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2 ELEMENTOS DE ÉTICA, POLÍTICA E DIREITO NA CONTEMPORANEIDADE

3.2 Os princípios de justiça como equidade

De modo geral, segundo Sônia Felipe (2000), a teoria de Rawls sugere um modelo de justiça que seja capaz de orientar a distribuição justa dos bens e de seu custo em sociedades que seguem a tradição democrática e constitucional ocidental, em que a liberdade, a igualdade e a equidade são valores que norteiam a produção e usufruto da riqueza por cidadãos cooperados. Sob essa ótica, em uma democracia constitucional, os cidadãos cooperativos é que ajudam, através de impostos, a garantir a oferta de bens e serviços a todos os cidadãos de forma equitativa, o que é impossível se estes bens forem entregues às regras do mercado.

Além disso, Rawls busca elaborar um modelo justo de distribuição de bens que independa de mudanças que podem vir a ocorrer no modo de produção desses bens. Por isso, sua teoria pressupõe que, a cada nova geração, é necessário que seja discutido como os bens – produzidos pelas gerações anteriores a fim de assegurar um futuro digno às gerações futuras – estão sendo distribuídos aos cidadãos, de modo que estes possam ter qualidade de vida até que eles possam cuidar de si mesmos com dignidade. Rawls atenta, nesse sentido, para a fragilidade do direito distributivo. Sobre estas preocupações, S. Felipe afirma:

Tanto a falta de sentido de justiça dos funcionários públicos (burocratas), quanto à caduquice mesma das regras de distribuição frente ao desenvolvimento tecnológico, intelectual e econômico de cada sociedade, podem gerar distorções no modelo distributivo. Resulta daí uma obrigação política para todos os cidadãos: a obrigação de participar dos debates e questionamento acerca das distorções na distribuição de bens, de contribuir para a definição de justiça distributiva. (2000, p. 135).

Deste modo, através do acordo de cooperação equitativa, as lacunas do direito distributivo são corrigidas permitindo manter-se a unidade do corpo social. A cooperação equitativa, nesse sentido, deve ocorrer tanto para produção de bens, como para o pagamento de impostos, a constituição do governo, a preservação do Estado e de suas instituições mais relevantes e a reaplicação dos impostos coletados em favor dos cidadãos.

O entendimento da justiça como equidade baseia-se assim em dois princípios fundamentais: o princípio da liberdade igual e o princípio da diferença. Segundo Rawls (1981), no estágio hipotético original em que se encontraria a sociedade, as pessoas teriam de optar por um dos dois princípios: o primeiro exige igualdade na atribuição de direitos e deveres básicos, isto é, garante igual sistema de liberdades e direitos da forma mais ampla

possível, sendo a liberdade igual a todos os indivíduos; o segundo requer que sejam mantidas as desigualdades sociais e econômicas, sendo estas justas, apenas quando resultarem em benefícios a todos e, em especial, aos menos privilegiados. Nas palavras do autor:

O primeiro dos dois princípios poderia ser formulado como segue: primeiro – cada pessoa deve ter a mais ampla liberdade, sendo que esta última deve ser igual à dos outros e a mais extensa possível, na medida em que seja compatível com uma liberdade similar de outros indivíduos. Segundo – as desigualdades econômicas e sociais devem ser combinadas de forma a que ambas (a) correspondam à expectativa de que trarão vantagens para todos, e (b) que sejam ligadas a posições e órgãos abertos a todos. (RAWLS 1981, p. 67).

Parafraseando Rabelo Junior (2011), o primeiro princípio – da liberdade igual – diz respeito às liberdades básicas de um cidadão participante de um estado de direito, enquanto que o segundo princípio – da diferença – se refere à distribuição de renda e riqueza e têm como alvo as organizações que fazem uso de diferenças de autoridade e de responsabilidade através das posições (cargos e funções). Nesse sentido, nenhuma vantagem pode existir moralmente se isto não beneficia aquele em maior desvantagem.

Rawls (1981, p. 35) entende, pois, que “não é justo que uns tenham menos para que outros prosperem”, mas se as pessoas menos favorecidas tiverem sua situação melhorada, um maior benefício ganho por alguns não pode ser considerado injustiça.

O segundo princípio – da diferença – é dividido em dois eixos: o primeiro se aplica a distribuição de renda e bens; o segundo, aos propósitos das organizações que fazem distinções dos cargos de comando. Rawls (1981) explica que, no primeiro eixo, os bens e rendas não devem ser necessariamente distribuídos de forma igualitária, mas a distribuição deve ocorrer de forma a dar a maior vantagem para todos assim como, no segundo, as posições de comando, de maior responsabilidade, devem ser acessíveis a todos.

Para que as posições mantenham-se abertas e as desigualdades sócio-econômicas possam resultar em vantagens para todos, os princípios devem seguir uma ordem serial: o primeiro antecedendo o segundo. Conforme Rawls, essa ordenação significa que violações das liberdades iguais protegidas pelo primeiro princípio não podem ser justificadas ou compensadas por maiores vantagens econômicas ou sociais.

Diante disso, as possibilidades de uma pessoa melhorar suas condições de vida só podem ocorrer estando garantidas suas liberdades básicas fundamentais. Como bem afirma Rawls (1981, p. 68): “A distribuição de bens e renda, e as hierarquias de autoridade, devem ser consistentes tanto com as liberdades de cidadania igual quanto à igualdade de oportunidades.”

Sônia Felipe (2000) analisa que, entre os princípios defendidos por Rawls que podem ser empregados na construção de um modelo regulador equitativo da contribuição de cada um e, ao mesmo tempo, da contrapartida do Estado (aplicação dos recursos), figura o princípio que prevê igual distribuição de liberdades. De acordo com a autora, a liberdade constitui-se, na teoria rawlsiana, “bem fundamental inalienável à sociedade justa, [que] não pode ser trocada por qualquer benefício material.” (FELIPE, 2000, p. 136-137).

Uma distribuição igualitária da liberdade, nesse sentido, não corresponde à oferta da mesma quantidade de bens materiais e imateriais a todos os cidadãos e a exigência de que todos apresentem a mesma quantidade de produção, contribuição e participação no recolhimento de impostos e na política. Felipe (2000) argumenta que uma sociedade democrática baseada num modelo de justiça como equidade, conforme o modelo proposto por Rawls, primeiro leva em conta a liberdade de cada um de escolher em qual posição econômica deseja ficar para depois distribuir os bens, equilibrando o montante do que exige do cidadão, com o montante que lhe oferece. A autora exemplifica:

Se o indivíduo escolhe, por exemplo, formar-se para exercer uma profissão mais complexa, deve saber com clareza quais os encargos (obrigações) inerentes à mesma, assim como quais as vantagens de embarcar nela e de abrir mão de exercer outra qualquer. O princípio da liberdade assegura a escolha livre, por parte do cidadão, da atividade principal através da qual tem sua renda, pois é através desta que ele passa a ter acesso aos bens de consumo tais como maior conforto, para morar, lazer mais sofisticado, trajes e alimentos mais refinados. Exigências vinculadas a um padrão especial de vida o Estado não tem nenhuma obrigação de atender. Por conta do desejo de usufruir de bens sofisticados o cidadão paga, no modelo de Rawls, mais impostos, aumentando assim a poupança coletiva. Alcançar um padrão refinado de vida, no entanto, deve ser possibilitado pelas instituições sociais [...] a todos os sujeitos representativos. A contrapartida do sujeito é submeter-se aos processos de formação exigidos para tingir o nível necessário ao exercício da profissão [...] (FELIPE, 2000, p. 137).

A liberdade, nesse sentido, serve para orientar as escolhas individuais e para garantir a igualdade equitativa entre os cidadãos. Para que a estrutura básica da sociedade possa ser preservada, a liberdade igual, ancorada no princípio da equidade, exige que responsabilidades

sociais sejam equilibradas com responsabilidades econômicas. Ou seja, quanto mais responsabilidades um sujeito assume no sistema produtivo, maior será sua renda e, consequentemente, maior será seu poder de consumo. Para que haja o equilíbrio, este sujeito deverá, em contrapartida, contribuir mais para que se possa constituir uma poupança coletiva pagando mais impostos.

Essa poupança coletiva é necessária para que o segundo princípio – da diferença – possa ser efetivado. Os recursos dessa poupança coletiva, constituída pelos impostos pagos por aqueles que ganham mais, devem ser aplicados de tal forma que socorram aqueles que não alcançaram igual posição econômica, ou seja, deve ser revertida em favor dos menos privilegiados.

A alocação dos recursos coletados, bem como programas de taxação de propriedades, da herança, e de consumo são ações de responsabilidade de um Estado democrático. Ou seja, o modelo de sociedade democrática proposto por Rawls prevê órgãos e instituições responsáveis pela cobrança dos impostos e aplicações desses recursos em programas de incentivo à moradia, à saúde, à educação e à cultura tendo em vista a necessidade de o Estado honrar seu compromisso com aqueles que não podem alcançar sozinhos esses bens primários. Nesse sentido, conforme afirma Felipe (2000, p. 139):

[...] Rawls deixa o cidadão a liberdade para escolher de forma mais ou menos ambiciosa sua posição econômica [que dependerá do montante de investimento pessoal, familiar e público na formação e qualificação deste sujeito, e consequentemente, das responsabilidades que este passa a assumir]. O que ele não faz, no entanto, é legitimar a ambição e o enriquecimento sem pagamento da contrapartida por ter chegado ao lugar onde se encontra, às custas da poupança coletiva que garante àqueles cidadãos melhor posicionados o acesso aos bens que tornaram sua qualificação possível. Em outras palavras, pode-se enriquecer, sim, mas paga-se mais impostos sobre a parcela maior de riquezas acumuladas em decorrências de habilidades e saberes conquistados e desenvolvidos pela oferta pública de qualificação para o trabalho.

A justiça proposta por Rawls, nessa perspectiva, prevê a compensação individual na forma de salários, status e poder de consumo, mas, sobretudo, exige que toda a sociedade seja compensada. Tendo em vista o âmbito econômico, portanto, a liberdade corresponde a uma justiça que é baseada num ideal democrático de igualdade de oportunidades e justa distribuição de responsabilidades.

No entender de Felipe (2000), Rawls defende um modelo de justiça para contrapor-se ao liberalismo econômico, tendo em vista que este defende ser um direito natural inalienável dos ricos a possibilidade destes enriquecerem ainda mais, sem que sobre essa riqueza descomedida incida impostos. Para ele, é através da aplicação justa do montante de impostos recolhidos que se verifica o empenho do Estado democrático moderno para que a distribuição não ocorra de forma desigual. Tendo em vista que, na teoria de Rawls, “uma sociedade democrática define no espaço político público princípios que regulamentam a distribuição dos bens na estrutura básica da sociedade” (FELIPE, 2000, p. 134), o pagamento de impostos justos é a única maneira de fazer com que todos contribuam para a existência de recursos públicos a serem investidos em favor dos cidadãos, no sentido de fornecer-lhes bens previamente definidos pela vontade política como sendo bens públicos.

Também é em razão deste objetivo, de favorecer a preservação da vida coletiva com a aplicação adequada de recursos, que todo cidadão deve, por obrigação, participar do debate político público a respeito da ideia de justiça equitativa e sobre os princípios que ela contempla, ou de eleger seus representantes políticos para tal tarefa.

De fato, os princípios formulados por Rawls pressupõem que a estrutura da sociedade possa ser dividida em, pelo menos, duas partes, de modo que o primeiro princípio se aplicaria a primeira parte, e o segundo, à segunda parte. O primeiro define e garante a igualdade das liberdades entre os cidadãos, enquanto o segundo estabelece e especifica desigualdades econômicas e sociais. De modo geral, Rawls (1981, p. 68), cita como liberdades do cidadão,

a liberdade política (o direito de voto e a elegibilidade para cargos públicos) associada à liberdade de expressão e de reunião; a liberdade de consciência e de pensar; a liberdade pessoal associada ao direito à propriedade; a liberdade de não ser preso arbitrariamente e de não ser retido fora das situações definidas pela lei.

Essas liberdades básicas ou fundamentais são necessárias para que se atenda ao princípio primeiro e para se garantir, por consequência, a justiça como equidade. Ou seja, numa sociedade justa, todos os cidadãos devem ter os mesmos direitos básicos assegurados, o que representa uma proteção ao indivíduo.

Garantindo o acesso aos bens fundamentais, a liberdade é a condição política que proporciona ao indivíduo os bens dos quais necessita para realizar seu plano racional de vida em meio à sociedade na qual produz. Muitos são os bens dos quais a maioria de nós não necessita para realizar seu projeto de vida. Mas, estar impedido, por força

de um sistema injusto de distribuição, e não por escolha pessoal, de ter acesso a esses bens, não é viver em liberdade, mesmo que esse princípio esteja assegurado pela Constituição do país [...]. (FELIPE, 2000, p. 142).

Os direitos civis e políticos enfatizados por Rawls constituem, nas democracias liberais, a base dos direitos inalienáveis do indivíduo no Estado democrático de direito. Esses direitos também são inclusos numa concepção de liberdade mais ampla, como bem expressa Sônia Felipe:

Ser livre é poder ter acesso a todos os bens que, do ponto de vista do reconhecimento público, todos os seres humanos que vivem em sociedade precisam ter, sob pena de perderem sua condição de humanos e sociais. Liberdade fundamental, assim, é a faculdade de ir e vir, de pensar e de julgar, de comunicar seu projeto e de discuti-lo, de participar da discussão política pública sobre o destino do dinheiro coletado pelos impostos, de escolher representantes e de se candidatar a representar os demais, para o exercício do poder legislativo, executivo e judiciário. Liberdade fundamental é acesso à educação e qualificação profissional da mais alta qualidade, sempre com vistas a fazer com que sejam desenvolvidas e aperfeiçoadas as naturais tendências e aptidões de cada indivíduo. Jamais pode a liberdade de um servir como barreira para impedir que outro tenha acesso a esses bens fundamentais. Se todos os cidadãos exercerem as liberdades fundamentais a desigualdade desaparece. (FELIPE, 2000, p. 142).

Em Rawls, a liberdade adquire, portanto, uma compreensão que leva em conta a condição de alteridade, o outro, contrapondo-se, dessa forma, à desigualdade social e econômica. E esse princípio é o primeiro a ser atendido para que possa haver justiça equitativa.

Sob a ótica de Rabelo Junior (2011), os dois princípios formulados por Rawls, escolhidos em uma situação inicial equitativa, sustentam a justiça como equidade (fairness, no original), a qual corresponderia à tentativa de equalizar os interesses discrepantes e inevitáveis presentes na sociedade de forma equânime (fair), ou seja, de uma forma que possa ser vantajosa para todos. Esses princípios, escolhidos para reger a estrutura básica da sociedade, formam um conceito de justiça procedimental pura e equânime.

Segundo a ordem de prioridade que Rawls estabelece entre os dois princípios, o princípio da liberdade igual prevalece sobre o princípio da diferença, o que expressa uma preferência básica pelo atendimento aos bens sociais primários. Na análise de Rabelo Junior (2011), pode-se dizer que o pensamento de Rawls é o de um liberal, uma vez que, para o teórico, o princípio da oportunidade justa se sobrepõe ao princípio da diferença e a liberdade

adquire prioridade sobre o bem-estar econômico ou sobre a igualdade de oportunidades, estando-se em uma situação de bem-estar acima da luta pela sobrevivência.

Rabelo Junior (2011) destaca que, na concepção rawlsiana, estando solucionadas as questões atinentes aos direitos e liberdades básicas nas sociedades democráticas, a problemática da distribuição justa dos recursos econômicos é resolvida adotando-se o princípio da diferença, o qual aborda, no primeiro argumento, a questão da igualdade de oportunidades, e no segundo, a igualdade de acesso a cargos e funções nas instituições.

O primeiro argumento defende que “as escolhas das pessoas determinam os seus respectivos destinos e não apenas as circunstâncias em que se encontrem.” (RABELO JUNIOR, 2011, [n.p.]). Com isso, não se pode negar a uma pessoa a oportunidade de alcançar suas expectativas em função de sua origem social, étnica ou cultural, como, por ex., achar que uma pessoa negra não possa ter o cargo de comando numa grande empresa apenas por ser negra. Para Rawls, segundo Rabelo Junior (2011), a maioria das pessoas entende que os indivíduos têm oportunidades iguais, mas essa ideia não quer dizer que os indivíduos deveriam ter os seus destinos determinados pelas suas escolhas e não apenas pelos determinantes sociais.

O princípio da igualdade democrática se faz necessário, portanto, porque permite que a configuração da estrutura básica seja eficiente no sentido de atender ao princípio da diferença.

Este princípio resolve a indeterminação do princípio da eficiência, ao especificar uma posição particular segundo a qual terá de ser julgadas as desigualdades econômicas e sociais da estrutura básica. Dando por estabelecido o quadro das instituições requeridas pela liberdade igual e a equitativa igualdade de oportunidades, são justas as expectativas mais elevadas de quem estiver mais bem situado se, e só se, funcionarem como parte de um esquema que melhore as expectativas dos membros menos favorecidos da sociedade. A ideia intuitiva é que a ordem social não há de estabelecer e assegurar as perspectivas mais atraentes dos melhores situados, exceto se, ao fazê-lo, sejam em benefícios dos menos afortunados. (RAWLS, 1981, p. 78).

Desta forma, há possibilidade de obter-se o equilíbrio entre competição e consenso. Nessa perspectiva, a justiça como equidade é a forma de amparar os socialmente desfavorecidos, corrigindo as desigualdades sociais. Desta forma, Rawls enfatiza a necessidade e urgência de uma justiça que esteja alinhada aos menos favorecidos e mostra-se convicto de que a sua teoria pode tornar uma sociedade justa e igualitária. O autor defende a

ideia de que, somente com o acesso justo a todos os bens, o indivíduo pode usufruir o mais valiosos de todos os bens: a auto-estima, enquanto sentido de nosso próprio valor.

A auto-estima, segundo Felipe (2000, p. 143-144), “resulta da convicção profunda de se respeitado pelo poder público, e de saber que esse é o respeito que lhe assegura condições de vida digna.” Reafirma-se, assim, o valor moral inalienável do sujeito humano, que é a liberdade para se desenvolver e realizar seu projeto de vida, de modo pleno, em meio ao projeto de vida de todos os demais que possuem também condições de fazê-lo, em igualdade de condições e responsabilidades.