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A análise estilística da cerâmica marajoara da coleção ICBS-MAE Os objetivos da análise

O ESTILO DA CERÂMICA CERIMONIAL MARAJOARA

1. A análise estilística da cerâmica marajoara da coleção ICBS-MAE Os objetivos da análise

Nos capítulos anteriores foram levantados alguns aspectos estruturais e contextuais dos rituais funerários e da cerâmica mortuária determinantes para delimitarmos os objetivos da análise estilística da cerâmica marajoara e suas urnas.

Primeiramente, está o fato de que a arte, tanto quanto os mitos, sintetiza conceitos e conhecimento, mas, mais especificamente, pode materializá-los, fixar referências plásticas e visuais, e assim conferir estabilidade e tradição a formas de sociabilidade reconhecidamente típicas de um universo relacional. E dado que nestas sociedades, rituais funerários são a esfera por excelência de reprodução destas formas de sociabilidade, supõe-se que os princípios

estilísticos que regem a cerâmica funerária marajoara, devem de alguma forma, refletir os princípios organizadores da sociedade.

Dada a possibilidade de objetos funerários operarem como demarcadores de territórios sagrados e como emblemas de hierarquias ancestrais, é particularmente importante explorar a agência das urnas funerárias enquanto objetos mediadores entre os vivos e o mundo ancestral, e enquanto legitimadores de poder e status herdados.

Dadas a distribuição e a variabilidade estilística observadas ao longo de uma extensa tradição de enterramentos secundários em urnas, e a possibilidade destas estarem relacionadas a diferentes formas de interação e intensidade de fluxos regionais, é preciso, estar atento a dinâmicas particulares de aquisição, apropriação e combinação de elementos estilísticos, e no caso de Marajó, ainda mais, vista a sua posição geográfica privilegiada para contatos externos.

Também visto que muitos aspectos da cerâmica marajoara tendem a destacá-la do restante das cerâmicas da tradição Policroma (é a mais antiga, a mais complexa, associada a aterros artificiais, etc...), é importante definir as bases de um estilo marajoara em termos não só dos atributos tecno-tipológioos, mas em termos de sua função ritual e das tecnologias de encantamento nela reconhecíveis.

Os objetivos da análise estilística portanto podem ser resumidos em: - identificar os princípios de construção das urnas dentro de uma qualificação mais específica da complexidade da cerâmica marajoara em termos estilísticos;

- isolar recorrências que definam o estilo marajoara, e em especial das urnas, em termos dos efeitos sensoriais e estéticos que ela proporciona (aquilo que Roe chama de “affect” em sua definição de estilo), e outros elementos mnemônicos, ou marcas referenciais, tais quais padrões gráficos, emblemas, personagens, etc...), essenciais a reconhecibilidade do estilo;

- identificar possíveis sobreposições entre os significados simbólicos dos objetos cerâmicos sua função ritual.

O universo de análise

A cerâmica marajoara e, em particular as urnas funerárias, são conhecidas em muitas coleções, de museus e particulares. Estes objetos foram coletados em diferentes circunstâncias, desde o século XIX, quer em escavações sistemáticas, quer pelos moradores e fazendeiros da ilha. Assim, um número bastante alto de urnas inteiras ou semi- inteiras está registrado em museus através do mundo:

No Brasil:

. Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém . Museu do Estado do Pará, Belém . Museu do Marajó, Pará

. Museu Nacional da UFRJ, Rio de Janeiro . Museu do Estado do Pernambuco, Recife

. Museu U. P. O. R. C. da UFSC, Florianópolis (coleção Tom Wildi) . Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, São Paulo

Nos E.U.A.

. University of Michigan Museum, Ann Arbor (Coleção J.B. Steere, 1871) . Peabody Museum of American Archaeology and Ethnography, Harvard University, Cambridge , (Coleção O. A. Derby, 1876);

. University Museum, University of, Pennsylvania, Philadelphia (Coleção W. Farabee, 1914-1915)

. The Brooklyn Museum ( Coleção D. Holdridge, 1931-1932)

. American Museum of Natural History, Nova Iorque (Coleções C. Hartt, 1879; A. Lange, 1913; A. Roosevelt, 1980’s)

. Museum of American Indian, Heyes Foundation, Nova Iorque

. Museum of American Indian, Smithsonian, Washington (Coleções Meggers and Evans)

. Field Museum of Natural History, Chicago (Coleções Farabee e Anna Roosevelt)

Na Europa:

. Etnografiska Museet, Gotemburgo, (Coleção Nimuendaju, 1920) . Volkerkunde Museum, Berlin , (Coleção Antonio Mordini, 1926-1927)

. Museo Nationale de Antropologia e Etnologia, Florença (Coleção Antonio Mordini, 1926-1927)

. Statens Etnografiska Museet, Estocolmo (Coleção Antonio Mordini, 1926- 1927)

. Museum fur Volkerkunde, Vienna, (permuta com Museu Nacional, 1950) . Musée et Institut d’Ethnographie, Geneva

. Museo Ethnográfico Luigi Pigorini, Roma

. Museu Nacional de Etnologia, Lisboa , (Coleção F. Bandeira, 1960’s) . Museu Barbier-Mueller de Arte Pré-Colombiana, Barcelona

. Cambridge University Museum of Archaeology and Ethnology

Imagens e estudos sobre urnas funerárias marajoara foram publicadas principalmente por Palmatary (1950), que fez um apanhado sistemático de todas as coleções brasileiras e norte-americanas, Meggers e Evans (1957) que publicou materiais escavados em suas pesquisas e anteriores, Magalis (1975) que realizou a seriação de uma amostra de 100 urnas de coleções brasileiras, norte-americanas e européias (mas, infelizmente sem ilustrações das urnas), e as pesquisas mais recentes de Roosevelt e Schaan, que publicaram apenas alguns exemplares de urnas, não chegando a publicar catálogos com todas as peças encontradas.

Em nossas análises, utilizaremos principalmente as urnas provenientes da coleção reunida pelo Instituto Cultural Banco Santos (ICBS) entre 2002 e 2004, hoje sob a guarda do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, nunca antes estudadas, e cujo inventário apresentamos em anexo. Ao longo das discussões, acrescentamos observações sobre peças provenientes de outras coleções por nós conhecidas, notadamente as brasileiras e as européias, dentre as que mencionamos acima.

A coleção do ICBS é uma coleção de peças arqueológicas da Amazônia constituída através da incorporação de diversas coleções menores e peças avulsas de colecionadores particulares. Na maior parte, são peças que foram reunidas por fazendeiros da ilha de Marajó, e que foram sendo encontradas e armazenadas nas fazendas, mas que não foram coletadas em escavações

sistemáticas. Portanto, são peças descontextualizadas quanto a sua proveniência e estruturas arqueológicas.

Na tentativa de recuperarmos o máximo possível de informações sobre a proveniência das peças, realizamos um trabalho de localização das fazendas onde estas peças foram encontradas, a partir dos nomes dos colecionadores antigos que constavam nos registros de proveniência do Instituto Cultural Banco Santos, e com isso pudemos associar algumas coleções a sítios, ou conjuntos de sítios conhecidos na ilha. Pudemos assim verificar que a maior parte da cerâmica marajoara é proveniente das coleções das famílias Dacier (Coleção Graciete), Teixeira (Coleção Gisela e Silvia Teixeira) e do fazendeiro Luis Otávio, talvez o maior colecionador da ilha, o qual, por muitos anos, praticou escavações amadoras, tendo falecido em 2003. (O catálogo das urnas estudadas em anexo indica, sempre que possível, a coleção de origem). Pudemos verificar que estes colecionadores são todos moradores da região do alto rio Anajás, e mais especificamente dos conjuntos de tesos conhecidos como Monte Carmelo e os Camutins, uma área já bastante estudada arqueologicamente. De maneira geral estes são sítios estão já bastante erodidos e vêm sofrendo destruição por intempérie e pilhagens há mais de um século.

Três tesos em Monte Carmelo foram registrados e escavados por Meggers e Evans em 1949, tendo já sido visitados anteriormente por Steere em 1879, e por Holdridge em 1931. (Meggers e Evans, 1957). Posteriormente, um dos três tesos, o sítio de Guajará foi também escavado por Roosevelt onde foram obtidas três datações, entre 615 d. C., 890 d. C. e 1275 d. C., interpretadas como pertencentes a duas sub-fases: Camutins (Ca. 400-700 d.C.) e Guajará (700-1100 d.C.). (Roosevelt ,1991:187 e 314, tabela 5.1).

Os tesos Os Camutins, são certamente os maiores e mais conhecidos de Marajó, constituindo um conjunto de cerca de 40 aterros em uma área de aproximadamente 10 km2 ao longo do igarapé Os Camutins, afluente do rio Anajás. Estes sítios foram registrados desde 1867 por von Martius e foram visitados e ou escavados por Ferreira Penna (Hartt, 1885), Orville Derby (1879), W.C. Farabee (1921) que escavou o aterro então chamado de Magno (hoje dito

Belém), Sandoval Lage (1944) e Hilbert (1952) que descreveu peças provenientes de 17 tesos.

Meggers e Evans registraram 20 sítios e escavaram o topo do maior deles, Camutins (ou M1) descrevendo duas estruturas funerárias. Estes sítios foram retomados pelas pesquisas de Schaan, que escavou dois tesos (Camutins e Belém, ou M1 e M17 respectivamente) e cujos resultados estão em sua tese de PhD (Schaan, 2004). As datas obtidas situam-se entre 660 e 995 d.C. para Camutins e entre 680 e 1030 d. C. para Belém. Neste último, uma estrutura funerária contendo 24 urnas foi comparada às estruturas funerárias encontradas por Meggers e Evans em Camutins, e é com base nestes dados que Schaan propôs suas hipóteses sobre os significados dos enterramentos em urnas da fase marajoara.

Grande parte das urnas aqui analisadas faz parte deste contexto arqueológico. Certamente correspondem ao período chamado de “clássico” da fase marajoara, entre 700 e 1100 d. C., caracterizado por Schaan como um período de prosperidade, multiplicação de cacicados e expansão de uma ideologia religiosa por toda a ilha. (Schaan, 2004:264).

Infelizmente não pudemos incorporar em nossas análises outras inferências cronológicas sobre a variabilidade do material proveniente destes sítios, uma vez que as seriações propostas por Meggers e Evans (1957) e Magalis (1975) são discordantes, e embasadas em atributos distintos. Enquanto Meggers e Evans trabalham com atributos relativos às técnicas e formas, Magalis privilegia os elementos estilísticos. Além disso, Schaan refuta ambas as seriações, colocando a hipótese de que a variabilidade dos tipos cerâmicos encontrada nestes sítios refletem menos diferenças temporais, e mais diferentes graus de fluxo de ceramistas (ou mulheres) enquanto portadoras de estilos distintos (Schaan, 2004).

A isto acrescentamos outro fator que dificultaria o reconhecimento de variações estilísticas na cerâmica funerária ao longo do tempo: o fato de que se está lidando com um sistema de combinação de técnicas, formas plásticas e grafismos que são em si associados a valores de ancestralidade e que,

recuperados, replicados ou transformados intencionalmente. Assim, tais atributos não constituiriam bons “guias” cronológicos, a menos que se reconheça a gramática destes processos de emulação estilística.

Comparativamente às coleções arqueológicas disponíveis para o estudo de urnas funerárias amazônicas, a coleção analisada reúne um número excepcionalmente alto de recipientes inteiros, ou quase inteiros e, além disso, apresenta um alto índice de objetos com superfícies decoradas, em especial as grandes urnas, com a pintura policrômica também particularmente bem conservada. Este conjunto excepcional de objetos inteiros e com a totalidade dos motivos decorativos presentes, nos permitiu estender a análise estilística de elementos iconográficos para além da simples identificação e tipologia de determinados elementos isolados, o que é comumente feito a partir de fragmentos ou de peças fragmentadas, e abordar o projeto de composição da cada peça na sua integridade, aprofundando a análise das diferentes partes em relação ao todo, ou dos diferentes campos em cada urna, privilegiando o projeto da urna na sua individualidade.

Além disso, como foi possível recuperar muitos dos projetos “originais” de urnas funerárias na sua integridade e, portanto, perceber, a partir da contraposição dos elementos constantes aos que variam, as características gerais que estão na essência da composição desta categoria de objeto na fase marajoara e que acreditamos teve um papel importante nos rituais funerários locais.

2. A cerâmica cerimonial marajoara