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OS MEIOS MÍSTICOS DE REPRODUÇÃO SOCIAL NA AMAZÔNIA

4. Bases para uma teoria sobre a morte e o sobrenatural

Ainda que muitos debates tenham se estabelecido entre etnólogos de grupos Tupi sobre suas ontologias e filosofias de alteridade, ao estudar as práticas funerárias e os significados dos rituais antropofágicos e canibalísticos típicos destas sociedades, parece haver uma certa concordância que tais rituais são uma forma de re-socializar os mortos, criando outros laços de parentesco e afinidade. Na verdade, muito do que tem sido escrito sobre o perspectivismo ameríndio tem se embasado na etnologia destes povos.

Pode-se dizer que foi com o livro de Eduardo Viveiros de Castro,

Araweté, de 1986, que uma nova fase se iniciou nos estudos sobre a morte nas culturas das terras baixas da América do Sul. Esse livro foi a primeira grande análise comparativa sobre o complexo conceitual do exocanibalismo dos grupos Tupi, contextualizado pela elaborada etnografia de uma de suas versões contemporâneas, a dos Araweté. O livro influenciou e inspirou etnólogos das terras baixas não só na realização de estudos sobre a morte, como também sobre outras categorias de análise (pessoa, gênero, organização social, guerra e cosmologia). Especificamente em um seminário sobre a concepção da morte

foram então desenvolvidas idéias centrais de Viveiros de Castro, tais como a de que a morte é principalmente um assunto de predação, e acompanhando a lógica indígena, Viveiros de Castro fez do ato de comer — mais precisamente dos atos de caçar, matar, cozinhar e comer — o fato central da análise sociológica. Posteriormente, esse quadro analítico veio a ser conhecido como “a economia simbólica da predação”. (Viveiros de Castro, 1992b; 1993; Rivière 1993).

As recentes teorias geradas desde então sobre ontologias ameríndias tem revelado uma nova maneira de olhar para a relação entre humanos e não humanos Descola (1986, 2005) e Viveiros de Castro (2002, 2005a) dentro da já cunhada linha de estudos realizados por alunos e colegas de Viveiros de Castro, aprofundando, de modo crítico, os muitos argumentos formulados por este autor, à luz de etnografias densas e originais (por exemplo, Vilaça ,1992, 1993 e Gonçalves, 1993).

A principal premissa é que na ontologia ameríndia a intencionalidade e a consciência reflexiva não são atributos exclusivos do ser humano, mas estão potencialmente presentes em todos os seres do cosmos. Em outras palavras, animais, plantas, deuses e espíritos são pessoas em potencial e podem ocupar uma posição de sujeito em suas relações com os humanos. Esta indistinção ontológica gera uma série de problemas etnográficos e teóricos, incluindo o que nos concerne aqui, a relação entre os humanos e os animais na morte e no pós morte, e a própria concepção de pessoa e a construção de sua identidade para o mundo pós morte. Estas teorias focam no corpo como o principal lugar da identidade.

Segundo Viveiros de Castro, tipicamente, os humanos, em condições normais vêem os humanos como humanos e os animais como animais; mas os animais e outras subjetividades que povoam o universo – deuses, espíritos, mortos, habitantes de outros níveis cósmicos, plantas, objetos e artefatos – nos vêem como não-humanos e a si como humanos.

“Em suma os animais são gente, ou se vêem como pessoas. Tal concepção está quase sempre associada à idéia de que a forma manifesta de cada espécie é um envoltório (uma “roupa”) a esconder uma forma interna humana, normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie ou de certos

seres trans-específicos, como os xamãs....Teríamos então à primeira vista, uma distinção entre uma essência antropomorfa de tipo espiritual, comum aos seres animados, e uma aparência corporal variável, característica de cada espécie, mas que não seria um atributo fixo, e sim uma roupa trocável e descartável. A noção de ‘roupa’ é, com efeito, uma das expressões privilegiadas da metamorfose – espíritos, mortos e xamãs que assumem formas animais, bichos que viram outros bichos, humanos que são inadvertidamente mudados em animais -, processo onipresente no “mundo altamente transformacional” (Riviere 1994) proposto para as culturas amazônicas”. (Viveiros de Castro, 2002:351)

Esta natureza transformacional dos seres, expressa na instável materialização e visualização da roupagem ou do corpo tem evidentes implicações para as transformações do indivíduo na doença e na morte.

Na verdade, a morte também é um momento transformacional em si, e na ordem da ontogênese ameríndia, os espectros dos mortos, não são mais humanos, assim como os animais, que também foram humanos em tempos prístinos, deixaram de sê-lo. Por isso,

“não é de surpreender que, enquanto imagens definidas por sua disjunção relativamente a um corpo humano, os mortos sejam atraídos pelos corpos animais; é por isso que, na Amazônia, morrer é transformar-se em um animal: se as almas dos animais são concebidas como tendo uma forma corporal humana prístina, é lógico que as almas dos humanos sejam concebidas como tendo um corpo animal póstumo, ou como entrando em um corpo animal que será eventualmente morto e comido pelos viventes. “ (Viveiros de Castro, 2008:21).

Em um artigo de Carlos Fausto com implicações bastante generalizantes, embasado em dados sobre 53 grupos ameríndios das terras baixas, ele identifica a predação como uma característica específica da ontologia Amazônica dentro do contexto mais amplo que ele denomina de tradição Sibero- ameríndia, Enquanto na América do Norte e na Sibéria a relação entre os humanos e animais seria resolvida por uma série de negociações entre o predador e a presa, na Amazônia, a predação seria um vetor trans-específico de sociabilidade, isto é, humanos e animais estão imersos em um sistema socio- cosmológico no qual a direção da predação e a produção do parentesco estão em constante disputa. Segundo Fausto, tanto a predação, como a comensalidade são formas de se produzir pessoas e sociabilidade na Amazônia

ameríndia. Assim, a doença e a morte de um ser humano, aos olhos de seus parentes, quase sempre equivalem à sua captura por algum animal predador. As transformações do corpo doente são decorrências da captura de sua alma pelo predador. Do ponto de vista do agressor não humano, no entanto, a doença e a morte correspondem à transformação de uma outra pessoa em parente (Fausto, 2007:498).

Muitos são os exemplos de rituais voltados para se restabelecer o equilíbrio original do cosmos, diante de situações de crises causadas por motivos variados, inclusive doenças e mortes, em que os membros ancestrais e entidades do mundo dos mortos em geral são evocados e chamados para reafirmar ou restabelecer as estruturas sociais originais.

Barcelos Neto descreve como o ritual Apapaatai entre os Waujá, onde estes seres monstruosos são alimentados pelos donos do ritual, aqueles ameaçados por doenças, restabelecem assim a sua forma humana. Demonstra como a reprodução política da ordem social via tais rituais, em que uma relação de "predação" (rapto da alma, doença) é transformada em uma relação de "produção" (sociopolítica). A descontinuidade ontológica entre humanos e não- humanos, ao ser suspensa por meio dos adoecimentos graves e rituais xamânicos, oferece uma economia simbólica do poder, que constitui o eixo central na socialidade Waujá. (Barcelos Neto, 2001b).

Mas chamam a atenção alguns rituais funerários particularmente complexos, os quais constituem ao mesmo tempo momentos de enorme força de expressão estética, seja por meio dos cantos, danças, ornamentos usados e objetos fabricados para estas ocasiões, e momentos nos quais os mortos são evocados para restabelecerem o sentido e a ordem da comunidade.

Do ponto de vista da arqueologia, interessa, é claro, olhar a produção material desta estética, entender as motivações e as maneiras com que os objetos são produzidos, seus atributos rituais, isto é as magias e encantamentos que eles exercem e, sobretudo, a relação entre seus atributos visuais e rituais.

Porém, em se tratando de sociedades ameríndias, um problema maior se coloca, e que também é próprio da arqueologia, que é o de lidarmos apenas

com a cultura material e visível, filtrando involuntariamente nosso objeto de estudo, os rituais funerários, de forma a separar o visível do invisível, o material do virtual, justamente em sociedades onde pessoas, animais, objetos, almas e espíritos transitam constantemente entre os dois estados, podendo inclusive serem multiplicados de forma virtual.