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4.3. O procedimento de aplicação da proporcionalidade

4.3.1. Fase prévia

4.3.1.4. A certificação da existência de real colisão entre direitos

Ultrapassada essa fase preliminar, se o intérprete considerar que a proporcionalidade decorre da estruturação dos direitos fundamentais por normas constitucionais abertas e principiológicas e justamente por isso tem a finalidade de permitir a solução de colisões entre direitos fundamentais sob uma realidade jurídica em que tais direitos encontram-se em permanente colisão, devido a sua dialeticidade, a sua natureza constitucional e àquela estruturação sob normas-princípios, torna-se necessário admitir que, em raras situações de extrema excepcionalidade, não será possível a sua aplicação naquelas situações onde já houver sido feita uma escolha pela própria Constituição quanto à

407

ALEXY, Robert. Op. Cit. Teoria dos direitos fundamentais. p. 95. 408

“(...) os princípios não valem sem exceção e podem entrar entre si em oposição ou contradição; eles não têm a pretensão da exclusividade; eles ostentam o seu sentido próprio apenas numa combinação de complementação e restrição recíprocas (...).”

CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Trad. A. Menezes Cordeiro. 2.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. p. 88.

152 preponderância de um dado direito fundamental ou quanto aos critérios sob os quais será admissível a sua restrição.

Mesmo sendo imprescindível admitir a relatividade dos direitos fundamentais para evitar a ruptura de um sistema constitucional que sustenta a sua preponderância axiológica e normativa, há que se admitir que em certos casos a finalidade da proporcionalidade encontra-se previamente frustrada à medida que ou sequer existe uma colisão entre direitos fundamentais ou já existem balizamentos impostos pela própria Constituição à aplicação da proporcionalidade, não sendo possível ao intérprete desconsiderar tais escolhas, vez que as mesmas decorrem de uma ponderação prévia feita pelo próprio legislador constituinte originário que vincula constitucionalmente o aplicador do direito.

Imaginemos, por exemplo, uma situação hipotética em que agente policial captura um dos integrantes de um grupo de sequestradores que mantém várias pessoas, dentre elas mulheres e crianças, como reféns em iminente risco de vida. Seria possível ao intérprete jurídico brasileiro pretender verificar a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito da conduta do agente policial em interrogar o sequestrador capturado sob tortura física e psicológica a fim de obter o paradeiro das vítimas e, consequentemente, preservar a valiosa integridade física e até mesmo a vida dos reféns em risco?

Parece-nos inadmissível ao intérprete pretender verificar a proporcionalidade desse ato estatal de restrição ao direito fundamental à integridade física e psicológica do preso, mesmo que ele seja suspeito do sequestro antes imaginado, pois o próprio legislador constituinte originário já fez uma escolha prévia acerca da preponderância - ou melhor, da inatingibilidade - desse direito fundamental em qualquer pretensão de sua restrição, à medida que o art. 5º, XLIII da CF/88 já estipulou a extrema antijuridicidade de tal conduta ao considerar a “prática da tortura” crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.

É assim que, estipulando-se como outros exemplos de prévia definição de antijudicidade constitucional a pena de morte e a de prisão perpétua, sustenta-se que há “situações em que a própria Constituição garante uma faculdade, uma garantia, uma

153 pretensão ou faceta particular do direito, mas já a título definitivo, absoluto, ou seja, o legislador constitucional fez logo ali, ele mesmo, todas as ponderações que havia de fazer” 409 (grifei).

Mesmo autores que inadmitem a inexistência de um fundamento absoluto aos direitos fundamentais, reconhecem que há certos direitos do homem que não podem ser postos à prova da restrição estatal, vez que:

Há alguns que valem em qualquer situação e para todos os homens indistintamente: são os direitos acerca dos quais há a exigência de não serem limitados nem diante de casos excepcionais, nem com relação a esta ou àquela categoria, mesmo restrita, de membros do gênero humano (é o caso, por exemplo, de não ser escravizado e de

não sofrer tortura). Esses direitos são privilegiados porque não são postos em concorrência com outros direitos, ainda que também fundamentais. Porém, até entre os chamados direitos fundamentais, os que não são suspensos em nenhuma circunstância, nem negados para determinada categoria de pessoas são bem poucos: em outras palavras são bem poucos os direitos considerados fundamentais que não entram em concorrência com outros direitos também considerados fundamentais, e que, portanto, não imponham, em certas situações e em relação a determinadas categorias de sujeitos, uma opção. 410 (grifei)

Parece-nos, portanto, ser necessário reconhecer que nos casos em que a Constituição já fez uma prévia escolha sobre a preponderância de um dado direito fundamental, colocando-o a salvo de escolhas posteriores por qualquer agente estatal ou social, não será possível um juízo de proporcionalidade eis que verdadeiramente não há uma colisão entre direitos fundamentais a ser solucionada pelo intérprete.

Acreditamos serem exemplos de impossibilidade normativa de aplicação da proporcionalidade, vez que inadmissível a restrição de direitos em tais hipóteses, as situações que envolvam (i) o direito fundamental à incolumidade física e psicológica do homem (proibições de tortura e de penas de morte e cruéis, respectivamente inscritas no art. 5º, XLIII e XLVII da CF/88); (ii) o direito de submeter-se à jurisdição brasileira ao

409

NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006. p. 51.

410

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 39/40.

154 nacional brasileiro nato (proibição de extradição do brasileiro nato prevista no art. 5º, LI da CF/88) 411; (iii) o direito do brasileiro de não ser escravizado como decorrência da notória abolição de tal instituto do sistema jurídico brasileiro, da ampla proteção ao trabalhador disposta no art. 7º da CF/88 e da ratificação das Convenções nº 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho 412 no âmbito do art. 5º, § 2º da CF/88.

Além dessas, outras hipóteses de inaplicabilidade parcial da proporcionalidade existem quando a Constituição, ao invés de fixar a impossibilidade de restrição de um direito fundamental, já estipula previamente os critérios sob os quais se admite a restrição a um dado direito fundamental, o que, em decorrência da vinculação constitucional, obriga a que o intérprete jurídico considere tal escolha prévia feita pelo próprio legislador constituinte originário.

Tanto assim o é que, como resultado de uma ponderação prévia já realizada pelo legislador constituinte originário, pode a Constituição fixar uma regra restringidora de um dado direito fundamental que, devido a esta sua natureza, não poderá ser sopesada pelo intérprete, tal como acontece quando a CF/88 dispôs, em seu art. 5º, XVI, que é direito fundamental a reunião em locais abertos e independentemente de autorização, desde que pacificamente, sem armas e não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local.

411

“(...) IMPOSSIBILIDADE CONSTITUCIONAL ABSOLUTA DE EXTRADITAR-SE BRASILEIRO NATO E POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO EXTRATERRITORIAL DA LEI PENAL BRASILEIRA A FATOS DELITUOSOS SUPOSTAMENTE COMETIDOS, NO EXTERIOR, POR BRASILEIROS - CONSIDERAÇÕES DE ORDEM DOUTRINÁRIA E DE CARÁTER JURISPRUDENCIAL. - O brasileiro nato, quaisquer que sejam as circunstâncias e a natureza do delito, não pode ser extraditado, pelo Brasil, a pedido de Governo estrangeiro, pois a Constituição da República, em cláusula que não comporta exceção, impede, em caráter absoluto, a efetivação da entrega extradicional daquele que é titular, seja pelo critério do "jus soli", seja pelo critério do "jus sanguinis", de nacionalidade brasileira primária ou originária. Esse privilégio constitucional, que beneficia, sem exceção, o brasileiro nato (CF, art. 5º, LI), não se descaracteriza pelo fato de o Estado estrangeiro, por lei própria, haver-lhe reconhecido a condição de titular de nacionalidade originária pertinente a esse mesmo Estado (CF, art. 12, § 4º, II, "a"). (...)” (grifei)

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. HC-QO nº 81.113. rel. Min. Celso de Mello. J. 26/06/2003. Disponível em <www.stf.jus.br>. Acesso em 24/08/2010.

412

BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. Quadro das Convenções da OIT (Ratificadas pelo

Brasil). Junho/2009. Atualizado. Disponível em

155 Fixa, portanto, a própria Constituição, uma regra de restrição a um dado direito fundamental que, devido a sua natureza não principiológica e diretamente constitucional, vincula os aplicadores do direito, não lhes sendo possível perquirir a adequação, a necessidade ou a proporcionalidade em sentido estrito de tal restrição nos casos em que elas se apresentam fática e juridicamente.

Nesse sentido posiciona-se Robert Alexy quando, ao fazer o exame de norma similar 413 da LFB, entende que a condição de reunir-se “pacificamente e desarmados” importa em uma restrição definitiva ao referido direito fundamental, com natureza de regra:

A cláusula “pacificamente e sem armas“ pode ser interpretada como uma formulação resumida de uma regra, que transforma os direitos prima facie decorrentes do princípio da liberdade de reunião em não- direitos definitivos. Isso corresponde exatamente à definição de restrição fornecida acima. A regra expressa pela cláusula restringe a realização de um princípio constitucional. Sua peculiariedade consiste no fato de que foi o próprio constituinte que estabeleceu a restrição definitiva. A disposição constitucional tem, nesse sentido, a natureza de regra. 414 (grifei)

Mais a frente, o autor prossegue o raciocínio, reafirmando que tais regras constitucionais previamente fixadas pelo legislador constituinte para restringir direitos fundamentais apresentam-se em outros dispositivos da LFB e devem ser consideradas como restrições definitivas não suscetíveis de sopesamento posterior:

Os problemas suscitados pelo caráter restritivo da cláusula “pacificamente e sem armas” fundam-se essencialmente no fato de que essa cláusula é uma parte de um enunciado que garante o direito fundamental. Problemas semelhantes suscitam cláusulas como “todos os alemães” (por exemplo: art. 8º, §1º), “armado” (art. 4º, §3º, I) e “fontes acessíveis a todos” (art. 5º, §1º, 1). Com base no que foi dito,

essas cláusulas devem ser consideradas como expressão de restrições definitivas a direitos fundamentais estabelecidas diretamente pela Constituição. 415 (grifei)

413

Art. 8º, §1º: “Todos os alemães terão o direito de se reunir, pacificamente e desarmados, sem necessidade de notificação ou permissão prévias.”

414

ALEXY, Robert. Op. Cit. Teoria dos direitos fundamentais. p. 287. 415

156 Tratando-se, portanto, de uma restrição definitiva fixada por uma regra constitucional, como resultado de um sopesamento prévio realizado pelo próprio legislador constituinte originário, será esta aplicável mediante subsunção, não sendo, portanto, possível submetê-las a um juízo de verificação da adequação, da necessidade e da proporcionalidade estrita das condições fáticas e jurídicas, eis que não dotadas da natureza de princípios, em que efetivamente a aplicação da proporcionalidade seria cabível.

A doutrina brasileira não desconhece essa situação, reforçando a ideia de impeditivo normativo à aplicação da proporcionalidade quando o próprio legislador constituinte originário já realizou um sopesamento prévio em relação a que critérios um direito fundamental pode ou não ser sopesado impedindo “tanto o legislador como o juiz/aplicador de construir novas limitações a partir de ponderações que a Constituição não cogitou” 416.

Para Paulo Gustavo Gonet Branco exemplo disso decorreria do art. 5º, LVI da CF/88, segundo o qual “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”, não se podendo realizar um juízo de proporcionalidade entre um suposto interesse público decorrente da busca da verdade real para a adequada decisão de uma demanda com o direito fundamental da parte em não ver sujeita à análise judicial prova que lhe é contrária e foi obtida, por exemplo, com violação do seu domicílio.

Como a própria Constituição já fez uma ponderação prévia a respeito dessa situação, ela estabeleceu uma regra constitucional que será aplicável mediante mera subsunção, não deixando espaços, portanto, para que o legislador ou o juiz possa realizar um posterior sopesamento a respeito da referida restrição constitucional.

Não há efetivamente, portanto, uma colisão entre direitos fundamentais, eis que “o juízo de proporcionalidade está, aí, vedado ao juiz, porque a garantia da inviolabilidade foi elevada à condição de regra resultante de juízo de proporcionalidade realizado pelo próprio constituinte” 417.

416

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op. Cit. Juízo de ponderação na jurisdição constitucional. p.264. 417

157 Essa impossibilidade de utilização da proporcionalidade, em decorrência de uma vedação decorrente da própria Constituição, também se apresentaria no art. 5º, XII da CF/88, eis que o referido dispositivo constitucional fixou uma regra que condiciona a possibilidade de restrição ao direito fundamental de sigilo das comunicações telefônicas apenas para os fins de investigação criminal ou instrução processual penal, mediante autorização judicial, pois:

Isso (a ruptura desse direito fundamental fora das hipóteses fixadas pela própria Constituição) não será admissível nem mesmo sob o pretexto de se efetuar uma ponderação entre valores constitucionais conflitantes em uma dada situação – justamente porque o constituinte,

ao prever a reserva legal qualificada, já indicou que valor deve ser sopesado contra a liberdade de comunicação telefônica e em que circunstâncias se justifica a interferência. Com isso, afastou a possibilidade de ulteriores ponderações judiciais. 418 (grifei)

De ver-se, portanto, que somente após verificável a efetiva existência de colisão entre direitos fundamentais torna-se possível ao intérprete perquirir a aplicabilidade de um juízo de proporcionalidade acerca da restrição a tais direitos, pois a proporcionalidade é uma regra procedimental com âmbito de aplicação subsidiária e restrita à solução normativa das “reais colisões” entre tais direitos.

4.3.2. Fase de aplicação propriamente dita da proporcionalidade na colisão de