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A cerâmica cerimonial marajoara Urnas, vasos e recipientes

O ESTILO DA CERÂMICA CERIMONIAL MARAJOARA

2. A cerâmica cerimonial marajoara Urnas, vasos e recipientes

A primeira dificuldade encontrada devido à descontextualização arqueológica da coleção foi a própria seleção das peças cuja função de “urna funerária” poderia ser inferida apenas através dos atributos formais do vasilhame. Além das 69 peças aqui analisadas, a coleção conta com outros 61 vasilhames classificados como “vasos”, cujas formas, mais alongadas e com boca constrita, em muito se assemelham às das urnas.

Constatamos que na literatura da arqueologia marajoara não existe de fato uma definição tipológica precisa daqueles vasilhames descritos enquanto urnas funerárias e que, na verdade, o termo “urna” é geralmente utilizado para descrever os vasilhames encontrados nos contextos funerários contendo restos humanos, mas está ausente nas tipologias de atributos formais de vasilhames.

Nas tipologias avançadas por Meggers e Evans, as “urnas” se enquadram assim em uma série de formas de vasilhames definidos para cada tipo (tecno- estilístico), correspondendo, em geral, às formas que ocorrem em maiores dimensões. O termo inglês “jar” (traduzido como “vaso”) é utilizado de maneira genérica para todas estas formas, com exceção da forma de no. 14 do tipo Joanes Pintado, à qual os autores se referem como “funerary jars” (Meggers e Evans, 1957:162), apesar de muitas outras formas estarem documentadas nos desenhos que acompanham suas descrições das estruturas funerárias.

Verificamos que a tipologia cerâmica de Meggers, para organizar os diferentes tipos e suas variações, privilegiou os atributos técnicas de tratamento de superfície e forma do vasilhame, nesta ordem hierárquica, deixando em segundo plano os motivos executados e sua distribuição no vasilhame, o que ficaria dificultado por uma amostra com uma grande quantidade de fragmentos (e não peças inteiras) a partir dos quais estes atributos nem sempre poderiam ser observados.

No sistema de classificação de vasilhames do material escavado e descrito por Schaan para os aterros Camutins e Belém, as formas foram igualmente privilegiadas para se deduzir diferenciações de função e propor sua classificação em três grupos distintos: vasilhames para a preparação de alimentos (“food processing vessels”); vasilhames para beber e estocar líquidos (containers for drinking and storage”); e vasilhames para servir (“serving

vessels”). As formas das urnas funerárias descritas para estes sítios corresponderiam aqui também àquelas que ocorrem em maiores dimensões no segundo grupo, o de vasilhames para beber e estocar líquidos, em particular as formas de no. XXVI, XXVII e XXVIII (Schaan, 2004:287-288).

urnas da coleção ICBS-MAE não apresentou correspondência entre os tipos propostos e formas encontradas. Surpreendentemente, os vasilhames da coleção apresentaram uma variabilidade de formas muito maior do que as descritas tanto por Meggers e Evans como por Schaan, o que provavelmente se deve a dois fatores. Um fator metodológico, isto é, ao fato de que as tipologias foram concebidas baseadas na reconstituição de formas a partir de muitos fragmentos de bordas e bases e alguns poucos vasilhames inteiros, e que uma amostra maior de vasilhames inteiros, tal qual a amostra da coleção ICBS-MAE, apresentaria variações formais de difícil reconstituição através apenas de fragmentos. Outro fator, de ordem mais conceitual, é o fato de que as tipologias foram construídas para dar conta da variabilidade encontrada na maior parte do material escavado que, em ambos os casos, corresponde à cerâmica utilitária, e que, provavelmente, a cerâmica ritual apresenta outros parâmetros de variabilidade.

Neste sentido, o sistema de classificação da cerâmica marajoara proposto por Roosevelt, no qual ela separa a cerâmica cerimonial (utilizada em contextos rituais e funerários) da cerâmica utilitária (para se processar e servir alimentos), parece mais apropriado para uma análise de materiais cerâmicos descontextualizados, em particular das urnas funerárias. Roosevelt registrou uma maior variabilidade e complexidade nas formas, técnicas e acabamento dos vasilhames da cerâmica cerimonial escavada no Teso dos Bichos, um sítio mais a leste na ilha de Marajó, que integra outros grupos de sítios ao longo do rio Arari. Para este material, Roosevelt chega a argumentar que a cerâmica cerimonial teria sido feita não só para usos distintos reservados às elites locais, mas também por um grupo mais especializado de ceramistas (Roosevelt, 1991:370).

Dentre as características apontadas por Roosevelt para a cerâmica cerimonial estão:

- superfícies mais bem alisadas e polidas; - modelagens figurativas mais apuradas;

- decoração incisa-excisa aplicada nas paredes externas de forma mais fina e complexa, freqüentemente combinada com pintura vermelha e branca;

- pintura policrômica figurativa mais apurada;

- formas com contornos mais complexos, carenadas, e por vezes formando silhuetas excêntricas ou efígies;

- as bordas são mais grossas, angulares e complexas, e são freqüentemente decoradas com adornos figurando humanos e animais;

- as bases são mais complexas, incluindo bases em pedestal.

Apesar de Roosevelt ter identificado a distribuição exclusiva da cerâmica cerimonial em sítios não habitacionais, incluindo os cemitérios, tanto Meggers como Schaan descrevem também cerâmicas mais simples, não decoradas, encontradas nas estruturas funerárias e utilizadas inclusive como urnas. Assim, mesmo que haja uma diferença de concepção e de execução de uma cerâmica cerimonial, não sabemos ao certo se as cerâmicas depositadas nas estruturas funerárias marajoara, em especial as urnas funerárias, tenham sido fabricadas especialmente para este propósito ou se, pelo menos em alguns casos, cerâmicas utilitárias tenham sido re-aproveitadas para fins funerários.

Na Amazônia, existem registros etnográficos de cerâmicas que são fabricadas sem decoração para uma determinada função e que podem ser posteriormente decoradas para serem usadas para fins cerimoniais ou rituais, e são assim re-usadas e re-pintadas conforme a ocasião, tal como nos relata Lagrou para a cerâmica Kaxinawá:

Assim como nem sempre e nem todos os corpos são pintados, também nem todos os objetos keneya têm desenho. Panelas para cozinhar comida não são pintadas, mas pratos para servir comida podem sê-lo. A pintura é associada a uma fase de novidade na vida do objeto ou da pessoa, uma fase na qual é desejável enfatizar a superfície lisa e perfeita do corpo em questão. O desenho chama a atenção para as novidades na experiência visual, que anunciam eventos cruciais da vida. O desenho desaparece com o uso e só é refeito por ocasião de uma festa. Assim, coisas com o desenho ocupam um lugar especial na cultura Kaxinawá, como em outras culturas do ocidente amazônico. (Lagrou, 2002:40).

De qualquer forma, parece claro que a presença ou ausência de decoração nos vasilhames em si, não é um indicador exclusivo para definir a cerâmica enquanto cerimonial e, muito menos, funerária, e que um conjunto mais complexo de atributos deve ser considerado.

Os atributos observados1

Foi com base no conjunto de atributos formais indicados por Roosevelt e naqueles descritos para os recipientes funerários individualmente documentados por Meggers e Evans e por Schaan para os sítios do alto Anajás, que procedemos à análise de uma gama bastante extensa de atributos formais de todos os vasilhames decorados da coleção ICBS-MAE para separar aqueles que pudessem ser classificados como urnas funerárias. A presença ou ausência destes atributos foram inicialmente registrados de forma descritiva, pois, em se tratando de peças descontextualizadas, cujos critérios de coleta e formação de coleção foram provavelmente a boa conservação e presença de decoração nas peças, desde o início de nossas análises, nos pareceu inapropriado empregar a qualquer metodologia quantitativa, mesmo sendo esta uma amostra bastante volumosa.

Os atributos observados nos vasilhames foram: Dimensões

Forma/contorno do vasilhame Acabamento da superfície

Motivos decorativos e representação figurativa:

- técnicas empregadas (pintura, incisão, excisão, incisão e excisão, modelagem, modelagem e pintura);

- localização na peça: bojo, pescoço, borda externa, borda interna, alça; - ocorrência em pares simétricos

Tipo de motivo decorativo: linhas duplas, reticulado, ondas, espirais, espirais duplas, ziguezagues, círculos, retângulos, lozangos, escalonados, cruzes, outro;

Tipo de representações figurativas: (assim denominados a título de identificação)

- coruja/mulher, cobra, lagarto, morcego, escorpião, macaco, figura antropomorfa genérica, rosto sorridente, olho, boca, tridígito, outro.

Esta análise inicial de vasilhames inteiros evidenciou algumas possibilidades de associações entre técnicas e motivos, imprevistas nas tipologias disponíveis, e que dificilmente seriam contempladas em uma análise

1

Esta análise da presença e ausência dos atributos aqui mencionados em vasilhames da coleção ICBS-MAE, foi realizada com todos os vasilhames da coleção, incluindo urnas, vasos, tigelas e pratos, em um total de 354 peças. Resultados parciais desta análise foram

multivariada destes atributos em coleções formadas por fragmentos. Algumas das associações observadas foram:

a) Os mesmos motivos, ou motivos muito semelhantes, podem ser aplicados no mesmo vasilhame, mas serem executados em técnicas diferentes. Isto ocorre em recipientes abertos, em que as superfícies tanto interna como externa são visíveis e com a utilização de técnicas diferentes em cada uma. Isto indica a importância do modo de fazer não só como uma técnica de aplicação de um motivo ou figura, mas talvez também como marca de um estilo, na qual o meio (ou a mídia) pode ser tão importante quanto a mensagem. Isto é, o fato de um vasilhame ser pintado pode ser tão relevante quanto a figura ou o motivo pintado à sua superfície. Percebemos que quando os mesmo motivos são aplicados com diferentes técnicas de acordo com a superfície, há uma preferência pela pintura nas superfícies internas. Talvez isto se deva à função do vasilhame, mas, como veremos adiante, esta preferência certamente está relacionada a princípios mais gerais do estilo marajoara relativos aos planos internos e externos, invisíveis e visíveis dos objetos.

Figura 4.2

Pequenas tigelas da coleção ICBS-MAE com os mesmos motivos na superfície interna pintada e na superfície externa incisa-excisa. Peças de no. 646 (diâmetro: 11,8 cm) e 645 (diâmetro: 13,5)

b) Desenhos com traços formais diferentes podem resultar em efeitos visuais semelhantes, inclusive executados em técnicas diferentes, como a pintura e a excisão. Motivos formalmente distintos, mas semelhantes (que com certeza seriam classificados em categorias distintas se observados apenas em fragmentos) nos indicam a importância de outras variáveis na percepção dos padrões, tais quais a visibilidade do gesto na pintura, ou o os efeitos de ritmo, de movimento, de repetição e simetria nos diferentes de campos decorativos.

Figura 4.3

Tigelas da coleção ICBS-MAE

a) 1575: tigela com pintura vermelha sobre engobo branco (alt.: 4,8 cm; diâmetro:

10,4cm); b) 653 tigela com linhas vermelhas paralelas e linha preta em zig-zag (altura: 9 cm ; diâm. 20 cm); c) 693: tigela pintada com motivos em zig-zag (altura: 9 cm; diâmetro: 20 cm); d) 708: tigela excisa (altura: 9cm; diam.: 20 cm); e) 324: tigela com pintura preta e vermelha sobre engobo alaranjado (altura: 7,5 cm; diâmetro: 19 cm).

a

b

c d

c) Alguns motivos são aplicados em objetos de formas e função distintas, enquanto outros são exclusivos a determinados objetos. Percebe-se uma independência relativa entre formas, técnicas, figuras e motivos geométricos na maneira em que estes elementos se combinam, apesar de um repertório bastante rígido, bem delimitado, e preciso.

Figura 4.4

Peças da coleção ICBS-MAE com o motivo do “rosto sorridente”

a) 675: pequena tigela com decoração incisa (alt.:7cm; largura: 14 cm) b) 655: pequena tigela com decoração pintada (alt.: 7cm; largura: 21 cm)

c) 740: osso longo cortado com motivos incisos (as duas faces foram desenhadas lado a

lado; comprimento: 7 cm; diâmetro: 2,5 cm)

d) 1633: urna funerária pintada (altura: 51,5 cm; diâmetro do bojo: 48cm)

a b

d c

Assim, ao tentar mapear as associações entre maneiras de fazer, motivos e formas deparamo-nos com dificuldades metodológicas consideráveis na definição de associações recorrentes entre cada um destes elementos.

Percebemos outros atributos estilísticos que não seriam visíveis em uma análise quantitativa multivariada, como geralmente se faz com amostras de fragmentos cerâmicos, e que poderiam ser mais relevantes para uma analise da cerâmica cerimonial funerária. São elementos próprios a toda a gama de objetos cerâmicos decorados da fase marajoara e que dizem respeito à estruturação dos campos decorativos, aos efeitos de ritmo, forma e movimento, enfim, a recursos pictóricos de uma linguagem visual marajoara que não haviam sido contemplados em análises anteriores1. Enfim percebemos que a compilação de signos e suas formas de execução, como privilegiadas nas tipologias e estudos da cerâmica marajoara disponíveis na literatura arqueológica, não dariam conta de descrever estes elementos. Por isso mesmo, e apesar de serem atributos que extrapolam a cerâmica funerária e podem ser observados na cerâmica marajoara decorada como um todo, consideramos importante apresentá-los aqui, como mais um recurso para a análise das urnas funerárias.

Partimos da idéia de que a decoração de objetos é um componente de uma “tecnologia social”, ou uma “tecnologia de encantamento” nos termos definidos por Alfred Gell (1992 e 1998:66) para entender a intenção dos efeitos visuais almejados e as formas de conferir agência aos objetos na cerâmica decorada marajoara. Identificamos assim alguns recursos tecno- estilísticos que propiciam um engajamento entre o objeto (índice) e os indivíduos que o observam (receptores), definidos por Gell como “captivation”, “attachment”, “animation” e outros. São efeitos que além de provocar experiências sensoriais, exercem controle sobre a maneira como o observador se relaciona com identidades sociais que são representadas de diferentes maneiras na decoração do objeto.

1

É necessário apontar que no caso dos estudos iconográficos da cerâmica marajoara realizados por Schaan, a autora explicitou a escolha de trabalhar com unidades mínimas de significação de forma isolada: “É importante salientar que essas unidades não foram isoladas a partir de um

método de análise formal como propõe Shepard (1976), mas buscando as estruturas mínimas, independente do local e posição onde aparecem nas vasilhas...Sendo assim não consideramos a posição formal relativa das unidades dentro do conjunto, mas isolamos unidades as partir da

3. As tecnologias de encantamento da cerâmica marajoara