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Ética, justiça e equidade: uma leitura à luz dos preceitos teóricos do neocontratualismo de John Rawls

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VALDIR GRANIEL KINN

ÉTICA, JUSTIÇA E EQUIDADE: UMA LEITURA À LUZ DOS PRECEITOS TEÓRICOS DO NEOCONTRATUALISMO DE JOHN RAWLS

Ijuí (RS) 2013

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VALDIR GRANIEL KINN

ÉTICA, JUSTIÇA E EQUIDADE: UMA LEITURA À LUZ DOS PRECEITOS TEÓRICOS DO NEOCONTRATUALISMO DE JOHN RAWLS

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientador: Professor MSc. Luiz Paulo Zeifert

Ijuí (RS) 2013

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Dedico este trabalho à Élida e ao Bento: a primeira pela sua dedicação à família e pelo desenvolvimento de um senso de justiça e solidariedade construído ao longo de sua trajetória de quase oitenta anos; ao segundo por representar a perspectiva de futuro e reacender em mim a noção de justiça e responsabilidade para com as gerações futuras, tendo em vista sua tenra existência.

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AGRADECIMENTOS

A todos meus colegas e professores que contribuíram para minha formação durante esta etapa acadêmica.

Ao professor Luiz Paulo Zeifert,

orientador deste trabalho.

De forma muito especial à Cândida, minha companheira. Uma pessoa/mulher que, pela sua presença e interlocução, me ajudou a reinventar e reencantar-me pelas noções de compartilhamento, dedicação e fidelidade.

Alguém que se revelou uma intensa

interlocutora do meu universo teórico e uma grande parceira de produção. Muito obrigado

por compartilhar sua capacidade e

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RESUMO

Esta monografia apresenta uma análise das relações entre os conceitos de ética, justiça e equidade a luz dos preceitos teóricos do neocontratualismo de John Rawls, tendo como objetivo central refletir conceitualmente a noção de justiça e, em especial, dos conceitos de equidade e desobediência civil presentes em sua obra. Para atender os objetivos propostos, optou-se em realizar uma pesquisa de caráter bibliográfico/conceitual, considerando-se que o edifício conceitual postulado por Jhon Rawls permite-nos pensar uma perspectiva abrangente da justiça e lança luzes na reflexão sobre os problemas sociais, sobretudo no que diz respeito à questão dos direitos dos menos favorecidos. Os escritos de Rawls se constituem como um grande referencial político e teórico-filosófico-jurídico para se pensar a questão da justiça e suas implicações referências no âmbito do direito.

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ABSTRACT

This monograph presents analysis of the relationships between the concepts of ethics, justice and fairness the light of the theoretical precepts of the neocontractualism of John Rawls, having as central objective conceptually reflect the notion of justice and especially of the concepts of fairness and civil disobedience present in his writings. To attend the proposed objectives it was decided to conduct a search bibliographic/conceptual considering that the building concept postulated by Johnn Rawls allows us to think a comprehensive perspective of justice and throws light reflection on social problems particularly in respect to the question of the rights of the underprivileged. Rawls‟s writings constitute as a great reference political and theoretical-philosophical-juridical to think about the question of justice and their implications references within the framework of law.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 7

1 ESTADO, PODER E JUSTIÇA NO CONTRATUALISMO MODERNO ... 13

1.1 Conceitos fundamentais da teoria contratualista moderna ... 13

1.2 A noção de contrato social na teoria jusnaturalista ... 17

1.3 Sobre o estado de natureza ... 18

1.4 Estado, poder e justiça na perspectiva Hobbesiana e Rousseauniana ... 20

2 ELEMENTOS DE ÉTICA, POLÍTICA E DIREITO NA CONTEMPORANEIDADE ... 30

2.1 A ética como constituinte da noção de politicidade ... 30

2.2 O divórcio entre a ética e a política na modernidade ... 38

2.3 A cisão entre direito e justiça no mundo contemporâneo ... 48

3 A TEORIA DA JUSTIÇA DE JOHN RAWLS ... 55

3.1 A origem do conceito de justiça em Rawls ... 56

3.2 Os princípios de justiça como equidade ... 65

3.3 A desobediência civil como elemento de perfectibilização do direito ... 72

CONCLUSÃO ... 81

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INTRODUÇÃO

A reflexão sobre a ideia de ética, política e justiça ocupa, desde a antiguidade grega, um espaço relevante na cultura e na tradição teórica ocidental. Na modernidade, a teoria designada como “contratualista” ou “jusnaturalista” tornou-se um marco teórico fundamental no debate em busca da justificação e fundamentação da legitimidade do poder e, por consequência, da perspectiva de ética e de justiça. Deste modo, o estudo e a reflexão sobre as formas e estruturas organizacionais da sociedade e do Estado, bem como de suas justificações ético/políticas, são de suma importância para a teorização do direito e a efetivação da justiça.

De acordo com Simmonds (2002), os debates modernos em filosofia do direito concentram-se, muitas vezes, no processo de arbitragem, em especial nas questões de saber em que medida os juízes podem apoiar-se em seus juízos morais pessoais e até que ponto esses juízos estão limitados à aplicação das normas técnicas legais.

A partir da filosofia do direito, discutem-se problemas concernentes à relação entre direito e moralidade, ao estatuto lógico das proposições do direito, à possibilidade de separar arbitragem da política e à distinção entre direito e força organizada. Demarca-se, aqui, uma inscrição na tradição do direito natural que chama a atenção para o enraizamento do direito em noções de justiça e do bem-comum.

Mais do que um conjunto de disposições governamentais pelo qual se regulam as transações práticas da vida e formas de conduta, o direito possui uma natureza, ocupa um papel especial na vida política moderna. Compartilha-se a ideia do direito como uma “aspiração moral” (SIMMONDS, 2002, p. 390), vinculada a outros valores, como a liberdade

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e a justiça, portanto, não limitado ao seu aspecto mundano (de aplicação prática). É isso que permite dizer que o direito impõe obrigações e confere direitos.

Na esteira do que afirmam alguns dos estudiosos do direito, sob o viés da filosofia, pode-se afirmar que a reflexão filosófica do direito pode ser desenvolvida no sentido de procurar-se uma compreensão reflexiva de nossas próprias práticas, a partir da adoção de uma atitude interpretativa. Não se reduz, portanto, a uma busca por uma definição semântica da lei, nem a busca por um conceito universal de direito.

O direito é tratado aqui, portanto, no campo da filosofia do direito que pode ser chamada de jurisprudência analítica. Ao contrário do campo da jurisprudência normativa, que visa oferecer prescrições, a jurisprudência analítica se propõe a analisar conceitos, incluindo o conceito de direito e justiça.

Nesse sentido, este trabalho monográfico oferece, como tema de pesquisa, uma análise das relações entre os conceitos de ética, justiça e equidade a luz dos preceitos teóricos do neocontratualismo de John Rawls.

Vinculada a essa temática, apresenta-se como problematizações a serem tratadas, as implicações teórico/política/jurídicas do conceito de equidade como matriz referencial da ideia de justiça, visando uma sociedade bem ordenada. Nessa perspectiva, questiona-se: pode o conceito de equidade sustentar a ideia de justiça social? É legítimo o uso da desobediência civil como instrumento de perfectibilidade da justiça? Ainda, qual a contribuição da teoria contratualista na análise das formas de legitimação ético-jurídica do poder estatal?

Diante disso, como hipótese central, supõe-se que seja possível sustentar a importância conceitual do estudo das teorias contratualistas modernas, tendo em vista o fato peculiar de que a perspectiva ético/política/jurídica engendrada por elas permite uma justificação estritamente racional do universo político e, por consequência, de suas dimensões jurídicas.

A desobediência civil como mecanismo político-jurídico que visa à restauração da justiça frente a uma legislação inadequada e injusta, constituindo-se como aliada na manutenção e no fortalecimento das instituições estatais. Nesse sentido, o fato de os cidadãos responderem à violação das liberdades fundamentais mediante recurso à desobediência civil

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significa o reforço dessas liberdades. Sendo assim, a desobediência civil é uma forma de introdução, dentro dos limites da fidelidade ao Direito, de um mecanismo de último recurso que mantenha a estabilidade de uma Constituição justa.

A equidade como um instrumento referencial para a promoção da justiça, uma vez que a igualização como forma de promover justiça é um equívoco histórico já demonstrado.

A relevância de tal assunto e suas problemáticas, em termos de pesquisa acadêmica, é justificada pelo fato de que, tanto no âmbito social quanto acadêmico, há uma tendência a relegar a um plano inferior e quase desnecessário a preocupação com a reflexão acerca da desconexão entre a dimensão teórico-conceitual da justiça e sua dimensão empírico/prática. Além disso, abordar o direito a partir da perspectiva teórico-filosófica significa trazer à tona uma fundamentação essencial para pensar/refletir sobre a ideia de justiça, especialmente no momento histórico em que vivemos onde predomina a ideologia do individualismo e do consumo exacerbados.

Em nível formativo/acadêmico as preocupações cada vez mais tendem às questões técnico-profissionais e à busca pela realização dos objetivos individuais, sem o necessário compromisso com as grandes mazelas sociais que historicamente constituíram-se de profundas injustiças até hoje intocáveis. Refletir conceitualmente as noções ético-teóricas de justiça, nesse sentido, pode contribuir significativamente para uma formação acadêmico/profissional lastreada de preocupações não restritas aos âmbitos técnico-profissionais e de realizações pessoais, mas com um caráter alargado de cidadania, na perspectiva de um maior engajamento visando à efetividade da justiça e não apenas do direito instituído/formal.

A decisão de empreender um trabalho de monografia na área da filosofia do direito refletindo acerca dos conceitos de ética, justiça e equidade implica uma inscrição no lugar de discussões teóricas que nos permitem melhor compreender as ideias de construção, justificação e legitimidade do direito, bem como do poder e suas implicações no âmbito político/jurídico. Para tanto, o trabalho busca ancoragem teórica em autores que se inscrevem na vertente teórica do contratualismo/jusnaturalismo, como Hobbes e Rousseau, filósofos que se tornaram referências desta perspectiva teórica na modernidade, e John Rawls, autor

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contemporâneo que procurou desenvolver uma justificação moral do direito incluindo-se assim num conceito amplo de jusnaturalismo, podendo ser denominado neocontratualismo.

Rawls oferece um edifício teórico rico para este tipo de debate, sendo sua obra Uma teoria da justiça, publicada originalmente em 1971, considerada por vários autores como uma das mais influentes e importantes obras de filosofia política do século XX. O livro foi escrito na sequência à grande polêmica dos movimentos de direitos civis que ocorreu em meados dos anos de 1960, e é reconhecido como uma grande teoria geral sobre a justiça no mundo contemporâneo.

John Rawls trouxe novas e importantes contribuições para o debate sobre o tema da justiça que, embora milenar, não encontra um entendimento unânime. Como bem analisa Rabelo Junior (2011), Rawls reconhece a impossibilidade de existir uma unidade de pensamento a respeito de justiça – já que pessoas, culturas e sociedades são diferentes no tempo e espaço – e exatamente por isso sustenta a necessidade de se estabelecer um consenso sobre justiça. Seus escritos mostram que o conceito de justiça é relativo, devendo prevalecer o entendimento da maioria daqueles que com ela convivem.

O conceito de justiça postulado por Rawls (1981) procura resolver os conflitos gerados na sociedade pela distribuição de bens oriundos da cooperação social. Então, ele formula sua Teoria da Justiça entendida como uma teoria do direito da sociedade civil, concebendo o conceito de justiça como equidade. A justiça como equidade corresponde a uma concepção política de justiça, que tem como objetivo regular a sociedade através de acordos de cooperação justos entre seus membros. Segundo Rawls, a justiça como equidade constitui-se em tratar de forma igual os iguais e de maneira desigual os desiguais. A igualdade, na perspectiva rawlsiana, encontra-se na origem da constituição do contrato social, ou seja, na posição original.

Deste modo, o aparato conceitual trazido por John Rawls permite-nos pensar uma perspectiva abrangente da justiça e joga luzes na reflexão sobre os problemas sociais, em especial, as questões dos direitos dos menos favorecidos. Nesse sentido, a obra de Rawls se constitui como um grande referencial político e teórico-filosófico para se pensar a questão da justiça e suas implicações referências no âmbito do direito. Podem ser retirados grandes

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ensinamentos de sua obra, ainda que sujeitos às mudanças sociais e políticas da contemporaneidade.

O trabalho monográfico tem como objetivo geral, refletir conceitualmente a noção de justiça a partir da perspectiva teórica neocontratualista de John Rawls, em especial, dos conceitos de equidade e desobediência civil presentes em sua obra. De modo específico busca atingir quatro objetivos:

1) Descrever, no âmbito da teoria contratualista moderna, em especial a partir de Hobbes e Rousseau, o processo de constituição do corpo político (o Estado moderno) e as noções de poder e de direito;

2) Analisar o conceito de desobediência civil e suas contribuições para o aperfeiçoamento de legislações pouco justas;

3) Refletir sobre as dimensões e possibilidades da ética, da política e do direito na constituição de uma ideia de justiça na contemporaneidade;

4) Investigar o conceito de equidade na perspectiva rawlsiana neocontratualista e suas contribuições para a atualização da noção de justiça no Estado de direito contemporâneo.

Para dar conta do atendimento aos objetivos propostos, optou-se em realizar uma pesquisa de caráter bibliográfico/conceitual, realizado a partir de fontes bibliográficas disponíveis em meios físicos e virtuais.

O trabalho está estruturado em três capítulos, além de introdução e considerações finais como elementos textuais, e as referências enquanto elemento pós-textual. No primeiro capítulo discute-se a relação entre Estado, poder e justiça a partir do contratualismo moderno. São apresentados os principais conceitos desta teoria, como a noção de contrato social e estado de natureza, além de um breve comparativo entre a perspectiva Hobbesiana e Rousseauniana desses três elementos – Estado, poder e justiça.

No segundo capítulo, são abordados e analisados elementos de ética, política e direito tendo como foco a relação destes na contemporaneidade. Esta análise não tem a pretensão de

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ser um tratado sobre ética, política e direito. Pelo contrário, o que se deseja é levantar e problematizar alguns elementos que auxiliem ou indiquem caminhos no exercício de busca por compreensão desta complexa temática aqui proposta. Por isso, iniciamos este capítulo procurando demonstrar as relações histórica e teoricamente constituídas entre os conceitos de ética, política, Estado, lei e justiça, para posteriormente discuti-las no contexto atual, destacando-se a cisão que há entre ética e política assim como entre direito e justiça.

O terceiro capítulo ingressa na especificidade da teoria de John Rawls, partindo da gênese do conceito de justiça que este autor elabora. Também são analisados os princípios de justiça como equidade, vislumbrando-se a possibilidade da equidade servir de parâmetro ético para efetivação da justiça. No último item, a desobediência civil como elemento de perfectibilização do direito é a temática abordada.

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1 ESTADO, PODER E JUSTIÇA NO CONTRATUALISMO MODERNO

“[...] o princípio de legitimação da sociedade política é o consentimento, o que não acontece com qualquer outra forma de sociedade natural [...]” (BOBBIO, 198?, p. 36).

Na busca por teorização acerca da justiça e do direito no universo do mundo contemporâneo, do ponto de vista conceitual, é de suma importância compreender a origem da concepção que sustenta a noção do Estado moderno. Nesse sentido, faz-se necessário, mesmo que de forma parcial, reconstruir o percurso teórico de instituição e justificação do mesmo. Nessa tarefa, cumpre papel decisivo a teoria contratualista. Esta teoria processa uma inovação metodológica e argumentativa destacada, ou seja, a utilização de um método racional que permite a fundamentação da política, do Estado e, consequentemente, do direito, a partir da vontade racional dos sujeitos humanos.

1.1 Conceitos fundamentais da teoria contratualista moderna

A reflexão sobre a política, o poder e a justiça ocupou, desde os gregos da antiguidade, um espaço relevante na tradição filosófica/política do ocidente. Assim, o estudo e a reflexão sobre as formas e estruturas organizacionais da sociedade, bem como a justificação das mesmas, ocupam lugar de destaque nesta tradição.

A teoria contratualista, também designada jusnaturalismo, é um marco teórico fundamental para que possamos adentrar e compreender adequadamente as reflexões e justificações que são produzidas a partir dos séculos XVII e XVIII, sendo referências fundantes da política, do Estado e sua legitimação e, por consequência, do direito no âmbito da modernidade.

Outro aspecto significativo, que realça a importância teórica/política do estudo das teorias contratualistas clássicas modernas, está no fato peculiar de que a filosofia ética, política e de justificação do poder do Estado por elas engendradas distinguem-se da tradição aristotélica/escolástica, propondo uma nova concepção do universo político e de poder. O modelo teórico trazido pelo contratualismo rompe, por exemplo, com o modelo aristotélico que durante séculos triunfou hegemônico e inquestionável enquanto teoria do Estado. Modelo este que defendia a noção de que o homem é um ser naturalmente social e político e, portanto,

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as estruturas sociais e de poder derivavam deste mesmo princípio. A este respeito, já no primeiro capítulo da sua obra Política, Aristóteles afirma:

A comunidade formada naturalmente para as necessidades diárias é a casa [...]. A primeira comunidade de várias famílias para a satisfação de algo mais que as simples necessidades diárias constituem um povoado. [...] A comunidade constituída a partir de vários povoados é a cidade definitiva, após atingir o ponto de uma auto-suficiência praticamente completa; assim, ao mesmo tempo em que já tem condições para assegurar a vida de seus membros, ela passa a existir também para lhes proporcionar uma vida melhor. Toda cidade, portanto, existe naturalmente, da mesma forma que as primeiras comunidades; aquela é o estágio final desta, pois a natureza de uma coisa é o seu estágio final [...]. Estas considerações deixam claro que a cidade é uma criação natural, e que o homem é por natureza um animal social [...] (ARISTÓTELES, 1988, p. 14-15).

Percebe-se que o modelo aristotélico trabalha alicerçado na ideia de um processo de desenvolvimento da sociedade humana que é natural e progressivo. Do ponto de vista aristotélico, as relações de poder não são resultantes de atos humanos voluntários e deliberados, mas sim, de causas e necessidades de ordem puramente naturais.

Diferentemente, com os teóricos do contratualismo moderno, em especial a partir dos escritos de T. Hobbes, o poder político não é mais natural nem de origem divina; ele é artificial e é necessário, portanto, construí-lo e justificá-lo. Assim, o poder político e a projeção, em termos de normas jurídicas, tornam-se uma construção humana resultante das intenções e vontades dos seus artífices. Ou, como nos diz o próprio Hobbes no Leviatã, ao distinguir as formas de convivência de algumas criaturas vivas, como abelhas e formigas e a forma humana de sociabilidade:

[...] o acordo vigente entre essas criaturas é natural, ao passo que a dos homens surge apenas através de um pacto, isto é, artificialmente [...] é como se cada homem dissesse a cada homem: cedo e transfiro o meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembleia de homens, como condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isso, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. (HOBBES, 1988, p. 105).

A fim de demonstrar de forma sistematizada as diferenças básicas entre o modelo aristotélico tradicional e as inovações introduzidas pelo modelo teórico do jusnaturalismo moderno, tendo como referência os argumentos trazidos por Bobbio (1991), apresenta-se a seguir um breve quadro comparativo entre ambos:

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1) É no que diz respeito ao ponto de partida1, para a análise da origem e fundamento do Estado, que encontramos a primeira grande diferença entre os dois modelos teóricos. No modelo aristotélico, o ponto de partida da análise não é um estado de natureza genérico, no qual os homens teriam vivido antes da constituição do Estado, mas a sociedade natural originária, a família, que é uma forma específica, concreta, historicamente determinada de sociedade humana. No modelo jusnaturalista, o ponto de partida é o estado de natureza que se caracteriza como um estado não político e antipolítico.

2) Para o jusnaturalismo, entre o estado de natureza e o Estado político há uma relação de contraposição, no sentido de que o Estado político surge como antítese ao estado de natureza visando corrigir e/ou eliminar seus defeitos. No segundo modelo, esta relação de contraposição entre o elemento original, no caso a família, e a sociedade última, o Estado, não existe. O que ocorre é uma relação de continuidade, complementaridade e progressão. O homem da sociedade natural originária passa por fases intermediárias até atingir o Estado civil, não havendo assim, um processo de ruptura. O estado civil surge não como antítese do estado de natureza, mas como resultado do desfecho natural de um processo de progressividade das sociedades anteriores;

3) No que diz respeito às características básicas do estado original, em nível de jusnaturalismo, o que encontramos são indivíduos em sua pura singularidade e, portanto, não associados, porém, associáveis. Para o modelo aristotélico, os indivíduos, no seu estado originário, não se encontram isolados, pelo contrário, encontram-se reunidos em grupos organizados como é o caso das sociedades familiares. Desta forma, o Estado não pode ser concebido como uma associação de indivíduos, mas como uma reunião de famílias e/ou uma grande família;

4) Ainda no que concerne aos elementos essenciais característicos do estado de natureza, para o jusnaturalismo, o mesmo é compreendido enquanto um reino de pura liberdade e igualdade, pois os indivíduos são rigorosamente livres e iguais uns em relação aos outros. No caso do outro modelo em questão, os indivíduos, desde seu nascimento, vivem sob

1Quando nos referimos ao ponto de partida para a análise da origem e o fundamento do Estado e, designamos o estado de

natureza como sendo o elemento primeiro e original, em nível de jusnaturalismo, estamos nos referindo a sua função teórico/metodológica e não histórica pois, no jusnaturalismo, a questão central e primeira é o Estado e sua justificação e, em nome deste interesse essencial/primordial, é que os demais elementos teóricos são construídos e caracterizados. No decorrer do trabalho, ao tratarmos mais especificamente sobre o estado de natureza, teremos a oportunidade de explicitar melhor esta questão.

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relações familiares e, desta forma, o estado originário não se caracteriza como sendo uma condição de pura liberdade e igualdade. Neste, vigem as relações características de uma sociedade hierárquica como é a família, isto é, relações entre diferentes e/ou entre superior e inferior, como aquelas que, historicamente, se dão entre pais e filhos ou entre o dono da casa e os servos;

5) No modelo jusnaturalista, o processo de passagem do estado de natureza ao Estado civil dá-se através de convenções mediante atos voluntários e deliberados por parte dos indivíduos interessados e participantes deste processo. O Estado civil, neste caso, é uma construção genuinamente “artificial”. No segundo caso, uma vez que o Estado é resultado de um natural e gradual processo de evolução, não ocorrem convenções resultantes de atos livres e voluntários dos indivíduos participantes. Sendo assim, no modelo aristotélico, o Estado não pode ser compreendido enquanto um “ente artificial”, ao contrário, o Estado é, tanto quanto a família também o é, um “ente natural”;

6) Um último elemento de comparação e diferenciação entre os dois modelos, aqui brevemente trabalhados, diz respeito ao princípio de legitimação da sociedade política. Para o jusnaturalismo, o princípio básico de legitimação da sociedade política é o consenso. No caso do modelo aristotélico, a legitimação da sociedade política não se dá através do consenso, mas sim, como resultado de um estado de necessidade, derivado de um gradual processo que é próprio da natureza das coisas.

Como fica demonstrado, a teoria jusnaturalista moderna é um constructo teórico/político/jurídico fundamental na medida em que permite discutir, interpretar e construir conceitos que nos capacitem compreender os fenômenos políticos e jurídicos, em especial, os que dizem respeito à problemática que envolve a discussão acerca dos fundamentos e da natureza do Estado e a origem do poder que dele emana na perspectiva de fundamentação de um conceito de justiça.

Norberto Bobbio, ao fazer referência ao método e às inovações teóricas introduzidas pelo “modelo” jusnaturalista, afirma que a grande conquista trazida pelo conjunto dos autores jusnaturalistas foi:

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[...] a construção de uma ética racional, separada definitivamente da teologia e capaz por si mesma, precisamente porque fundada finalmente numa análise e numa crítica racional dos fundamentos, de garantir - bem mais do que a teologia, envolvida em contrastes de opiniões insolúveis - a universalidade dos princípios da conduta humana. (BOBBIO, 1994, p. 17).

Através da teoria jusnaturalista moderna, se processa uma inovação importante, qual seja: a unidade metodológica de argumentação. Assim, o método que une autores tão diversos é o método racional, ou seja, deve permitir a redução do direito e da moral (bem como da política), pela primeira vez na história da reflexão sobre a conduta humana, a uma ciência demonstrativa (BOBBIO, 1994).

Desta forma, o direito natural moderno passou a ser designado como direito racional. Isso significa que o mesmo não possui mais como base um princípio ontológico metafísico, mas busca desenvolver-se segundo critérios racionais.

1.2 A noção de contrato social na teoria jusnaturalista

Falar em Contrato Social, na perspectiva teórica aqui analisada, significa se perguntar pelo fundamento de legitimidade da sociedade civil e, por consequência, de suas normas jurídicas, pois no jusnaturalismo a legitimação reside sempre em alguma forma de contrato social, uma vez que o Estado não é mais uma realidade natural (natural é a situação de ausência do Estado). O Estado deve ser compreendido enquanto resultado de um ato voluntário e racional.

Deste modo, o contrato significa a passagem do estado de natureza para o Estado civil (jurídico), que implica a substituição da ordem natural por uma ordem artificial. Implica também, em um ato de renúncia dos direitos individuais/naturais em favor de um novo sujeito político/jurídico que passa a ser o novo titular do poder, agora reunido em um só sujeito, ou seja: “o Soberano”. É exatamente este processo de acordo contratual que designa e institui o fundamento racional da sociedade civil e suas normas jurídicas, no âmbito do contratualismo.

Temos assim, a noção articuladora da ideia de Contrato Social no âmbito do jusnaturalismo, ou seja: a noção de contrato social é a ideia de um princípio legitimador, o consenso, que é próprio da sociedade política que a distingue de outras formas de sociedade. Assim, para os dois principais teóricos do contratualismo moderno – Hobbes e Rousseau –, o

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único princípio de justificação capaz de legitimar o vínculo social é o consenso. O contrato social é a manifestação do consenso universal (SANTILLÁN, 1992).

A partir desta noção de contrato social, temos uma nova matriz teórica a orientar o pensamento político e jurídico no universo do mundo ocidental moderno. Uma matriz que indica objetivos teóricos/políticos distintos da tradição antecedente, quais sejam: construir um modelo teórico de argumentação capaz de justificar e legitimar, de forma única e racional, o processo de instituição do Estado.

1.3 Sobre o estado de natureza

O conceito ou a ideia de um estado de natureza2, quando pensado nos moldes da teoria jusnaturalista, deve ser compreendido enquanto uma construção puramente teórica3. O estado de natureza no modelo jusnaturalista é, para os autores em questão, uma espécie de recurso metodológico/argumentativo de ordem teórico/hipotética, devendo ser compreendido e analisado a luz da estrutura lógica de argumentação do modelo como um todo.

2A referência ao conceito de estado de natureza, na teoria jusnaturalista, designa uma condição universal/absoluta, posta

como elemento inicial e original de todo o processo civilizatório/político (artificial).

3Sobre a discussão quanto à historicidade ou não do estado de natureza em Hobbes, cabe uma observação. Com certeza, o

autor tem consciência e não acredita que o estado de natureza universal/absoluto, de fato, possa ter existido e tenha sido a condição original/primitiva pela qual a humanidade como um todo tenha passado antes do processo civilizatório. Porém, este autor faz referência a três situações específicas e historicamente constatáveis onde o estado de natureza, de forma particular e restrita, poderia ser identificado. Estas referências podem ser encontradas, por exemplo, no capítulo XIII do Leviatã, onde o autor diz textualmente: “Porque os povos selvagens de muitos lugares da América, [...] não possuem qualquer espécie de governo, e vivem em nossos dias daquela maneira embrutecida que acima referi. Seja como for, é fácil conceber qual seria o gênero de vida quando não havia poder comum a recear, através do gênero de vida em que os homens que anteriormente viveram sob um governo pacífico costumam deixar-se cair, numa guerra civil. [...] em todos os tempos os reis, e as pessoas dotadas de autoridade soberana, por causa de sua independência vivem em constante rivalidade, [...] o que constitui uma atitude de guerra”(HOBBES, 1988, p. 76-77). A primeira situação pode, genericamente, ser designada como pré-estatal e, refere-se a condição das sociedades primitivas ou a dos povos “selvagens” da sua época – ex. os indígenas da América. A segunda situação, a que aflige mais de perto o autor, a qual constantemente Hobbes faz referência em suas obras e, segundo ele, devemos a todo custo evita-la ou elimina-la, pois coloca em jogo a integridade do próprio Estado, podendo inclusive levar a sua dissolução, diz respeito à guerra civil. A terceira e última situação, refere-se às relações internacionais, uma vez que, na época de Hobbes, não existia nem uma Instituição interestatal, capaz de exercer um poder comum que viesse a regrar e normatizar estas relações.

Mesmo reconhecendo a existência de situações históricas, onde o estado de natureza - parcial/particular - possa ter existência efetiva – histórica –, o próprio autor refuta a ideia de um estado de natureza universal/absoluto, no qual a humanidade como um todo, originalmente, encontrava-se. Nas palavras do autor: é “verossímil” que, “desde a criação, o gênero humano jamais tenha sido inteiramente sem sociedade. Se ela não existia em algumas partes, podia existir em outras” (HOBBES apud BOBBIO, 199l, p. 36). Ou ainda: “Poderá porventura pensar-se que nunca existiu um tal tempo, nem uma condição de guerra como esta, e acredito que jamais tenha sido geralmente assim, no mundo inteiro; mas há muitos lugares onde atualmente se vive assim” (HOBBES, 1988, p. 76). Sobre esta discussão, cabe salientar ainda que é muito provável que a situação histórica vivenciada pelo autor tenha fortes influências sobre a concepção de estado de natureza – um estado de guerra de todos contra todos – que o mesmo desenvolve, uma vez que a Inglaterra da sua época encontrava-se dilacerada pela guerra civil. A realidade da Inglaterra, do tempo de Hobbes, serviu como pano de fundo, como exemplo que, necessariamente, deveria ser evitado e/ou ultrapassado. Com certeza, é a partir e contra esta realidade que Hobbes escreve. Neste sentido, Hobbes é um pensador político do seu tempo, preocupado com a transformação da sociedade a qual pertencia.

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Ao falar do “modelo jusnaturalista” e da sua estrutura dicotômica fundamental – estado de natureza - Estado civil –, Norberto Bobbio alerta para o caráter puramente teórico/hipotético desta argumentação. Escreve o autor:

Falo aqui de „modelo‟ não por vezo gratuito, ou para usar palavra de fácil consumo, mas para exprimir de modo imediato a idéia de que em realidade uma formação histórico-social como a descrita nunca existiu. Na evolução das instituições que caracterizam o Estado moderno, houve a passagem do Estado feudal ao das corporações, desde as monarquias absolutas, da monarquia absoluta ao Estado representativo, etc. A imagem de um Estado que nasce pelo consentimento recíproco de indivíduos singulares, originalmente livres e iguais, é uma concepção puramente intelectual. (BOBBIO, [198-?], p. 36).

Em consonância com Bobbio, estamos buscando demonstrar que, em nível de modelo jusnaturalista, o estado de natureza não pode ser compreendido enquanto um evento histórico, pois o mesmo não possui existência empírica. Ele existe enquanto parte constitutiva de uma estrutura teórico/argumentativa mais ampla, que pretende justificar e fundamentar racionalmente a instituição do Estado a partir da ideia de um pacto (contrato) original, baseado no consentimento dos pactuantes (contratantes).

Outro autor a corroborar esta ideia de que o estado de natureza, na teoria jusnaturalista, deve ser compreendido enquanto uma construção puramente teórica/hipotética é José F. Fernández Santillán. Segundo ele, “[...] com a expressão estado de natureza se faz referência a uma hipotética condição não-política [...]” (SANTILLÁN, 1992, p. 13).

Pode-se afirmar, então, que a existência (teórica) do estado de natureza só pode ser compreendida adequadamente quando pensada dentro de um sistema teórico mais amplo, enquanto elemento de justificação à necessidade de instituição do Estado civil, no caso de Hobbes. E também, no caso de Rousseau, enquanto elemento de reconstrução e diferenciação teórica do que é natural e do que é artificial (no caso degenerado) em nível de ser humano, para que se possa propor uma nova ordem política. Assim, só se pode pensar o estado de natureza na perspectiva e em consonância com a lógica argumentativa, presente no processo teórico de justificação da necessidade de instituição do Estado civil, para Hobbes, ou enquanto elemento de crítica à degeneração do homem na sociedade civil vigente, tendo em vista a construção de um novo modelo político social, para Rousseau.

O estado de natureza, no modelo jusnaturalista, funciona, como já afirmamos anteriormente, como elemento logicamente necessário e propulsor ao Estado civil ou,

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enquanto elemento de crítica a uma determinada forma de organização política já existente. Ele é a contraposição necessária à projeção de um Estado racionalmente constituído. Isto porque, “[...] o jusnaturalismo é uma teoria racional do Estado: somente mediante um projeto racional é possível a passagem do estado de natureza à sociedade civil [...]” (SANTILLÁN, 1992, p. 14). Em síntese, o que se está querendo frisar, é a ideia de que o estado de natureza, no modelo jusnaturalista, não pode ser pensado enquanto um fenômeno historicamente localizado e, ao analisar este conceito, não se pode fazê-lo de forma dissociada e independente da estrutura lógica/argumentativa presente na teoria jusnaturalista como um todo.

1.4 Estado, poder e justiça na perspectiva Hobbesiana e Rousseauniana

Os teóricos jusnaturalistas, como demonstrado anteriormente, trabalham com a dicotomia estado de natureza/Estado civil como base para sua argumentação. É no estado de natureza, enquanto um estado não político, carente de instituições sólidas que sejam capazes de regular as relações humanas, que se encontra o ponto de partida para a análise e justificação da origem do Estado civil (político). 4

No estado de natureza, os indivíduos são considerados enquanto singulares, não estabelecem relações políticas ou institucionais para além das relações familiares. São indivíduos não associados, no sentido político/institucional. Porém, no estado de natureza, os indivíduos são completamente livres e iguais entre si, caracterizando-se assim, por um reino de liberdade e igualdade, porém, de extrema insegurança e incapaz de promover a justiça.

De forma breve e ilustrativa, se pode afirmar que no estado de natureza hobbesiano não existem condições de falar, nem tão pouco de identificar, de forma clara e segura, o que é o meu e o que é o teu, pois todos os homens têm direito a todas as coisas, podendo fazer uso de todos os meios e recursos que dispuserem para poder possuí-las. Nesta condição, afirma Hobbes, “[...] não há propriedade, nem domínio, nem distinção entre o meu e o teu; só pertence a cada homem aquilo que ele é capaz de conseguir, e apenas enquanto for capaz de

4 Quando se fala no estado de natureza como ponto de partida para justificação do Estado civil, se está querendo dizer que do

ponto de vista metodológico ele é apresentado, pelos autores jusnaturalistas, como o elemento que dá origem ao processo argumentativo porém, não necessariamente ele (estado de natureza) deva ser compreendido como o elemento original e propulsor da teoria jusnaturalista. No decorrer do trabalho é demonstrado que a prioridade, a intenção primeira dos autores, é a construção de uma justificação racional para a instituição do Estado e, em nome desta premissa básica, constrói-se o estado de natureza.

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conservá-lo” (HOBBES, 1988, p. 77). É uma situação onde não há possibilidade de previsibilidade e segurança, constituindo-se em um “estado negativo” e como tal, impeditivo do desenvolvimento da humanidade.

Rousseau, diferentemente de Hobbes, descreve um estado de natureza como não sendo conflituoso e impeditivo da realização da vida humana. Para este autor, o estado de natureza é qualificado como o estágio original da humanidade e como tal, de plena pureza e idoneidade, estando isento de conflitos e corrupção. No estado de natureza rousseauniano, o homem vive uma condição de total irrestrição, de pura liberdade e independência, pois não existe necessidade do estabelecimento de relações interpessoais permanentes.

Para Rousseau, o erro de Hobbes ao descrever o estado de natureza foi o de não ter percebido a verdadeira condição original (natural) do homem. Somente por isso pode-se compreender porque este autor descreve um estado de natureza de conflito permanente, ou como ele mesmo afirma: um estado de “guerra de todos contra todos”. Rousseau admite que esta situação descrita por Hobbes de fato existe, porém, ela é característica da sociedade civil degenerada. “O erro de Hobbes não está em ele ter posto o estado de guerra entre os homens independentes convertidos em sociáveis se não, nele haver considerado este estado como natural à espécie, apresentando-o como a causa dos vícios dos quais, ao contrário, é o efeito” (ROUSSEAU apud SANTILLÁN, 1992, p. 112).

Rousseau insiste na ideia de que Hobbes, assim como vários outros autores, cometeram um grande equívoco ao confundir o homem natural com os homens típicos da sociedade civilizada (sociedade civil corrompida). Desta forma,

[...] pode-se dizer que Rousseau critica Hobbes em dois pontos fundamentais: na concepção do estado de natureza e na imagem da natureza humana. Rousseau considera que o estado de natureza de Hobbes [...] apresenta uma ideia fixa e imutável do ser humano. (SANTILLÁN, 1992, p. 112).

Mesmo com diferenças nas concepções de estado de natureza entre os autores analisados, é possível afirmar que o processo de passagem do estado natural ao Estado civil dá-se através de convenções que se caracterizam por atos voluntários dos indivíduos participantes que desejam abandonar o estado natural e ascender ao Estado civil (político). Sendo assim, o Estado civil é resultado da vontade livre dos homens, ele é uma construção

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genuinamente humana, criado segundo os interesses e as necessidades dos contratantes. Segundo N. Bobbio ([198-?], p. 36),

[...] o estado civil é visto como artificial – como se diria hoje, é considerado um produto da cultura, e não da natureza [...]; o princípio de legitimação da sociedade política é o consentimento, o que não acontece com qualquer outra forma de sociedade natural, e em particular com a sociedade familiar e patronal.

Hobbes e Rousseau são dois grandes clássicos da filosofia política moderna. O primeiro por ter sido o teórico a romper com a tradição aristotélico-escolástica e lançar as bases do sistema conceitual designado como jusnaturalismo moderno e reconhecidamente o primeiro autor, no âmbito moderno, a propor um novo entendimento da sociedade política, da legitimação do poder e das normas jurídicas. O segundo por ser o grande crítico e interlocutor de Hobbes e aquele que complexificou e atualizou a teoria jusnaturalista na modernidade.

Sobre a importância e as inovações teóricas/políticas/jurídicas introduzidas pelo modelo jusnaturalista, em especial a partir de Hobbes, são significativas as observações de Pierre Manent, diz este autor:

Os homens já não tinham de se guiar pelos bens ou pelo bem, mas pelo direito nascido da necessidade de fugir do mal. Na linguagem moral e política elaborada por Hobbes, e que ainda é a nossa dos dias atuais, o direito assumiu o lugar do bem. A ênfase positiva, a intensidade de aprovação moral que os antigos, pagãos ou cristãos, depositavam no bem, os modernos, depois de Hobbes, passaram a depositar no direito, no direito do indivíduo. Essa é a linguagem e o „valor‟ do liberalismo. (MANET, 1990, p. 45).

Seguindo a perspectiva contratualista, tanto Hobbes como Rousseau vão defender a noção de que o contrato significa a passagem do estado de natureza para o Estado civil, que implica a substituição da ordem natural por uma ordem artificial. Implica também, em um ato de renuncia dos direitos individuais/naturais em favor de um novo sujeito político que passa a ser o novo titular do poder, agora reunido em só sujeito, ou seja: o “Soberano”. Este é o único ente capaz de promover a paz e a justiça, de forma universal e permanente. É exatamente este processo de acordo contratual que designa e institui o fundamento racional da sociedade civil e da possibilidade de se fazer justiça, tanto em Hobbes como em Rousseau.

Hobbes ao tratar das causas, geração e definição do Estado, refere-se à necessidade deste acordo contratual entre os homens. Nas palavras do autor:

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Porque as leis de natureza (como a justiça, a equidade, a piedade, ou, em resumo, fazer aos outros o que queremos que nos façam) por si mesmas, na ausência do temor de algum poder capaz de levá-las a ser respeitadas, são contrárias a nossas paixões naturais [...]. E os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém. Portanto, [...] apesar das leis de natureza [...] se não for instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada um confiará apenas em sua própria força e capacidade, como proteção contra todos. (HOBBES, 1988, p. 103).

Em outro trecho da sua obra Leviatã, Hobbes vai insistir na necessidade do contrato original como única forma de instituição de um poder comum a todos, ao afirmar:

A única maneira de instituir tal poder comum, [...] é conferir toda sua força e poder a um homem, uma assembleia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades por pluralidade de votos, a uma só vontade. (HOBBES, 1988, p. 105).

Ao analisarmos esta mesma questão nas obras de Rousseau, vamos encontrar várias referências à necessidade de um acordo contratual entre os homens como elemento instituidor da sociedade civil. Na sua obra Do Contrato Social, o autor deixa marcada esta perspectiva ao afirmar: “A ordem social, porém, é um direito sagrado que serve de base a todos os outros. Tal direito, no entanto, não se origina da natureza: funda-se, portanto, em convenções.” (ROUSSEAU, 1987, p. 22-23).

Ao refletirmos comparativamente as concepções de contrato social desenvolvidas por Hobbes e Rousseau, percebe-se que em ambos os autores a noção de contrato social cumpre uma função teórica fundante, ou seja: construir os argumentos de legitimação para a instituição do poder civil e a necessidade de que todos os pactuantes se submetam aos ditames deste poder. Conforme Santillán (1992), a diferença entre os dois autores reside em seus diferentes sistemas de valores.

Em Hobbes, os homens no estado de natureza encontram-se em luta permanente e suas vidas estão em constante ameaça. O pacto surge então, como forma de encontrar a paz e a segurança dos indivíduos, através de uma autoridade comum que seja capaz de freiar as paixões humanas. Para o autor, o bem fundamental a ser protegido é a vida, sendo que seu sistema teórico se estrutura a partir do binômio estado de natureza (um estado de guerra e desordem) e o Estado civil (um Estado unitário fortemente ordenado através de uma sólida autoridade). Assim, o Estado civil hobbesiano é dotado de um poder extremamente forte, concedido por cada um dos participantes, e é através do medo que ele irá conformar as

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vontades particulares e garantir a paz. É um poder de caráter constrangedor das vontades particulares. Conforme afirma Hobbes:

É esta a geração daquele grande Leviatã, ou antes, (para falar em termos mais relevantes) daquele Deus mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa. Pois graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado, é-lhe conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz de conformar as vontades de todos eles, no sentido da paz em sue próprio país [...]. (1988, p. 105-106).

Para Rousseau, diferentemente, os valores fundamentais que subjazem a noção de contrato social são a liberdade e a igualdade, e sua antítese básica está formulada na oposição entre a opressão e a liberdade. O autor percebe que o pacto vigente na sociedade de sua época é o pacto proposto pelos ricos e poderosos que instituiu na ordem política da sociedade civil corrupta, a aceitação da desigualdade e da opressão e por isso é um pacto ilegítimo. Nas palavras do autor: “O homem nasce livre e por toda a parte encontra-se a ferros. O que se crê senhor dos demais, não deixa de ser mais escravo do que eles.” (ROUSSEAU, 1987, p. 22).

É diante dessa realidade que Rousseau vai propor um novo modelo de pacto, que seja capaz de instituir as condições necessárias à igualdade e à liberdade (que constitui a República). Portanto, para o autor, a questão a ser resolvida pelo pacto social é a questão da liberdade e não a da autoridade como em Hobbes. Esta preocupação de Rousseau em preservar a liberdade dos cidadãos fica patente em sua obra Do Contrato Social, ao afirmar:

Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece, contudo, a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes. Esse problema fundamental cuja solução o contrato social oferece. Enfim, cada um dando-se a todos não se dá a ninguém e, não existindo um associado sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo, se ganha o equivalente de tudo que se perde, e maior força para conservar o que se tem. (ROUSSEAU, 1987, p. 32-33).

Mesmo com as diferenças de valores que embasam a instituição do contrato social nos autores em questão, percebe-se que em ambos a intenção é a mesma, ou seja, a constituição de um princípio legitimador do poder, capaz de garantir a ordem social, a paz e promover a justiça. Fica evidente que fora do Estado (político/jurídico) não há possibilidade de realização da justiça.

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Ao analisar as condições válidas para que o consenso universal se estabeleça (contrato), novamente se percebe que os autores possuem referências diferentes e, por isso, divergem significativamente. Hobbes aceita e considera legítimos (justos) os Estados por instituição e também os Estados por aquisição. Já Rousseau, só aceita como legítimos e justos apenas os Estados por instituição, pois estes são os únicos que possuem um consenso efetivo e não são construídos através da força como nos Estados por aquisição. Esta postura teórica de Rousseau se justifica no entendimento de que força e direito não são compatíveis, pois “da força não se pode derivar nenhum direito” (ROUSSEAU, 1987, p. 26). De modo diferente, Hobbes admite esta possibilidade ao aceitar como válido o pacto feito entre o vencedor e o vencido. Segundo o autor,

Um Estado por aquisição é aquele onde o poder soberano foi adquirido pela força. [...] Esta espécie de domínio ou soberania difere da soberania por instituição apenas num aspecto: os homens que escolhem seu soberano fazem-no por medo uns dos outros, e não daquele a quem escolhem, e neste caso submetem-se àquele de quem tem medo. Em ambos os casos fazem-no por medo, o que deve ser notado por todos aqueles que consideram nulos os pactos conseguidos pelo medo da morte ou da violência. [...] Mas os direitos e consequências da soberania são os mesmos em ambos os casos. (HOBBES, 1988, p. 122).

Apesar das diferenças significativas nos pressupostos de validação do Estado civil entre os autores, e por consequência, dos critérios de justiça que vão embasar o contrato original, o importante é demonstrar que, na perspectiva filosófica e do direito político, ambos demonstram a preocupação e a necessidade de justificação racional para a instituição do poder político e do direito que daí emana. Nesta mesma perspectiva, esta configuração teórica/justificadora permite aos autores instituir uma diferenciação conceitual importante e com fortes repercussões em nível filosófico/jurídico, qual seja: a diferenciação de grau em termos sociais organizativo entre o conceito de multidão e o de povo. Este segundo conceito (povo) está em um patamar diferenciado e elevado em relação ao primeiro, pois é o que vai permitir vislumbrar o nascimento da noção de Estado Moderno e suas respectivas configurações. Distinção esta que fica bem demarcada nos dois autores, como se pode perceber nas seguintes passagens:

Constitui um grande perigo para o governo civil, em especial o monárquico, que não se faça suficiente distinção entre o que é um povo e o que é uma multidão. O povo é uno, tendo uma só vontade, e a ele pode atribuir-se uma ação; mas nada disso se pode dizer de uma multidão. Em qualquer governo é o povo quem governa. (HOBBES, 1992, p. 211)

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Para Rousseau (1987, p. 30),

Haverá sempre grande diferença entre subjugar uma multidão e reger uma sociedade. Sejam homens isolados quantos possam ser submetidos sucessivamente a um só, e não verei nisso senão um senhor e escravos, de modo algum os considerando um povo e seu chefe. Trata-se, caso se queira, de uma agregação, mas não de uma associação; nela não existe nem bem público, nem corpo político. Outros dois conceitos importantes na constituição do pacto social, em nível do contratualismo, são o da associação e o da submissão, que também servem como elementos diferenciadores das teorias hobbesianas e rousseaunianas.

A teoria hobbesiana com seu “pacto de união” abarca tanto o elemento associativo como o de submissão, pois com um único pacto cada indivíduo se obriga com todos os demais a submeter-se a vontade e a autoridade de um terceiro, de tal forma que em um mesmo ato os indivíduos se associam e se submetem simultaneamente, ou como nos diz o próprio Hobbes (1988, p. 107):

Diz-se que um Estado foi instituído quando uma multidão de homens concorda e pactua cada um com cada um dos outros, que a qualquer homem ou assembleia de homens a quem seja atribuído pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles (ou seja, de ser seu representante), todos sem exceção, tanto os que votaram a favor dele como os que votaram contra ele, deverão autorizar todos os atos e decisões desse homem ou assembléia de homens, tal como se fossem seus próprios atos e decisões, a fim de viverem em paz uns com os outros e serem protegidos dos restantes dos homens.

É exatamente essa submissão comum a um terceiro que constitui o vínculo social em Hobbes.

Rousseau, por sua vez, não aceita a ideia de submissão. Para ele, o contato social implica na renuncia total dos direitos individuais e do uso da força individual, em favor da coletividade que cada um faz parte. Isso faz com que ninguém esteja submetido a um terceiro. Assim, o contrato abarca apenas o elemento associativo, fazendo com que o poder soberano permaneça com a totalidade dos indivíduos, resguardando a liberdade. É isso que permite a Rousseau afirmar que a liberdade e a autonomia política consistem em cada indivíduo dar leis a si mesmo, enquanto participantes do corpo soberano. É em função desta concepção que Rousseau vai defender a república como única forma legítima de Estado, pois somente nela a soberania popular está garantida.

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É possível afirmar que o objetivo fundamental de Rousseau é associar os indivíduos e, assim, evitar a dependência pessoal. Eis porque ele define que somente o povo pode ser o legítimo detentor da soberania e que as leis e o direito devem nascer da vontade dos indivíduos. Deste modo, em sua teoria, liberdade civil coincide com autolegislação. Nas palavras do autor: “Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece, contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes.” (ROUSSEAU, 1987, p.32). Hobbes, ao contrário, admite outras formas de Estado como legítimas e chega a demonstrar, em certos momentos, certa preferência pela monarquia.

Apesar destas diferenças quanto ao conteúdo a ser abarcado pelo contrato social, Hobbes e Rousseau concordam com uma questão que é fundamental e anterior a esta. Para ambos, somente o pacto social pode ser o elemento legitimador de qualquer sociedade e de qualquer poder político e jurídico. Os dois autores estão preocupados em fundar e legitimar o “direito de mando”; divergem, porém, quanto à concepção, à finalidade e o significado do mesmo. No entanto, para os dois teóricos o contrato cria sempre uma “pessoa pública” que concentra em si todas as pessoas naturais. Em Hobbes, a “pessoa pública” é o “príncipe” e em Rousseau, é a “assembleia popular”.

Para que possamos compreender adequadamente a filosofia política do contratualismo, é preciso estar atentos ao fato de que a filosofia ética/política engendrada por ele distingue-se da tradição aristotélica/escolástica, propondo uma nova concepção do universo político.

No contratualismo, o poder político não é mais natural; ele é artificial e é preciso fabricá-lo. O poder torna-se uma construção humana, resultante das intenções e vontades dos seus artífices, como nos afirma o próprio Hobbes no seu Leviatã, ao distinguir as formas de convivência de algumas criaturas vivas, como abelhas e formigas da forma humana de sociabilidade:

[...] o acordo vigente entre essas criaturas é natural, ao passo que o dos homens surge apenas através de um pacto, isto é, artificialmente [...] e como se cada homem dissesse a cada homem: cedo e transfiro o meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembleia de homens, como condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isso, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. (HOBBES, 1988, p. 105).

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Assim, pode-se perceber que com os contratualistas se cria e se desenvolve os fundamentos de uma nova arte política e uma nova base teórica para se pensar o direito, onde os homens não são mais reféns do “destino” e também, não estão mais sujeitos às maquinações dos deuses. Estão entregues às suas próprias “vontades”, mediadas apenas pelas suas intenções e capacidades nacionais. Essa condição de liberdade e racionalidade é que nos permite afirmar que, do ponto de vista político/filosófico, os homens estão livres para serem os artífices das suas próprias histórias, tornando-se autônomos e emancipados politicamente. O homem é, a partir do contratualismo, o único responsável pelas regras e leis que impõem a si mesmo.

Essa nova realidade filosófico/política determinada pela teoria contratualista foi muito bem assinalada por Rousseau, quando ele trata do processo de instituição do Estado civil e a saída do homem do estado de natureza. A este respeito, ele assim referiu:

A passagem do estado de natureza para o estado civil determina no homem uma mudança muito notável, substituindo na sua conduta o instinto pela justiça e dando às suas ações a moralidade que antes lhes faltava. É só então que, tomando a voz do dever o lugar do impulso físico, e direito o lugar do apetite, o homem, até aí levando em consideração apenas sua pessoa, vê-se forçado a agir baseando-se em outros princípios antes de ouvir suas inclinações. [...] suas faculdades se exercem e se desenvolvem, suas ideias se alargam, [...] toda sua alma se eleva [...] e fez de um animal estúpido e limitado, um ser inteligente e um homem.

[...]

Poder-se-ia, a propósito do que ficou acima, acrescentar à aquisição do estado civil a liberdade moral, única a tornar o homem verdadeiramente senhor de si mesmo, porque o impulso do puro apetite é escravidão, e a obediência à lei que se estatui a si mesma é liberdade. (ROUSSEAU, 1987, p. 36-37).

Diante dos argumentos apresentados, é possível afirmar que, com o advento da teoria contratualista, torna-se possível justificar o Estado a partir da vontade racional dos homens, o que permite pensar o homem e sua ação ético/política/jurídica a partir de um novo horizonte, qual seja: o do consenso racional entre os homens, que se expressa através do “contrato social”. Essa nova situação teórica torna o homem mais livre e também mais responsável por suas ações.

Por fim, a partir do referencial trazido por Hobbes e Rousseau, fica evidente que o único ente capaz e legítimo de poder é o Estado, seja na figura do “Soberano”, no caso de Hobbes, ou na ideia da vontade geral, no caso de Rousseau. Para a teoria jusnaturalista, o Estado, enquanto Estado-razão, torna-se único e absoluto em matéria de poder e ordenamento

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jurídico, pois esta é a condição básica para que o direito fundamental de natureza – preservação da própria vida – possa ser efetivada e garantida em meio às relações exigidas pela vida em sociedade. Desta forma, a absolutização do poder do Estado não deve ser compreendida como o pressuposto básico, do qual parte a teoria jusnaturalista. Ela surge e se impõe como consequência lógico/necessária do processo de racionalização do próprio Estado, como forma de despersonificação e laicização do poder e das leis e da justiça que dele emana.

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2 ELEMENTOS DE ÉTICA, POLÍTICA E DIREITO NA CONTEMPORANEIDADE

“O ethos como lei é, verdadeiramente, a casa ou a morada da liberdade.” (Vaz, 1988, p. 16).

Refletir sobre a relação intrínseca entre ética e política, um legado da tradição grega no ocidente, é fundamental para se compreender o percurso histórico e teórico que promoveu o processo de esgaçamento e cisão dessas duas dimensões, antes inseparáveis. É com este intuito que se busca, num primeiro momento, retomar a noção de ética como constituinte necessária da política desde a visão clássica.

Os conceitos de ética e política, na forma como a tradição filosófica Grega originalmente os havia pensado, não são conceitos distintos que possam ser instituídos de forma desarticulada ou antagônica. Pelo contrário, a ética constitui a política, possibilitando a relação entre política e justiça sob a forma de leis. Nesse sentido, refletir sobre essa relação implica articular a ela o conceito de justiça. Na tradição clássica do pensamento ocidental, portanto, esses elementos – ética, política e justiça – não devem ser pensados de modo dissociado, pois constituem-se como condições essenciais para uma vida livre e justa.

2.1 A ética como constituinte da noção de politicidade

De acordo com Manfred A. Oliveira (1993), o problema ético na vida humana é tematizado pelos filósofos gregos a partir de uma intuição básica: a de que o homem, para ser homem, necessita conquistar seu ser pelo exercício e empenho de sua própria liberdade. Essa questão de fundo, conforme explica o autor, é pensada pela tradição clássica de pensamento a partir de uma matriz cosmocêntrica que, tendo como pano de fundo uma teoria da realidade em sua totalidade, entende o mundo como se as coisas existentes e o próprio ser do homem estivessem inseridos em uma ordem natural e imutável. Nessa perspectiva, a determinação do homem é pensada como já estabelecida, como essência eterna, uma configuração que permanece imutável em todas as mudanças do existir histórico do homem. No entanto, a essência deste ser deve ser buscada pelo homem no exercício de sua liberdade.

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O paradigma do eterno, que fundamenta a metafísica5, é pensado por Platão a partir da problematização da política. De acordo com Oliveira (1993), a morte de Sócrates fez Platão concluir que a vida política em sua empiricidade estava corrompida. Com isso, ele dedica-se à procura da norma imutável que deve regrar a vida política empírica, o Estado, perguntando-se sobre a verdade do homem, sobre a essência imutável. Essa essência, em seu pensamento, só poderia ser constituída no “mundo das ideias”. Diferente do “mundo empírico”, este paradigma seria imutável, portanto não-histórico, mas deveria ser sempre buscado pelo homem na ação política. Com isso, o sentido ético, na vida humana, que permite a universalização do indivíduo tornando-o ser do homem, passa a ser compreendido a partir de normas pré-existentes e pré-determinadas pela ordem cósmica imutável, vinculando ética à cosmologia e à metafísica clássica.

A essência, afirma Oliveira (1993, p. 14), “serve de paradigma, instância de julgamento, critério de medida para tudo o que o homem faz em seu agir concreto”. É a própria ordem imutável do real, aquilo que estabelece ao homem o lugar que ele ocupa no mundo, tal como um princípio primeiro. No entanto, a essência do ser homem deve ser buscada pelo homem pela efetivação de sua liberdade. Nesse sentido, o homem como ser-livre é aquele que, em sua vida histórica, efetiva sua própria essência, isto é, atinge a universalização, torna-se ser do homem “à medida que se deixa guiar pelos paradigmas eternos da ordem cósmica, que se vai exprimir na convivência humana como o „mundo das leis‟.” (OLIVEIRA, 1993, p. 15).

Para os gregos, o natural imutável é a comunidade, de modo que a essência humana só pode ser constituída na sociabilidade. A efetivação da essência, a conquista/realização plena do ser-homem só é possível na pólis, na comunidade política:

[...] para o pensamento clássico, a situação natural do homem não é uma existência pré-política, mas precisamente a vida em sociedade, a vida inserida na comunidade política, pois aí é o lugar de sua auto-realização como ser livre. O Estado, a pólis, entendida como a comunidade dos homens iguais e livres, era, para os gregos, a condição de possibilidade de liberdade do homem. (OLIVEIRA, 1993, p. 21).

5 Oliveira (1993) explica que a metafísica distingue o ente e a essência, o fato (o ser) e a norma (o dever-ser); ela olha para o fato a partir da norma, que é a priori, que é captada pela razão, transformando o caos da facticidade em cosmos.

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Nessa perspectiva, Platão buscou “uma organização racional da vida em comum, entendendo-se racional não o sentido da razão instrumental e funcional, como razão tecnológica, mas como razão ética.” (OLIVEIRA, 1993, p. 41). A política, para ele, não se reduz à administração de coisas; ela se refere à organização da vida humana a partir de normas. Em seu entendimento, sem a ética, a política pode transformar-se em repressão.

Para Platão, somente através da política o homem pode chegar à perfeição, uma maneira de viver que, caracterizada pela auto-reflexão, lhe permite atingir o bem que lhe é próprio, a felicidade. O ético, nesse sentido, é ser bom, que é o mesmo que ser feliz. E o que vale para o indivíduo, vale também para a pólis. Assim, a felicidade da pólis é a felicidade de todos seus cidadãos. No entanto, conforme adverte o autor, é preciso distinguir o bem do homem e o bem da pólis.

Giovanni Reale (1994) descreve que, para Platão, toda forma de política autêntica deve ter em vista o bem do homem. No entanto, ao conceber o homem como alma, para ele o verdadeiro bem tem a ver com a espiritualidade. Essa demarcação o faz distinguir entre a política verdadeira e a falsa, cujos objetivos também seriam distintos: “a verdadeira política deve ter em vista o „cuidado da alma‟ (o cuidado do verdadeiro homem), enquanto a política falsa tem em vista o corpo, o prazer do corpo e tudo o que é relativo à dimensão inautêntica do homem” (REALE, 1994, p. 238). Isso acontece porque, na Grécia Antiga, entendia-se o Estado (ou a pólis) e suas leis como o paradigma, o horizonte absoluto da vida do homem, isto é, o indivíduo era o cidadão assim como o valor e a virtude do homem era o valor e a virtude do cidadão. O Estado era o responsável, a fonte de todas as normas que organizavam e regulavam a vida do indivíduo. Neste sentido, a lei, enquanto emanada do Estado/pólis, é a expressão da justiça, devendo, necessariamente, ser respeitada. 6

Num primeiro momento, fica evidente, na teoria platônica, que o indivíduo não existe sem a pólis, é totalmente dependente desta: “o indivíduo é impensável sem a pólis, a pólis é o útero que o gera, pois sua formação e educação, tudo que é ele o deve à pólis e às suas leis” (OLIVEIRA, 1993, p. 42). Ou seja, ao partir da pólis, o indivíduo tem uma relação de lealdade para com a pólis. Por outro lado, o indivíduo conserva sua superioridade em relação

6 Aqui é importante lembrar do julgamento de Sócrates pois este, mesmo tendo a oportunidade do exílio, preferiu se submeter ao julgamento e cumprir aquilo que determinava as leis da cidade.

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