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Artefatos como categorias conceituais: o recorte “urnas funerárias”

A ARQUEOLOGIA DAS URNAS FUNERÁRIAS NA AMAZÔNIA

1. Artefatos como categorias conceituais: o recorte “urnas funerárias”

A citação acima de Daniel Miller em seu artigo “Artifacts as categories” descreve bem nossa proposta de estudar urnas funerárias, e sua variabilidade, enquanto uma categoria de artefatos que nos informa sobre os princípios tradicionais de organização de uma sociedade. Em particular, como a variabilidade com que são construídas, e os padrões estéticos e tecno- estilísticos empregados, informam sobre as forças sociais e religiosas ativas nas

sociedades que as produziram. Como vimos, o universo dos objetos funerários, por envolver a relação com seres ancestrais e domínios sagrados é um universo privilegiado para o estudo arqueológico da agência de objetos. Por isso, dentre as categorias de objetos cerâmicos presentes no registro arqueológico, escolhemos as urnas funerárias.

Neste trabalho, nossa análise se debruça sobre um conjunto de urnas funerárias da Amazônia pré-colonial, enquanto um elemento ilustrativo de como se dá a fabricação das pessoas e seus corpos entres as sociedades da Amazônia pré-colonial, enquanto um elemento mediador entre os vivos e os mortos, e possivelmente, enquanto um elemento cuja agência pode ser transformadora de relações sociais. As urnas da fase marajoara são aqui consideradas objetos rituais funerários dentro de um contexto dinâmico de sociedades em mudança tanto no quadro regional mais amplo de formação e interação de cacicados na Amazônia, como em seu papel de reatualizar valores tradicionais internos de cada sociedade.

Aqui, o foco na categoria de objeto “uma funerária”, enquanto elemento integrante de rituais funerários e mediador de relações sociais, nos permite, logo de início, considerar estes objetos como testemunhos de um evento maior do que o simples enterramento de restos mortais. A própria natureza dos enterramentos, isto é enterramentos secundários, nos remete a um ciclo funerário bastante longo, e demarcado por dois processos, o de desintegração do cadáver e separação dos ossos, e o de preparação dos ossos e despojamento final.

Como vimos, este ciclo funerário demarcado em dois tempos é bastante recorrente na etnografia de sociedades tribais, quase sempre correspondendo a dois momentos distintos de um ciclo no qual primeiro se desfaz a identidade do indivíduo morto e dos laços deste para com sua comunidade, para, em um segundo momento, transformá-lo em outro indivíduo ou espírito, conferindo-lhe uma nova identidade e estabelecendo relações sociais de outra natureza com o mundo dos mortos, isto é, o momento da transmutação do morto propriamente dito ao qual se refere Vernant. Vimos o exemplo do ritual funerário Bororo

“desfiguração” e “refiguração” do mundo e empresta de Taussig (1999) o conceito de “defacement” para explicar o momento de desintegração dos corpos, e “refiguration”, o momento de força criativa para a manutenção e continuidade da comunidade, isto é o momento de articular o real às novas identidades simbolicamente construídas (Novaes, 2006).

Voltando às urnas cerâmicas, temos também que considerar de início a escolha em se preservar os restos mortais neste tipo de recipiente, muitos deles correspondendo a elaboradas peças de grande porte, testemunhando uma grande dedicação artesanal e domínio técnico na sua confecção. A escolha deste tipo de recipiente demonstra não só a intenção de preservação dos ossos ali depositados, mas também da durabilidade e visibilidade deste novo “invólucro” ou “roupagem” construída para os mortos, com a intenção de imprimir forma e imagem a sua nova identidade, que passa, nas urnas, sobretudo por meio da percepção visual.

A escolha por um material relativamente resistente e durável, como a cerâmica, ao invés de outros mais efêmeros e perecíveis, como os trançados de fibras, mais comum na Amazônia atual, talvez possa ser entendida como uma intenção de perenizar determinadas identidades ancestrais, ou ao menos tornar possível que sejam revisitadas periodicamente, quando da realização de ritos funerários que estabelecem relações com o mundo dos mortos. Além disso, pode estar relacionado também a valores simbólicos associados ao barro e à cerâmica, seus poderes mágicos dentro de uma classificação êmica dos objetos relacionada às qualidades de dureza e durabilidade, como observou Barcelos Neto entre os Waujá.

As imagens pintadas ou esculpidas nas urnas são evidências de que não somente as urnas eram feitas para serem vistas, mas também que elas poderiam tornar visível e palpável, talvez durante os próprios rituais funerários, aquilo que em outras circunstâncias não os seriam. Em sociedades tribais em geral, e em particular na Amazônia, rituais xamanísticos tornam visíveis signos exteriores de estados interiores. Assim, espíritos, almas, ou outros seres sobrenaturais passam de uma relativa invisibilidade e adquirem forma e imagem

através de máscaras, roupagens, pinturas corporais e outros artefatos, muitas vezes por intermédio de visões do xamã em estados alterados ou em sonhos.

Assim, uma das questões que guiaram nossa análise das informações etnográficas e arqueológicas disponíveis, e especificamente sobre enterramentos secundários em urnas, é justamente a de considerar a hipótese de que as urnas representam uma manifestação material e visual de seres sobrenaturais, isto é um corpo, uma aparência, uma roupagem para entidades que seriam em outras circunstâncias invisíveis e imateriais.

Por conseguinte, podemos considerar a confecção de urnas cerâmicas e seus atributos imagéticos como imbuídos de uma intencionalidade que vai além da simples preservação dos restos mortais de indivíduos e adquire o sentido de propiciar a presença constante e eterna de seres sobrenaturais no local de enterramento dos mortos. Pode se pensar nas urnas como corpos construídos através dos quais estas entidades sobrenaturais poderiam se manifestar a qualquer momento.

Se a etnografia dos rituais funerários de sociedades indígenas das terras baixas nos dá a dimensão destes rituais como fundamentais para a reprodução de cosmologias particulares, tanto em relação à ordem das coisas e pessoas dentro de suas comunidades, como no estabelecimento de relações de identidade e alteridade com o mundo externo, a arqueologia, que lida com poucos testemunhos materiais destes rituais, depende ainda de um entendimento das práticas funerárias bastante especulativo.

Os relatos etnográficos também deixam clara a importância de como estes rituais se estruturam, desde os preparativos até a sua finalização, e de como a duração e segmentação temporal das várias performances, das pessoas envolvidas nos diferentes momentos, e de todo um sistema de produção e multiplicação de expressões artísticas, cantos, danças, objetos, e etc., correspondendo a estágios e necessidades distintas de socialização entre os integrantes da mesma comunidade, entre estes e outros externos, entre o mundo dos vivos os e dos ancestrais e entre o mundo dos vivos e do sobrenatural em geral.

Também fica claro que os rituais funerários pertencem àquelas práticas culturais mais arraigadas aos valores e crenças tradicionais destas sociedades indígenas, inclusive porque re-estabelece vínculos com seu passado, tanto com os seus personagens ancestrais recentes, como com os personagens de seus mitos de origem.

Rituais funerários, e de maneira geral, a forma como estas sociedades lidam com seus mortos, constituem assim um objeto de estudo privilegiado para a arqueologia amazônica, na medida em que representam um traço cultural estrutural destas sociedades, e estariam menos propensos a variações e mudanças frente a eventos de ordem conjuntural, como o contato com outros grupos, conflitos, guerras, alianças, participação em redes de troca e outras, de natureza temporária.

Contudo, poucos arqueólogos da Amazônia se dedicaram ao estudo mais sistemático das práticas funerárias em período pré-colonial, apesar do fato de que uma grande proporção dos vestígios materiais venha de sítios cemitérios ou de outros contextos funerários. As exceções são a pesquisa de Guapindaia, que documentou sistematicamente os cemitérios Maracá (2001), no Amapá, e as hipóteses propostas por Schaan para enterramentos em urnas por ela escavados em Marajó (2003b).

Deve-se admitir também que tanto Meggers e Evans (1957 e 1965) como Hilbert (1968) consideraram algumas características dos padrões de sepultamento, ainda que de forma menos diagnóstica do que as propriedades da cerâmica em si, para propor tanto a filiação de complexos cerâmicos às diferentes fases e tradições cerâmicas, como também para explicar suas possíveis movimentações ao longo da bacia Amazônica.

Em nenhum destes casos, contudo, o foco das análises recaiu sobre aquelas características dos sepultamentos que poderiam informar sobre a simbologia dos rituais funerários enquanto meio de reafirmar estruturas sociais ou cosmologias específicas.

Outras sínteses da arqueologia amazônica, como a extensa cronologia proposta por Brochado e Lathrap (1982), privilegiaram determinados atributos da

cerâmica, como a forma, e o estilo da cerâmica utilitária, por estarem mais relacionados a aspectos adaptativos, como dieta, tecnologias de preparação de alimentos e regras de etiqueta de consumo, e por acreditarem que estes elementos culturais são extremamente conservadores (Brochado e Lathrap, 1982:14). Indicadores de cosmologias específicas e práticas rituais, como a cerâmica funerária não foram considerados na sua organização das seqüências de ocupação da Amazônia.

A nosso ver, um bom começo, seria entendermos a distribuição cultural e as especificidades de enterramentos secundários na Amazônia pré-colonial e como se configuram as urnas em termos estilísticos. Uma síntese do que se conhece sobre as urnas cerâmicas em si, como elas foram construídas, com quais finalidades específicas, e como foram utilizadas e descartadas fornece assim um contexto geral dentro do qual podemos então desvendar a agência destes objetos nos rituais funerários.