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ARTE, ARQUEOLOGIA E TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS NA AMAZÔNIA PRÉ-COLONIAL

3. De Lévi-Strauss a Alfred Gell:

a antropologia da arte a favor da arqueologia

Esta tese propõe pensar como a arte, em objetos funerários na Amazônia pré-colonial, gera “coeficientes” de reprodução sócio-política e vice-versa, mostrando a complexidade das relações sociais. Inspira-se assim em dois corpos teóricos que definem arte e estilo e correlacionam estes conceitos com formas de organização social.

Um que gira em torno das reflexões de Lévi-Strauss sobre a arte dos povos de tradição oral (sem escrita), entre os quais as expressões estéticas são um meio importante de significar, comunicar e sintetizar o conhecimento. Em Lévi-Strauss a arte é uma manifestação privilegiada para entendermos como

estes povos se apropriam da natureza como fonte de conhecimento e inspiração (Hénaff, 1991; Vidal, 1999; Passeti, 2008).

Na obra de Lévi-Strauss, identificamos três conceitos para descrever esta relação entre arte e sociedade cujas implicações para a análise arqueológica das cerâmicas amazônicas nos pareceram relevantes para definir a abordagem metodológica aqui utilizada. O primeiro diz respeito à idéia de estilo, que pode ser definido nesta perspectiva como expressões concretas de princípios fundamentais construídos e construtores de processos específicos de pensamento e sociabilidade. Para identificar estes princípios fundamentais, Lévi- Strauss sugere que se use o método indutivo, que consiste em recolher com muita paciência os dados etnográficos e, a partir das recorrências observadas, colocar em evidência as estruturas a partir de detalhes muito precisos. (Esta definição de estilo aparece na obra de Lévi-Strauss desde a Antropologia Estrutural, mas também fica evidente em vários dos seus estudos de caso, como no capítulo intitulado “Uma sociedade indígena e seu estilo” em Tristes

Trópicos (1967 [1955]) assim como na Via das Máscaras (1979).

O segundo conceito sobre arte que surge na obra de Lévi-Strauss é o de sistema de comunicação, o que lhe confere certa estabilidade e tradição. Contudo, diferentemente da linguagem, a arte é um sistema baseado na relação material entre significante e significado, pois “há uma mimese do objeto nas formas que o representam” e é isso que confere inteligibilidade à arte. Ou seja, é através da experiência sensorial que a arte é apreendida. A partir deste sistema de comunicação sensorial, pode-se pensar no fluxo de idéias ou mensagens que ele produz em termos de seus diferentes componentes: o referente, o contexto, o código, a mensagem e o destinatário (Lévi-Strauss, 1990, 1997). Na antropologia da arte e na arqueologia, muitas outras abordagens operacionais e terminologias têm surgido para a análise de expressões estéticas (Morphy,1994; Gosden, 2001), como, por exemplo, a que propôs Alfred Gell em “Art and Agency” (nos termos de artista, protótipo, índice e receptor), mas o importante aqui é retermos a idéia de que a arte pode analisada enquanto um sistema de significados (Morphy, 1996), idéia esta fortemente retomada pela antropologia

Em terceiro lugar, está a idéia de que a arte tem uma função social e de que é possível correlacionar formas recorrentes de representação visual a tipos de estrutura social, sem necessariamente lançar mão de argumentos históricos ou difusionistas. Esta idéia de Lévi-Strauss, primeiramente apresentada na sua Antropologia Estrutural é retomada e, de certa forma modificada, ao longo de sua obra, reconhecendo que a maneira específica como um tipo de sociedade se diz através de formas plásticas determinadas, ainda que de forma invertida ou idealizada, está diretamente ligada aos mitos, ritos, e relações de poder. Isso se deve ao fato de que estas formas plásticas são passíveis de transformações homólogas às verificadas nas relações de transformação da mensagem, como nas funções sociais ou religiosas que exercem. (Passeti, 2008: 233).

É a partir desta idéia de que os objetos artísticos podem ser analisados enquanto veículos de negociação e poder, que a teoria de agência, em sua versão artística, foi desenvolvida por Alfred Gell. A pergunta predominante presente na obra de Gell é a de como e o quê a arte é capaz de mobilizar em termos sociais.

A base epistêmica da teoria de Gell é inspirada no deconstrucionismo melanésio de Strathern (1988) e na economia do dom formulada por Mauss (1923), na qual os artefatos são partes destacadas das pessoas nos processos de transação. Inspira-se também na idéia de pessoa distribuída (the fractal

person) tal qual proposta por Roy Wagner (1991) também para a Melanésia. Porém, Gell leva esta formulação mais adiante considerando os objetos de arte como pessoas (índices), independentemente se eles estão situados em processos de troca ou transação.

Barcelos Neto, transpondo a teoria de Gell para a Amazônia, lançou a hipótese de que, se na Melanésia a idéia de distribuição da pessoa ocorre por meio da troca de artefatos (como, por exemplo no Kula), na Amazônia ela se dá através de rituais, os quais, entre outras coisas, mobilizam seres (corpos, pessoas e espíritos) através da produção e uso de determinados artefatos.

Ao estudar a fabricação e a pintura de máscaras entre os Waujá, Barcelos Neto identifica uma certa compulsão decorativa na fabricação de

mitos. A compulsão de fabricação de objetos é em si a tentativa de recompor determinadas figuras míticas “síntese”.

A função de síntese do conhecimento é também observada por Els Lagrou em seus estudos sobre a arte Kaxinawá, igualmente dotada de uma “compulsão decorativa”. Aludindo à noção de estilo de Peter Roe (conforme apresentamos abaixo), Lagrou sublinha a correspondência entre estilo artístico e estilo de pensamento, pois, uma vez que para os ameríndios o universo é transformativo, isso implicaria que a visão pode, repentinamente, mudar diante de nossos olhos. O mundo é composto de muitos mundos, e estes diversos mundos são pensados enquanto simultâneos e em contato, embora nem sempre perceptíveis. O papel da arte seria, portanto, o de comunicar uma percepção sintética dessa simultaneidade das diferentes realidades (Lagrou, 2007:149).

A cerâmica marajoara parece ter um estilo igualmente “compulsivo” ao recobrir cada centímetro das superfícies dos objetos cerâmicos com grafismos extremamente elaborados. É sobre a qualidade de agente, não somente dos grafismos, mas dos próprios artefatos, que nos concentramos aqui, como objetos repositórios de intenção e ação, como pessoa ou ser replicado, ou “distribuído” (na terminologia de Gell), como personagens integrantes do ritual que têm o poder de reatualizar mitos, crenças, e valores ideológicos, e não apenas como símbolos ou objetos que representam pessoas ou seres sobrenaturais. Nos interessa assim a “magia” do objeto, seu poder de fazer o ritual acontecer e de lhe conferir maior intensidade.

Para tal, utilizaremos na análise dos objetos algumas características do que Gell denominou “tecnologias de encantamento”, isto é um sistema tecnológico para expressões artísticas que exercem fascínio, encantamento e, portanto, poder, justamente pela dificuldade de se explicar como determinados objetos foram criados. Trata-se, portanto, de entender como um sistema de conhecimento de técnicas de produção eficazes age dentro de uma complexa rede social de intenções e necessidades coletivas, tornando a arte essencial à reprodução e à transformação de valores sociais (Gell, 1992:43).

Com isto, Gell propõe uma ruptura com as preocupações meramente estéticas da antropologia da arte, mas também foge do que ele chama do “sociologismo” de Bourdieu, no qual, de acordo com Gell, nunca se olha o objeto de arte em si, como um produto da criatividade humana, mas apenas seu poder de demarcar distinções sociais. Também foge da abordagem iconográfica, mais estruturalista, que trata a arte como uma espécie de escrita, a qual em vez de considerar o objeto apresentado, privilegia a análise dos símbolos nele representados.

Gell acredita que é possível estudar e entender as “tecnologias de encantamento” das diferentes sociedades através de uma análise integrada dos contextos sociais do objeto em questão e de seus atributos estilísticos formais. Algumas das análises que apresenta em Art and Agency privilegiam a relação entre vários tipos de objetos, como os diferentes componentes de um sistema particular de técnicas de encantamento.

A abordagem de Gell começa a ser aplicada na análise de materiais arqueológicos pré-colombianos, como o fizeram Saunders (2003) e Quilter (2007), com resultados bastante frutíferos, sobretudo para materiais de contextos arqueológicos já bem estudados.

De certa forma, as análises de Gell se aproximam muito das abordagens arqueológicas sistêmicas de interpretação de artefatos tais quais inicialmente propostas por Walter Taylor no seu “conjunctive approach” (Taylor 1983) e mais tarde retomada pela arqueologia processual. Contudo, se na arqueologia a relação entre os diferentes objetos de uma mesma cultura é bastante enfatizada, falta ao arqueólogo, a observação direta dos contextos sociais em que eles são concebidos, produzidos, utilizados, negociados, venerados e etc...

Por isso, uma decorrência metodológica desta abordagem teórica, é a proposta desta tese em analisar categorias de objetos (e suas relações com outras categorias de objetos) à luz de determinados conhecimentos etnográficos, especificamente referentes às esferas rituais funerárias entre sociedades indígenas amazônicas.

Por mais que reconheçamos as diferenças cosmológicas entre sociedades indígenas da Amazônia, do passado e do presente, o estudo de temas tais quais os sistemas ontológicos, o xamanismo e suas formas rituais e a mitologia indígena amazônica, permitem hoje teorias mais generalizantes como as propostas por Eduardo Viveiros de Castro (2001) sobre o perspectivismo ameríndio na Amazônia, ou por Carlos Fausto (2007) sobre a antropologia funerária dos sistemas animísticos amazônicos (Arhem, 2002); sobre a dualidade da arte ameríndia amazônica proposta por Elsje Lagrou (2002) e outras as quais nos referimos no capítulo seguinte. Estas teorias podem nos servir como um pano de fundo supostamente comum a todas as sociedades amazônicas, ou uma medida para explicar a variabilidade descrita para as diferentes sociedades estudadas pelos etnólogos, e contra a qual projetamos a análise de determinadas categorias de objetos arqueológicos. Não se trata, portanto, de fazer uso de analogias etnográficas, para analisar contextos arqueológicos, mas de utilizarmos um corpo de teorias e generalizações geradas com base na observação etnográfica de sociedades indígenas amazônicas e seu potencial explicativo, o que chamamos acima de lições da etnologia ameríndia, para organizarmos a análise de um conjunto de objetos arqueológicos.