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OS MEIOS MÍSTICOS DE REPRODUÇÃO SOCIAL NA AMAZÔNIA

5. Entre o visível e o invisível

Retomando os exemplo do ritual dos apapaatai entre os Waujá, Barcelos Neto observa como as imagens dão existência a coisas que inexistem, ou vivificam, materializam e presentificam seres que já existem mas que só podem ser vistos a partir da sua “decoração”.

Para os Waujá, a imagem vivifica aquilo que se confeccionou ou desenhou, esta é uma das razões pelas quais produzir objetos artísticos nessa sociedade é algo tão sério e perigoso, e está reservado, mas não exclusivamente, a pessoas que mantêm alguma relação privilegiada com o « sobrenatural ».” (Barcelos Neto, 2001:147)

Viveiros de Castro, em um seminário sobre a natureza dos espíritos em cosmologias autóctones das Américas (Viveiros de Castro, 2004) enfoca justamente o caráter virtual e a condição de relativa invisibilidade, transparência e opacidade de seres mitológicos, das almas humanas e de espíritos animais, nas cosmologias amazônicas. Esta condição virtual dos seres míticos, geralmente aparece como definida em tempos pré-cosmologicos, quando as diferenças entre as espécies ainda não apresentavam contornos definidos, o que é fundamental para entendermos não só a reversibilidade desta condição em tempos atuais, explicando o regime de metamorfose dos espíritos e seres, podendo ser materializados assumindo diversas roupagens ou corpos, como também a capacidade de se multiplicarem e se manifestarem em diferentes corpos ou objetos ao mesmo tempo.

Viveiros de Castro parte de uma narrativa de Davi Kopenawa do mito de origem ianomami sobre os espíritos e xamãs, para identificar noções semelhantes de virtualidade de entidades mitológicas em outras cosmologias amazônicas; cita diversos estudos de caso onde transparece a noção de seres

Venezuela ou Barasana do Vaupés, e outros, indicando que o modo de existência e manifestação dos espíritos é um traço pan-amazônico, correspondendo sempre a uma “intensa multiplicidade virtual” (Viveiros de Castro , 2004).

Em muitas sociedades, como os Barasana, o poder terapêutico/ patogênico dos xamãs ou dos feiticeiros, isto é, daqueles que podem prevenir ou causar doenças e morte nos humanos, reside justamente na sua capacidade de guardar esta condição primitiva de transmutação entre as espécies, de metamorfose entre diferentes estados e de trânsito entre diferentes instancias espirituais.

Assim, uma questão importante que se coloca para entendermos os rituais funerários amazônicos, e em particular o sentido da produção das urnas funerárias, é a de como conciliar esta noção de espiritualidade e sobrenatureza, definida enquanto uma intensa instabilidade, reversibilidade e multiplicidade de formas e aparências em suas manifestações, com a intencionalidade expressa nas urnas funerárias de materializar de forma permanente e duradoura imagens de seres estreitamente associados ao mundo mitológico e ancestral das antigas sociedades amazônicas.

Talvez, tendo em vista o pensamento perspectivo ameríndio, seja necessário buscar nas formas de fazer (técnicas e contextos de produção) e no estilo da produção estética visual, a solução para que o invisível e o instável sejam expressos visual e materialmente enquanto tal, questão à qual voltaremos no decorrer das análises estilísticas das urnas. Por ora, seria importante salientar o risco que se incorreria em analisar iconografias ameríndias enquanto meras representações ou ilustrações de um conhecimento denotativo sobre o mundo, ao se ignorar que este conhecimento está mais na maneira escolhida de representar e ilustrar, e menos nos elementos representados e ilustrados em si. Além disso, esta instabilidade transformacional do perspectivismo ameríndio dá margem a argumentos como o de Sztutman (2005) que, retomando Viveiros de Castro, a correlaciona com empecilhos a formas de organização social e política mais estáveis e, portanto, mais complexas. Mais precisamente, Sztutman reconhece no trânsito cósmico próprio à cosmovisão

perspectivista um impedimento à fixação do poder político em uma só pessoa, como o chefe ou o xamã, pois só poderia constituir-se sobre uma unidade identitária estável. Na Amazônia, a função xamânica seria oposta à do chefe- sacerdote (como nas das sociedades andinas e mesomaericanas), cuja função representativa implica na existência de um grupo humano não ameaçado por mudanças de perspectiva advindas da incorporação de subjetividades diversas (Sztutman, 2005:79).

Esta oposição entre xamãs e chefes sacerdotes, é retomada por Viveiros de Castro, a partir dos conceitos propostos por Stephen Hugh-Jones de xamãs horizontais e verticais. No xamanismo horizontal, os “xamãs são especialistas com poderes que derivam da inspiração e do carisma, e cuja atuação é voltada para o exterior” através da guerra. Seus principais interlocutores são os animais predadores, que causam a morte e a doença. No xamanismo vertical, tem-se “os mestres cerimoniais, guardiães pacíficos de um conhecimento esotérico e precioso, especialistas na condução a bom termo dos processos de reprodução das relações internas ao grupo (iniciação, nominação, funerais)”. Estes estão mais próximos dos chefes-sacerdotes.

A tese de Viveiros de Castro é que, na Amazônia indígena, o xamanismo horizontal é a forma mais antiga de xamanismo, permanecendo operativa até hoje,

... “ao modo de um resíduo que bloqueia a constituição de chefaturas ou

Estados dotados de uma interioridade metafísica acabada. ... Todo morto continua um pouco bicho; todo bicho continua um pouco gente. A humanidade permanece imanente, reabsorvendo uma boa maioria dos focos de transcendência que emergem incessantemente por toda parte do vasto tecido do socius amazônico. O xamã horizontal amazônico marca, em sua onipresença na região, a impossibilidade de coincidência perfeita entre poder político e potência cósmica, dificultando assim a elaboração de um sistema sacrificial de tipo clássico. A instituição do sacrifício assinala a captura do xamanismo pelo Estado. O fim da bricolagem cosmológica do xamã, o começo da engenharia teológica do sacerdote. (Viveiros de Castro, 2008:.22)

O “turning point” que teria transformado o xamanismo horizontal de sociedades mais igualitárias, em um xamanismo sacerdotal de sociedades mais hierárquicas, teria sido o surgimento de valores como a ancestralidade, os quais enfatizam a continuidade diacrônica entre vivos e mortos. Neste outro modo, os

humanos, após a morte, continuariam assumindo formas humanas, ou mesmo, sobre-humanas.

Em suma, a predação e o perspectivismo, dado o “perigo” da perda de identidade (cosmológica e social) que engendram, seriam um impedimento para a constituição de unidades políticas estáveis, ao passo que uma cosmopolítica na qual a pessoa ou grupo são constituídos por transmissão de potência em linhagens ancestrais, permitiria a estabilização de unidades identitárias, como argumenta Heckenberger para o caso das sociedades xinguanas no passado.

Especificamente no que diz respeito ao papel das artes visuais no universo transformativo do mundo ameríndio em geral, a questão que se coloca, em princípio, é se ela vem realimentar a instabilidade, ou se ao contrário, ela surge no sentido de possibilitar uma maior unidade e estabilidade política.

Neste sentido, seria a arte produzida em momentos de reatualização de cosmologias, como são os rituais funerários, uma forma de compensar a instabilidade do universo cosmológico ameríndio, trazendo visibilidade ao invisível, durabilidade ao efêmero, unidade à multiplicidade de formas ou corpos em que os seres se manifestam?

Em um mundo em que os sujeitos nem sempre são perceptíveis, ou são visualmente instáveis, podendo mudar diante de nossa visão, se replicar em diferentes mundos, e adquirir roupagens distintas, seria o papel da arte o de comunicar uma percepção sintética dessa simultaneidade, como propõe Els Lagrou ao analisar o estilo de pensamento perspectivo na arte dos Kaxinawá? (Lagrou, 2002:44)

A idéia de síntese do pensamento transformacional amazônico parece se aplicar de forma bastante coerente a alguns objetos arqueológicos amazônicos, cuja função ainda é pouco conhecida, mas cujos atributos físicos parecem indicar usos rituais. Tanto objetos líticos, que representam figuras híbridas, meio animal, meio humanas, ou figuras humanas sendo dominadas por animais, como as estatuetas estilo “alter-ego” da área do Tapajós-Trombetas (Aires da Fonseca, 2008), ou ainda a cerâmica com figuras duais da cerâmica Santarém, que representam humanos ou pássaros, dependendo do ângulo em que são

observadas (Gomes, 2001), parecem ilustrar de forma visual e material a noção de corpo como lugar para constantes transformações.

Figura 2.1

Estatueta lítica da região dos rios Tapajós-Trombetas, coleta de Curt Nimuendaju, Acervo do Museu Etnográfico de Goteborg, Suécia (altura: 17,8 cm)

Já no mundo da cultura material documentada etnograficamente nos rituais, esta natureza transformacional dos objetos não é tão evidente. Talvez isso se deva ao fato de que, apesar de vários autores americanistas já terem ressaltado a importância que tomam os sentidos e as propriedades sensíveis dos seres e dos objetos no seio de teorias socio-cosmológicas ameríndias (notadamente Levi-Strauss 1964, 1967; Lagrou 2007; Seeger 1981; Viveiros de Castro), poucos são os autores que se debruçaram sobre os objetos rituais tentando correlacionar seus atributos físicos, ou sua “corporalidade”, a seus poderes mágicos, como o faz Barcelos Neto (2008).

Em resumo, Barcelos Neto propõe uma divisão fundamental no sistema de objetos rituais amazônicos, partindo da observação de que algumas das propriedades sensíveis dos objetos – tal qual brilho, dureza, cor, cheiro ou emissão de sons, assim como a forma - determinam a agência que lhes é imputada e suas capacidades de transformação. De acordo com suas

objetos antropomorfos (ainda que não representem apenas o que é humano), como os objetos duráveis, parecem ter uma maior capacidade de “retenção” do estatuto de pessoa através do exercício de suas capacidades e agência (sejam elas de cura, de adivinhação, de propiciação ou de encantamento). Objetos cujo ciclo de vida ultrapassa a vida de um ser humano ou de uma geração, se revestem de uma importância mágica extrema. Barcelos Neto, cita, em particular, os objetos duros, como os em pedra, osso ou madeira, que podem emitir sons e assumir formas equivalentes a partes do corpo humano (as flautas em osso Tukano ou em madeira dura dos Waujá).

“Insistons sur l’hypothese selon laquelle ce rôle de premier plan est lié à la capacité de ces objets de faire des choses dont les humains ne sont pas capables. Ajoutons `a cela le fait qu’ils vivent plus longtemps que les humains, c’est à dire que les objets impérissables créent une continuité sur le long terme entre les dimensions du temps, de l’espace et des persones, c’est pourquoi ils seraient miraculeux, divinatoires et capables de produire d’autres personnes. »

(Barcelos Neto, 2008:127).

As implicações desta hipótese de Barcelos Neto para a arqueologia de objetos rituais são bastante instigadoras, na medida em que características físicas, tais quais durabilidade, dureza e forma, são observáveis nos registros arqueológicos que lidam, na Amazônia, justamente apenas com aqueles objetos mais duráveis. Em especial para o estudo das urnas funerárias cerâmicas, estes atributos tornariam estes objetos não apenas vetores de mediação (entre vivos e mortos), mas assumiriam também capacidades de transformação de pessoas.

Apresentamos a seguir uma breve uma releitura de dois ciclos funerários bastante bem estudados na literatura etnográfica das terras baixas, atendo-nos às diferentes dimensões rituais e intencionalidades das ações que resultam em expressões visuais e materiais. O primeiro, o ritual funerário Bororo, é um ritual mais voltado para a reafirmação de identidades e restabelecimento do equilíbrio cosmológico interno, restrito à comunidade da aldeia, enquanto que o Kuarup, é um ritual inter-aldeias, voltado para a reafirmação de hierarquias sociais e representação identitária perante a uma comunidade multi-étnica.