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2 ELEMENTOS DE ÉTICA, POLÍTICA E DIREITO NA CONTEMPORANEIDADE

2.3 A cisão entre direito e justiça no mundo contemporâneo

No âmbito da reflexão teórica sobre política e direito, assim como na esfera de ações políticas e jurídicas, a disjunção entre ética e política discutida pelos teóricos da modernidade desemboca em discussões insistentes sobre a necessidade da ética na política e no direito ou ainda, da ação política/jurídica feita a partir de pressupostos éticos. Ora, isso significa dizer

que a ética, a política e o direito, não possuem, necessariamente, a mesma natureza, podendo suas ações ser pensadas e/ou desenvolvidas de forma distinta ou, até mesmo, antagônicas.

Embora o poder como um dos principais elementos da ação política seja objeto prioritário de discussão no pensamento filosófico/ético/político da modernidade, a relação entre poder e direito tem sido objeto de reflexão filosófica desde a Antiguidade Grega. Sócrates já questionava se o direito é apenas um corpo de decretos formulados pelos que detêm o poder coercitivo, ou se é uma expressão do direito moral que serve para concretizar as exigências abstratas da justiça. Além disso, pensava-se que as instituições políticas existiam para tornar possível a existência de uma vida virtuosa (justa), aspecto este que seria alcançado somente na vida pública através da participação nos assuntos políticos da coletividade.A vida privada, em si, não era valorizada; ela só possuía valor na medida em que tornasse possível a vida pública. Entretanto, se antes a discussão centrava-se, principalmente, no entendimento do que era justo ou injusto, o papel central desempenhado pelo direito na vida política moderna fez surgir novas questões vinculadas a essa problemática.

No mundo moderno, a partir das reflexões de filósofos como Hobbes, a valoração de tais dimensões – publico e privado – foram em grande parte invertidas: novas formas políticas que permitissem aos cidadãos buscar suas próprias concepções de vida virtuosa foram buscadas. À esfera privada foram atribuídos direitos individuais, tornando-a espaço de autonomia a partir da qual os indivíduos podem escolher seus objetivos e projetos inteiramente pessoais.

Com ênfase no papel da atribuição de direitos individuais, a partir da proclamação dos direitos humanos universais, a moderna concepção de política passou a assumir um caráter profundamente jurisprudencial, onde a lei define e impõe direitos apoiada na existência de princípios coerentes e determinados. Contudo, tal linha de pensamento também denota uma crise nas concepções de homem e o predomínio de uma ideologia individualista que resulta numa fragmentação da imagem do homem e inúmeras dificuldades de adequação de suas convicções e da sua liberdade a valores universalmente reconhecidos, aprofundando, por fim, a cisão entre Ética e Direito. Para Vaz, nisso residiria o paradoxo fundamental da sociedade moderna:

[...] uma sociedade obsessivamente preocupada em definir e proclamar uma lista crescente de direitos humanos, e impotente para fazer descer do plano de um formalismo abstrato e inoperante esses direitos e levá-los a uma efetivação concreta nas instituições e nas práticas sociais. Na verdade, entre a universalidade do Direito e as liberdades singulares a relação permanece abstrata e, no espaço dessa abstração, desencadeiam-se formas muito reais de violência que acabam por consumar a cisão entre Ética e Direito na contemporaneidade: aquela degradada da moral do interesse e do prazer, esse exilado na abstração da lei ou confiscado pela violência ideológica. (VAZ, 1988, p. 174).

Considerando as linhas de pensamento hegeliano, Vaz entende que uma das razões da atual crise das sociedades políticas do Ocidente está enraizada na insuficiência conceitual com que é pensada a relação entre ética, política e direito, cuja fundamentação está ancorada na concepção de universalidade hipotética, a qual sustenta a ideia de contrato ou associação. Segundo ele, tendo em vista que “o contrato social é formulado como garantia dos interesses e das necessidades do indivíduo, o Direito passa a ser conceptualizado fundamentalmente como convenção garantidora desses interesses e da satisfação dessas necessidades.” (VAZ, 1988, p. 174-175). Nessa ótica, a lógica que mantêm a relação da sociedade ou do Estado com os indivíduos é essencialmente técnica, da qual fica excluída qualquer dimensão ética.

Tendo em vista que, na tradição moderna, o Estado é visto como detentor do poder de criar as normas (leis) que regulam, coercitivamente, o comportamento dos indivíduos na sociedade, opera-se também um afastamento entre o direito e a ética e, consequentemente, entre direito e justiça. Nisso resulta a diferença primordial entre o chamado direito positivo, positivado pelo Estado, hegemônico na contemporaneidade, e o direito natural. Este, segundo Silva (2007), segue uma ordem transcendental e possui um vínculo intrínseco com um ideal de justiça, mesmo que de forma ideológica. Já o direito positivo encontra fundamento no pensamento político liberal que, apesar de prover a autonomia individual acima da participação coletiva, o coletivo ainda desempenha papel fundamental, conforme explica Simmonds (2002, p. 394):

[...] o mundo moderno não vê as estruturas da sociedade civil, da economia e da família como imutáveis, formando um horizonte natural em cujos parâmetros a vida política precisa ser conduzida. Estamos profundamente cientes da mutabilidade de semelhantes estruturas e de sua suscetibilidade de transformações pela política. Ao valorizar a democracia, valorizamos nossa capacidade de decidir coletivamente o perfil geral que nossas estruturas devem exibir. Nesse sentido, valorizamos nossa capacidade de perseguir projetos coletivos de reforma social.

Dessa forma, a concepção de política liberal valoriza a busca de realização de projetos individuais e também a busca de realização de um projeto coletivo. Porém, esses dois valores

competem entre si, permitindo ao sistema liberal certa estabilidade entre a regulação individual e coletiva, tornando possível o domínio do direito. Assim, não se perde o controle coletivo do perfil e estrutura social geral e não se elimina o espaço para a busca de projetos individuais autônomos.

Tal concepção, no entanto, assume ser possível identificar e aplicar as regras e os princípios do direito sem reabrir questões políticas da busca de realização dos projetos coletivos que podem ter levado à promulgação dessas regras e princípios. Nessa perspectiva, conforme explica Simmonds (2002), um juiz poderá determinar se um cidadão agiu conforme seus direitos legais, sem questionar se essas ações serviram para promover objetivos coletivos desejáveis. Diferentemente, seguindo a tradição legada pelos gregos, a atribuição de direitos do indivíduo deveria se estender às ações que servem a objetivos coletivos, ou seja, a autonomia individual deveria ser submetida à busca de realização de projetos coletivos. É diante dessa controvérsia que se tenta estabelecer e sustentar uma distinção viável entre direito e política.

O positivismo legal, vertente teórica hegemônica na qual se defende uma concepção moralmente neutra do direito, afirmando “que leis válidas podem ser identificadas por referências a critérios de natureza puramente factual” (SIMMONDS, 2002, p. 395), opera fazendo uma separação entre o direito e a justiça. Simmonds afirma, reportando-se à teoria de Hart que se inscreve nessa perspectiva do direito, que os critérios de validade das leis contêm uma regra de reconhecimento básica, aceita pelas autoridades. As fontes consideradas válidas por essa regra são denominadas como fontes de direito. Deste modo,

Uma regra que emana de uma fonte apropriada é uma norma válida independentemente de sua justiça ou injustiça. De modo correspondente, uma regra que não emana de uma fonte apropriada não é uma norma válida, não importando quão justa ou razoável possa ser. (SIMMONDS, 2002, p. 395).

Nesse sentido, o objetivo do direito positivo é fazer uma separação entre direito e moral, preocupando-se com a exclusividade das fontes e a neutralidade moral das proposições do direito. Além de sustentar a tese de que a validade legal de uma norma depende da fonte de onde emana, Hart procurou mostrar que o conteúdo da lei não tem, em si, nada a ver com obrigação moral. Esse autor procurou desenvolver uma explicação da natureza do direito enfatizando a produção de regras publicamente certificáveis, identificadas por referência à

regra básica de reconhecimento. Sua teoria não trata de critérios mais abertos de justiça ou equidade, vistos por ele como considerações extralegais que, no entanto, podem ser consideradas quando as regras legais deixam de produzir determinada resposta. Em sua avaliação, a lei reflete as características mais importantes e distintivas do direito, necessárias para a sobrevivência humana. Segundo a análise de Simmonds, parece haver, no entanto, uma contradição na teoria de Hart, já que “as mais poderosas razões para defender a exclusividade das fontes requerem a rejeição da tese da „neutralidade moral‟” (2002, p. 402). Tendo em vista que não se exige admitir uma concepção de que a lei é moralmente conclusiva sobre como uma pessoa deve se comportar, conclui o autor, a tese da neutralidade moral deve ser substituída por outra: a não-conclusividade moral do direito.

Percebe-se assim que o direito é fortemente influenciado pela moral estabelecida, e mesmo que retoricamente busque afirmar que perquere a efetivação/garantia da justiça, não é isso que se verifica em sua efetividade cotidiana. O problema reside no fato de que a ética é colocada em segundo plano. Sendo a ética mais próxima da justiça do que da moral, o direito não dá conta da amplitude do que pode ou não ser considerado justo. Dessa forma, nem sempre o direito virá ao lado da justiça. Isso só acontece, de fato, quando a justiça é respaldada pela ordem posta, ou quando a ordem persegue a justiça como fim. Ao avaliarmos o contexto histórico-social contemporâneo, portanto, é possível concluir que, infelizmente, a tese da neutralidade moral tem produzido um fosso que tende a se ampliar cada vez mais entre direito e justiça.

Silva (2007) explica que há diferentes visões do que seja a justiça e que estas se relacionam com diversas formas de direito, desde a Antiguidade Grega. Seguindo o fio condutor dos pensadores abordados neste trabalho, destaca-se que, para Platão, a justiça é uma virtude subjetiva, da qual deriva a ideia de bem, e que se manifesta em graus distintos conforme a instrução das pessoas. Assim, o guerreiro detinha a virtude da coragem, o artífice a temperança, e o sábio, a justiça, por isso a este último caberia governar as cidades. Já para Aristóteles, a justiça “é o caminho do meio”, aquilo que se encontra entre o excesso e a escassez. É no pensamento deste filósofo grego que a justiça aparece, pela primeira vez, como expressão da igualdade no sentido de equidade. Aqui também é que a justiça aparece como qualidade do comportamento humano ou de uma norma. Nas escolas jusnaturalistas modernas, a justiça vai decorrer da razão humana. Com Kant, a justiça vai estar fundamentada a partir do imperativo categórico da razão prática, ou seja, na autonomia da vontade

individual entendida como livre e autolegislativa; o homem sendo capaz, racionalmente, de determinar qual a regra de justiça.

Outra doutrina destaca por Silva (2007) é a elaborada por John Rawls9. Este teórico parte da justiça como equidade, a partir de Aristóteles, e da visão de contrato social, preconizada no jusnaturalismo, retrabalhando-o não como necessidade fundante do Estado, mas como um acordo entre os indivíduos, baseado em princípios da justiça.

Perelman (apud SILVA, 2007) identifica pelo menos seis formas/vertentes de manifestação da justiça, segundo diferentes critérios, que comporiam o que ele chamou de Justiça Concreta: 1) a justiça eminentemente formal – através dela todos são tratados da mesma maneira; é expressa na máxima: “a cada qual a mesma coisa”; 2) a justiça distributiva – derivada de Aristóteles, nela não há espaço para a igualdade formal, pois cada um é medido pela sua virtude; é expressa na máxima: “a cada qual segundo seus méritos”; 3) a justiça de forma objetiva – é pautada pelo resultado da ação; não está baseada na igualdade ou valor moral; é expressa na máxima: “a cada um segundo suas obras”; 4) a justiça como caridade – valoriza a existência digna do homem; compensa a impossibilidade de alguns em garantir sua própria existência; é expressa na máxima: “a cada um segundo suas necessidades”; 5) a justiça como fórmula aristocrata – a demarcação do justo depende da classe ao qual pertença; é expressa na máxima: “a cada qual segundo sua posição”; 6) a justiça do direito positivo – derivada dos romanos, consiste em aplicar a mesma lei para situações idênticas; é expressa na máxima: “a cada um o que a lei lhe atribui”. A partir dessas formas de manifestações da justiça, todas com claro retorno a Aristóteles, Perelman (apud SILVA, 2007, n. p.) chega à concepção de Justiça Formal: “princípio de ação segundo o qual os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma”, ou seja, o marco determinativo é a igualdade.

Deste modo, conclui Silva (2007, [n. p.]), “o direito não se contrapõe à justiça formal, este a realiza. A contraposição, entretanto, pode ocorrer com relação à concepção concreta de justiça eleita.” Justiça essa que depende da concepção que se quer de Estado: “O Estado liberal busca uma liberdade formal. O Estado social visa à justiça como veículo de participação de todos nos bens da nação e assim por diante” (SILVA, [n.p.]).

9 A teoria de Johnn Rawls é aprofundada no capítulo 3 deste trabalho monográfico de modo que neste momento é apenas referenciada para fins de contextualização.

A partir do que foi exposto, percebemos que o direito e a justiça têm a mesma origem, mas são separadas no percurso histórico da vida humana, principalmente quando a ética começa a ser desvinculada da ação política. Todavia, essa cisão afeta profundamente as relações humanas contemporâneas, muitas vezes traumatizando o próprio pensar sobre o que no direito parece insuportável (SOUZA, 2004), ou seja, as injustiças cometidas, em especial, contra aqueles que mais carecem de justiça. Nesse sentido, a interação entre direito e justiça, além de ser possível, se faz necessária, pois sem ela o direito fica desprovido de humanização. Por fim, diante de tantas vertentes possíveis para uma concepção de justiça, fica evidente a necessidade de aprofundamento teórico e reflexivo sobre qual o postulado de justiça deva ser utilizado para que o direito, de fato, possa efetivá-la.

3 A TEORIA DA JUSTIÇA DE JOHN RAWLS

“A sociedade está em ordem não somente quanto se estabelece a vontade de desenvolver o desejável para os seus membros, mas também quando estiver efetivamente regulada por um conceito público de justiça.” (RAWLS, 1981, p. 28).

Do conjunto da obra de John Rawls, procura-se destacar neste trabalho a etapa que, tendo gerado mais comentários e críticas, pode ser representada pelo livro Uma teoria da justiça, originalmente publicado em 1971, considerando que se trata, em nosso ver, de uma tentativa – rara em nossos dias – de elaborar uma teoria moral sistemática para a justificação do direito. Não obstante, reconhece-se a necessidade de, ao menos, apontar os rumos que tal teoria tomou depois da primeira obra, através de várias conferências e ensaios escritos pelo autor, e que culminaram no livro O liberalismo político, publicado em 1993.

Em Uma Teoria da Justiça, a tradição do contrato social aparece como parte da filosofia moral. Neste livro, o autor não distingue a filosofia moral da política, de modo que não há distinção entre uma doutrina moral de justiça e uma concepção estritamente política de justiça, o que será retrabalhado por Rawls em O liberalismo político.

O próprio Rawls (2000) ressalta que há diferenças entre a concepção de justiça como equidade trabalhada no primeiro livro e a elaborada no segundo livro. No entanto, salienta que essas diferenças decorrem da tentativa de esclarecer um único ponto que em Uma Teoria da Justiça não teria ficado claro: a descrição da estabilidade das instituições democráticas, e que tem a ver com a ideia pouco realista do que seria uma “sociedade bem ordenada”. Fora esse aspecto, o teor é o mesmo.

Embora a intuição que guie a obra de John Rawls seja explicitada com maior clareza nos últimos tempos, desde sempre ela foi, conforme afirma Cortina (2009), o empenho de se construir uma filosofia moral e um novo projeto que ajude a resolver o equívoco e a ambiguidade dos conceitos de liberdade e igualdade, que provoca o desequilíbrio destas na sociedade moderna e contemporânea. Nessa tarefa, Rawls acaba submetendo os fundamentos do direito a uma revisão crítica. Ele parte de uma concepção de moral e, tematizando a estrutura básica da sociedade, concentra-se na ideia de justiça como virtude social.