeito antes mesmo que ele se apresente, pois já tem uma imagem dele previamente formada:

Parece necessário estabelecer uma distinção entre ethos discursivo e

ethos pré-discursivo. Só o primeiro, como vimos, corresponde à defi-

nição de Aristóteles. Certamente, existem tipos de discurso ou de cir- cunstâncias para as quais não se espera que o destinatário disponha de representações prévias do ethos do locutor: isso ocorre, por exem- plo, quando se abre um romance (MAINGUENEAU, 2008b, p. 60).

Mas, mesmo assim, retomando o recorte acima, quando o destinatário não tem nenhum conhecimento sobre o ethos discursivo, ele traz a referência de o texto pertencer a um certo tipo de gênero de discurso ou, ainda, de assumir um determinado posicionamento, e isso, já cria no co-enunciador certa perspectiva com relação ao ethos.

Em seus postulados, Maingueneau propõe que vários problemas podem surgir durante a constituição do ethos discursivo, visto que as características nas quais se apoiam os analistas vão desde os registros da língua e das palavras

até o planejamento textual, passando pelo ritmo e modulação (MAINGUE-

NEAU, 2008b, p. 60). Logo, essa associação linguística com a ambientação discursiva propicia a construção das cenografias em que o enunciador, o padre Gregório de Bene incorpora uma imagem de si, a partir de propostas variadas e que se transmutam no interior de cada cena instaurada.

Dessa forma é que se dá a construção de um ethos com o objetivo de esta- belecer um pacto de negociação entre o enunciador e o co-enunciador, que o

assiste. Uma negociação que envolve a afetividade do analista que, por sua vez, busca informações do material linguístico e do ambiente em que acontece a enunciação.

Maingueneau (2008b, p. 63) expõe que dentro dos limites da Retórica de Aris- tóteles, pode-se concordar com algumas ideias, sem prejulgar a forma pela qual elas poderão ser exploradas. Entretanto, a sua concepção pessoal de

ethos, se inscreve em um quadro da análise do discurso, que mesmo sendo

bem diferente, a sua problemática não é tão infiel às linhas de força da concepção aristotélica do ethos.

Com base nas amostras que vamos propor para as análises é possível refletir sobre um enunciador e sua imagem, estabelecendo entre ele e os co-enuncia- dores a confiança de homem de Deus, vinculados ao exercício da palavra. No interior de cada discurso apresentado, trabalha por meio do tom de voz, do ritmo, das expressões faciais, do olhar, da postura e atitude, a autoestima dos co-enunciadores, para assumirem seus compromissos com a fé católica e se empenharem na construção do templo de São José.

Por fim, esse trajeto teórico se justifica, pois ele nos dará o norte para os ca- pítulos seguintes. No próximo capítulo, trataremos das condições sócio-históri- cas de produção de nosso objeto de análise. Tomaremos como corpus O

Templo e a Forca e o apresentaremos em sua constituição literária com algu-

mas associações ao texto original de Afonso Cláudio de Freitas Rosa. Trata- remos também do autor em sua construção empírica e literária, bem como suscitaremos algumas informações relacionadas ao padre, enunciador principal do discurso, por terem sido considerados por nós de suma relevância para a compreensão do discurso literário, que examinaremos.