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Lições da etnologia: estilo, cultura material e ritual

ARTE, ARQUEOLOGIA E TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS NA AMAZÔNIA PRÉ-COLONIAL

4. Lições da etnologia: estilo, cultura material e ritual

Outra decorrência metodológica de nossas inspirações teóricas é a escolha de uma definição operacional de estilo artístico, ou simplesmente estilo, gerada a partir da observação de diferentes sistemas estilísticos, que incorpora tanto a perspectiva levistraussiana de estilo, enquanto um sistema de significados, como a perspectiva gelliana sobre formas de agência e tecnologias de encantamento.

Por isso, adotamos a definição de estilo desenvolvida por Peter Roe em vários de seus trabalhos sobre arte e cosmologia amazônica (Roe,1982), mas formalmente construído e generalizado para estudos arqueológicos e etnográficos em geral, em “Style, Society, Myth and Structure” (Roe, 1995). De

“Style can be analyzed as an aspect of culture, which is a system of ideas that underlies the behavior of individuals in society. Culture and style in this ideational sense, arise out of a feedback process between individuals; their cognitive structures, drives, and senses; and the learned environment, which encompasses physical, biotic, and socially significant components. Culture and style do not emanate upward from the individual, nor trickle down from some reified superorganic, but instead are negotiated realities, simultaneously

process and product. Individual intent interacts with the properties of raw

materials, knowledge of craft processes, and the social context.” (Roe, 1995:28) Ainda que bastante abrangente, esta definição de estilo nos pareceu bastante operacional na medida em que Roe especifica quais são os elementos envolvidos neste processo de negociação entre a criação individual e as condições específicas dadas pela sociedade. Os elementos especificados por Roe são: (a) reconhecibilidade, ou seja, o estilo deve ser identificado enquanto tal por características que lhe são peculiares; (b) virtuosidade; no sentido de que o estilo pode extrapolar os requisitos necessários à função instrumental do objeto; (c) mídia, isto é, estilo requer sempre um suporte, um veículo, mesmo que este seja apenas um recurso somático; (d) contextualidade, ou seja sua reconhecibilidade depende do contexto a sua volta, podendo ser induzida ou não por este contexto; (e) seletividade, isto é, o estilo é constituído por uma série de escolhas ou seleções de dadas alternativas conhecidas por trás das quais residem intenções (conscientes ou não); (f) natureza normativa, isto é, é uma maneira recorrente de estruturar e apresentar forma ou processo que reflete expectativas entre o artista e seu público; (g) variabilidade limitada, definida por um corpus único e singular; (h) capacidade de afetar emocionalmente ou sensitivamente. Em síntese:

Style is an intentional structured system of selecting certain dimensions of form, process, or principle, function, significance, and affect from among known, alternate possibilities to create pleasing variability within a behavioral-artifactual corpus. Style is both the process of creating information through differentiation, so that it is recognizably evocative of a specific cultural context, and a way of circumscribing choice via the imposition of a frame within which creation or recombination occurs. (Roe,1995:31).

Nem todas estas qualidades de estilo podem ser identificadas no registro arqueológico. Mas reconhecibilidade, seletividade, virtuosidade e variabilidade constituem estão na base da maior parte das inferências arqueológicas sobre estilo.

Alguns arqueólogos sugerem que somente a partir de analogias etnográficas é que a arqueologia pode interpretar as representações simbólicas da arte pré-colombiana. MacDonald (1972), por exemplo, ao associar a iconografia da cerâmica tapajônica (Santarém) e, sobretudo, os animais nela representados, a mitos compartilhados entre grupos indígenas Carib, argumenta que a partir destes mitos atuais pode-se entender como os antigos Tapajós ordenavam seu universo no passado.

Contudo, como vimos, nem sempre a analogia etnográfica dentro de um contexto de continuidade histórica é possível, e outras dimensões dos estilos artísticos arqueológicos devem exploradas, como apontamos acima na relação entre formas de representação e processos de mudança social.

Além disso, sabemos que boa parte da mitologia amazônica lida com causas e conseqüências da forma/aparência específica que tomam diferentes agentes, todos concebidos enquanto essencialmente instáveis e ambíguos em relação aos atributos humanos e não-humanos de uma ontologia perspectivista (Viveiros de Castro, 2004, 2005a), complicando assim consideravelmente a leitura arqueológica.

Especificamente no caso da Amazônia, e para avançarmos na questão de quão diferentes eram as sociedades indígenas pré-coloniais das atuais, nos parece que um novo olhar sobre a arte e estilos artísticos das tradições arqueológicas pode contribuir para algumas respostas, se acompanhadas pela experiência etnográfica com os domínios simbólicos de sistemas específicos de arte, representação e comunicação através da cultura material, e em particular da cerâmica, que parece ser um universo de estudo comum à etnografia e à arqueologia.

Em primeiro lugar é preciso partir das lições da etnologia sobre o visível e o invisível no mundo ritual ameríndio, como apontou Lagrou (2007). Ainda que haja um certo consenso de que os rituais são momentos particulares em que a reatualização ou reordenação do cosmos incorre muitas vezes na multiplicação de objetos rituais como forma de intensificação e extensão dos agentes naturais e sobrenaturais (as máscaras talvez sejam o exemplo mais evidente deste

nem sempre os são de forma material e tangível. Mas autores como Barcelos Neto e Lagrou, reconhecem que os artefatos se encontram no cruzamento entre noções de pessoa e de corporalidade(s) e a partir da análise que tecem sobre sua atuação nas redes de interações sociais entre pessoas e entre corpos, surgem generalizações que podem ser estendidas para a análise de artefatos arqueológicos.

A segunda lição fundamental da etnologia ameríndia é que não parece haver um padrão que nos sirva de guia para elegermos o que é um objeto ritual, podendo estes ser artefatos muito simples e pouco trabalhados. Às vezes nem sequer são artefatos, no sentido estrito do termo, isto é, materiais alterados na forma e aparência pela ação humana. Podem ser objetos sem decoração, ou objetos com funções utilitárias específicas, tais quais bancos ou raladores de mandioca, e que são integrados em rituais específicos incorporando significados simbólicos diferentes. Mas, o inverso não é verdadeiro, isto é, aqueles objetos que demandam uma maior maestria artística, quer na sua composição quer na sua decoração, são, em geral, objetos fabricados para uso ritual. As regras não são rígidas, mas oferecem algum parâmetro para a arqueologia.

Outro fato que dificulta a consideração de artefatos arqueológicos em um sistema mais amplo de produção ritual, é de que dispomos provavelmente de apenas uma parcela da variada gama de objetos rituais observadas na etnologia da Amazônia, da qual constam uma série de materiais perecíveis em plumas, palha, algodão, e madeira, os quais raramente se preservam em contextos arqueológicos.

Está claro que a análise de uma estética ameríndia da Amazônia que faça uma ponte entre o passado e o presente não deve se restringir ao mundo dos objetos. É também possível identificá-la no domínio da construção da paisagem, isto é na estética espacial dos assentamentos, dos monumentos ou de intervenções humanas no meio ambiente em geral, como sugere Heckenberger (2005:252) que identifica uma “estética cultural” de construtividade e monumentalidade próprias aos povos xinguanos, por exemplo. Contudo, nem sempre os testemunhos arqueológicos desta estética da paisagem foram preservados ou podem ser identificados em seu “projeto

original”, uma vez que a paisagem (sobretudo nos trópicos amazônicos) se transforma inexoravelmente com o tempo, com ou sem a ação humana.

Deste ponto de vista, a cerâmica funerária, assim como a estatuária e a arte rupestre, é um objeto privilegiado para o estudo destes universos estéticos, pois apesar de representar apenas uma pequena parcela dos suportes materiais possíveis das expressões estéticas, ela constitui uma das poucas categorias de objetos que são concebidos e construídos para perdurarem no tempo, talvez para a eternidade, diferentemente dos artefatos mais efêmeros confeccionados para o uso cotidiano, ou em materiais menos duradouros. Contrastam também com a linguagem estética da decoração corporal que tem uma duração mais circunstancial.

De maneira geral, o domínio das atividades cerimoniais, em especial os rituais de passagem, também se sobressai como contexto privilegiado para estes estudos, por ser nas cerimônias que as sociedades indígenas atualizam suas crenças e concepções do mundo, constituindo-se em momentos de alta produção estética. Os rituais funerários, em particular, combinam este potencial analítico da produção estética, com atividades que deixam muitas marcas e testemunhos materiais passíveis de estudo pela arqueologia. Por isso, elegemos as urnas cerâmicas funerárias da Amazônia pré-colonial, como principal objeto de análise, neste trabalho, entre outras categorias de cerâmica cerimonial.

Em suma, este trabalho propõe um esforço metodológico na direção de um diálogo entre a arqueologia e a etnologia das sociedades amazônicas, em um terreno no qual o casamento entre uma perspectiva histórica de longo prazo, inerente à visão arqueológica, e a riqueza e complexidade da etnografia disponível sobre a produção estética e ritual, talvez represente um caminho surpreendentemente revelador no entendimento das mudanças ocorridas nas sociedades indígenas da Amazônia entre o passado e o presente.

C A P Í T U L O I I

RITUAIS FUNERÁRIOS e