• Nenhum resultado encontrado

III. PRESSUPOSTOS NECESSÁRIOS À ADMISSIBILIDADE DA AÇÃO

3.2. Pressupostos específicos da ação rescisória

3.2.2. Coisa julgada

3.2.2.7. A coisa julgada hoje: tendências relativizadoras

Até pouco tempo atrás, o instituto da coisa julgada bem parecia um mito em nosso ordenamento: firme, forte, impérvio, inabalável. Na verdade, de acordo com o direito positivo vigente, ainda é. De fato, passado o biênio decadencial da rescisória, após o trânsito em julgado da sentença, nada tem o poder de flexibilizar ou “relativizar”163 a coisa julgada, sobrepondo-a para alcançar a sentença por ela protegida, mesmo que contenha (a sentença) vício evidente. Fala-se, por isso, na coisa julgada como “sanatória geral”, como se ela constituísse remédio para todos os males e tivesse o poder de extirpar todos os vícios porventura existentes na sentença após tornar-se “soberana” (quando expirado o prazo da ação rescisória).

Assalta-nos, neste passo, uma primeira indagação: por que haveria a necessidade de se alterar tal perfil clássico da coisa julgada, flexibilizando-a, se sua função essencial é, justamente, garantir a segurança nas relações jurídicas? A resposta vem clara e objetiva, a título de esclarecimento inicial: porque o valor segurança não é o único que merece ser preservado; há outros, de igual ou maior grandeza, que devem ser protegidos, sob pena de se ferir frontalmente a nossa Lei Fundamental e desarmonizar o sistema. Afinal, é cediço que os princípios não têm um valor em si mesmos, mas se complementam para formar a base do nosso sistema jurídico.

Para o nobre processualista Ovídio Baptista da Silva, baseado em ensinamentos do sociólogo Zygmunt Bauman, vivemos uma era que pode ser denominada “modernidade líquida”, em contraposição à “primeira

nele que passa residir o julgamento da causa e, conseqüentemente, poderá o acórdão passar em julgado, jamais a sentença” (Instituições de direito processual civil, v. III, p. 310). 163 Expressão que está sendo mais usada pelos doutrinadores.

modernidade”, na qual tudo é feito para ser desfeito, sem a intenção de recomposição, vigente na época anterior. “Tudo o que nossa ‘modernidade líquida’ é capaz de construir nasce com o selo da provisoriedade, para ser logo demolido”, diz Ovídio. E, nesse ínterim, procura delinear uma razão para a redução do alcance da coisa julgada na época atual:

Neste quadro cultural, não deve surpreender que a instituição da coisa julgada, tida como sagrada na “primeira modernidade”, entre em declínio. O fenômeno obedece à lei que tem presidido o mundo moderno. Não deixa, porém, de ser curioso que o ataque à coisa julgada provenha da própria modernidade, levando em conta que a instituição fora concebida para atender à exigência primordial de segurança jurídica, condição básica para o desenvolvimento econômico, aspiração também moderna. A coisa julgada, exageradamente abrangente, foi a âncora jurídica que possibilitou a construção do “mundo industrial”.164

Tal problemática – a flexibilização da coisa julgada – não adveio de mera elucubração teórica, mas ganhou evidência diante da ocorrência de situações impensáveis noutros tempos, que provocam extrema perplexidade, quando não revolta, nos jurisdicionados, como no caso da sentença que julga procedente a ação de investigação de paternidade e, mesmo depois de o exame de DNA comprovar o crasso engano, não pode ser alterada, por causa da coisa julgada; no caso da sentença que acarreta injustiças manifestas, que viola preceitos constitucionais, tais como a isonomia, a moralidade, a razoabilidade...

Parece que a tendência atual é se prestigiar a justiça, relativizando o valor dado à segurança proporcionada pela coisa julgada.

Consoante Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina: Trata-se, isto sim, de uma certa desmistificação da coisa julgada. Ao que parece, o instituto da coisa julgada, tal qual vinha sendo concebido pela doutrina tradicional, já não corresponde mais às expectativas da sociedade, pois a segurança, que, indubitavelmente, é o valor que está por detrás

da construção do conceito da coisa julgada, já não mais se consubstancia em valor que deva ser preservado a todo custo, à luz da mentalidade que vem prevalecendo.165

Mister se faz buscar o ponto de consenso entre os valores que embasam o sistema, de forma a não se entronizar a segurança jurídica proporcionada pela coisa julgada a ponto de se desprestigiar inteiramente outros valores de igual ou maior grandeza.

O presente tópico visa a abordar aspectos essenciais dessa controversa questão, de forma a delinear os contornos da temática, no intuito de introduzir o leitor no assunto, ou esclarecê-lo, e incitar o aprofundamento. Desse modo, adentramos na temática central, expondo as principais posições doutrinárias, nosso entendimento e uma proposta de operacionalização. Tem-se um breve apanhado geral do assunto.

A garantia da coisa julgada encontra guarida constitucional no artigo 5º, inciso XXXVI,166 e está disciplinada pela lei processual nos artigos 467 e seguintes. Tal garantia encerra a proteção ao valor da segurança nas relações jurídicas que deflui da estabilidade das decisões judiciárias. A segurança, não é demais enfatizar, proporciona tranqüilidade e, conseqüentemente, paz no meio social.

Mas a intangibilidade da coisa julgada não tem abrigo constitucional, restringindo a Constituição a lhe conferir proteção em face de lei nova. Lucidamente, assim se pronunciou o eminente Ministro José Augusto Delgado:

O tratamento dado pela Carta Maior à coisa julgada não tem o alcance que muitos intérpretes lhe dão. A respeito, filio-me ao posicionamento daqueles que entendem ter sido vontade do legislador constituinte, apenas, configurar o limite posto no art.

165 O dogma da coisa julgada: hipóteses de relativização, p. 13.

5º, XXXVI, da CF, impedindo que a lei prejudique a coisa julgada.167

Ademais, o que busca a jurisdição, como função estatal, precipuamente, é a pacificação social com justiça. Logo, a pacificação advinda da estabilização e imutabilidade das decisões judiciais não será ideal, nem desejada, se alcançada mediante o cometimento de injustiças.

Aduzem Humberto Theodoro Junior e Juliana Cordeiro de Faria, com fulcro em lição de Paulo Otero, que “a segurança como valor inerente à coisa julgada e, por conseguinte, o princípio de sua intangibilidade são dotados de relatividade, mesmo porque absoluto é apenas o DIREITO JUSTO”.168

De fato, a justiça é ideal almejado por todo sistema jurídico. Constitui-se num valor de primeira grandeza, senão for o fim maior do direito. Também detém status constitucional, mediante a garantia do acesso à justiça (art. 5º, inc. XXXV), que, segundo Dinamarco, deve ser entendida como obtenção de soluções justas – acesso à ordem jurídica justa. Nesse ínterim, “o processo deve ser realizado e produzir resultados estáveis tão logo quanto possível, sem que com isso se impeça ou prejudique a justiça dos resultados que ele produzirá”169 (grifo nosso). Com efeito, seria uma espécie de patologia jurídica a existência de atos judiciários acobertados pela certeza e segurança, não obstante a conter injustiças gritantes.

Em síntese formidável, Douglas Martins de Souza asseverou: “Segurança e justiça são objetivos estratégicos do processo”.170 De fato.

167 Efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais, p. 84.

168 A coisa julgada inconstitucional e os instrumentos processuais para seu controle, p. 139. A obra do autor português Paulo Otero na qual os autores buscam subsídios é Ensaio sobre o

caso julgado constitucional, Lisboa: Lex, 1993.

169 Ob. cit., p. 3.

170 Extensão subjetiva da coisa julgada, monografia apresentada ao curso de pós-graduação da PUC/SP, 2001.

Encontrar, todavia, o ponto de equilíbrio de forma a satisfazer essas exigências fundamentais é a questão que se apresenta crucial. Organizar os valores numa escala hierárquica não se mostra razoável, tendo em vista que todos têm a sua importância no sistema. Dinamarco propõe “a interpretação sistemática e evolutiva dos princípios e garantias constitucionais do processo civil”, pois “nenhum princípio constitui um objetivo em si mesmo e todos eles, em seu conjunto, devem valer como meios de melhor proporcionar um sistema processual justo, capaz de efetivar a promessa constitucional do acesso à justiça (...)”.171

Tal é a problemática quando a coisa julgada, não obstante proporcione a segurança, tão almejada, provoque injustiças manifestas. Exemplo que já se tornou típico é o caso da investigatória de paternidade que, julgada procedente com base em prova testemunhal, tem a sentença transitada em julgado; depois vem à tona o resultado do exame de DNA que assegura que o pai não é, na verdade, o pai. Na hipótese, a sentença poderia determinar que alguém seja considerado pai de outrem, com todas as obrigações e deveres que lhe seriam pertinentes, quando a ciência deixa demonstrado, por meio de prova científica quase absolutamente irrefutável, que ele não é o pai biológico?172 Já se disse, e é bem certo, que a sentença não tem o poder de violar as regras constitucionais, tampouco o de contrariar as leis da natureza, como no exemplo

supra.

171 Relativizar a coisa julgada material, p. 35.

172 Nesse sentido, há julgado da 3ª Turma do STJ, proferido em maio de 1998, provocador de muita polêmica, vejamo-lo (trecho): “Seria terrificante para o exercício da jurisdição que fosse abandonada a regra absoluta da coisa julgada (...). Se, fora dos casos nos quais a própria lei retira a força da coisa julgada, pudesse o magistrado abrir as compotas dos feitos já julgados para rever as decisões, não haveria como vencer o caos social que se instalaria. A regra do art. 468 do CPC é libertadora”. E, adiante, conclui: “Assim, a existência de um exame pelo DNA posterior ao feito já julgado, com decisão transitada em julgado, reconhecendo a paternidade, não tem o condão de reabrir a questão com uma declaratória para negar a paternidade, sendo certo que o julgado está coberto pela certeza jurídica conferida pela coisa julgada”.

Nesse diapasão, o insigne José Augusto Delgado obtemperou: “A decisão judicial, expressão maior da atuação do Poder Judiciário, deve expressar compatibilidade com a realidade das coisas e dos fatos naturais, harmonizando-se com os ditames constitucionais e ser escrava obediente da moralidade e da legalidade”. O entendimento de Delgado sobre a matéria é justamente no sentido de enaltecer o princípio da moralidade, em detrimento da segurança jurídica oriunda da coisa julgada, de modo a prescrever que “a moralidade está ínsita em cada regra posta na Constituição e em qualquer mensagem de cunho ordinário ou regulamentar”. E prossegue: “Ela é comando com força maior e de cunho imperativo, reinando de modo absoluto sobre qualquer outro princípio, até mesmo sobre o da coisa julgada. A moralidade é da essência do Direito”. Assim, nessa linha de pensamento, a autoridade da coisa julgada está sempre condicionada aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, sem cuja presença a segurança jurídica imposta pela coisa julgada “não é o tipo de segurança posto na Constituição Federal”.173

Francisco Barros Dias, juiz federal no Rio Grande do Norte, é outro insigne jurista que, no papel de julgador, indigna-se com o fato de ser dada mais importância à coisa julgada que ao princípio da isonomia, também insculpido na Constituição. Ao se questionar sobre a intangibilidade da coisa julgada, ele conclui pela sua relatividade ao salientar que “a coisa julgada está calcada na segurança, estabilidade e certeza jurídicas, quando há apenas violação da norma infraconstitucional, o que não se pode dizer, igualmente, com relação a uma norma constitucional violada. Aí, esses princípios que fundamentam a coisa julgada não são suficientes para mantê-la de forma

173 Efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais, p. 80-81, publicado na obra Coisa

definitiva, porque a lei maior é que restou violada, comprometendo assim o berço de todo o sistema”.174

Ademais, defende o ilustre juiz federal a inexistência da sentença que fere a Constituição, ao apregoar que “a sentença que agride qualquer um dos princípios maiores, como o da legalidade, da isonomia, da democracia, da hierarquia das normas e do respeito à divisão dos poderes, todos insculpidos na Constituição, é sentença injusta e, conseqüentemente, ilegítima. Portanto, deve-se ter como inexistente no mundo jurídico”.

O jurista uruguaio Eduardo Juan Couture demonstra preocupação com “as repercussões que a fraude pudesse projetar sobre a situação jurídica das pessoas (partes ou terceiros), ainda mais quando os resultados da conduta fraudulenta estiverem reforçados pela autoridade da coisa julgada”. Fala em “coisa julgada delinqüente” e diz que, se fecharmos os caminhos para a desconstituição das sentenças passadas em julgado, acabaremos por outorgar uma carta de cidadania e legitimidade à fraude processual e às formas

delituosas do processo.175

Outro jurista estrangeiro, Juan Carlos Hitters, ao discorrer sobre a revisão da coisa julgada, também defende “a revisão de sentenças substancialmente injustas, infringindo-se a autoridade do julgado se isso for essencial para fazer justiça e afastar desmandos”. Hitters cultua a justiça em todas as suas formas e propõe a construção de uma teoria da revisão da coisa julgada sem previsão legal ou além das previsões legais eventualmente existentes.

174 Breve análise sobre a coisa julgada inconstitucional, RT 758, 1988. 175 Ob. cit., p. 13.

Voltando à doutrina nacional, Hugo Nigro Mazzilli defende a “necessidade de mitigar a coisa julgada” quando há violação de direitos fundamentais. Argumenta que “não se pode admitir, verdadeiramente, coisa julgada ou direito adquirido de violar o meio ambiente e de destruir as condições do próprio habitat do ser humano”. Nesse contexto, a regra do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública deveria ser mitigada, quando houvesse ofensa ao direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, de cunho constitucional. Enfim, arremata Mazzilli com a seguinte assertiva: “não se pode admitir a formação de coisa julgada contra a Constituição, se esta é a base de todo o ordenamento jurídico, e, portanto, é a fonte de validade da própria coisa julgada”.176.

De fato, nas palavras de Celso Ribeiro Bastos, citado por Mazzilli, “a coisa julgada há de ceder, toda vez que contra ela sobrelevem razões mais altas e princípios de maior alcance”.177

No direito norte-americano, as regras que dizem respeito à coisa julgada apresentam menos rigidez do que no direito pátrio. Dinamarco observa que a presença franco-espanhola na origem da legislação norte-americana pode ter sido fonte de alguma influência do direito romano antigo, conhecidamente menos rígido do que o germânico, do qual advêm as regras mais rígidas de estabilização das decisões judiciárias em razão da coisa julgada e que influenciou a nossa cultura jurídica. Assim, “sem a pressão dos dogmas que tradicionalmente nos influenciam, eles são capazes de aceitar com mais

176 A defesa dos interesses difusos em juízo, p. 403.

177 Comentários à Constituição do Brasil, Saraiva, 1988, v. 2, p. 201-202, apud Mazzilli, ob. cit., p. 402-403.

naturalidade certas restrições racionais à res judicata, relativizando esta para a observância de outros princípios e outras necessidades”.178

Consoante preconiza Cândido Rangel Dinamarco, não há critérios objetivos constantes para a determinação das situações em que a autoridade da coisa julgada deva ser afastada ou mitigada, nem dos limites dentro dos quais isso deve acontecer. Como vimos, já se falou em relativizar a coisa julgada que fere garantias constitucionais, como a moralidade administrativa, o justo preço nas desapropriações, o meio ambiente ecologicamente equilibrado. Também são invocados a fraude e o princípio da razoabilidade e o da proporcionabilidade como fundamentos para a relativização da coisa julgada em certos casos.

A proposta de Dinamarco é no sentido de utilizar o conceito técnico- jurídico da “impossibilidade jurídica dos efeitos da sentença” (não impossibilidade jurídica do pedido, uma das condições da ação) para determinar as circunstâncias em que não incidirá a auctoritas rei judicatae sobre a sentença. É cediço, e já foi dito alhures, que a coisa julgada material consiste na imutabilidade dos efeitos substanciais da sentença de mérito. Relembre-se que efeitos substanciais da sentença são aqueles extrínsecos ao processo, que dizem respeito à vida dos litigantes, e são produzidos por sentenças de mérito. As sentenças meramente terminativas produzem efeitos ditos processuais, porque apenas põem termo ao processo, sem apreciar-lhe o mérito, por isso tais sentenças fazem somente coisa julgada formal, nunca a material. Dinamarco parte da seguinte assertiva: onde não há efeitos

substanciais, não há coisa julgada material. É isso que ocorre com as

sentenças terminativas: não existem efeitos substanciais, não existe coisa julgada material (que é a coisa julgada por excelência).

Ocorre que algumas sentenças de mérito, “pretendendo ditar um preceito juridicamente impossível, não têm força para impor-se sobre as normas ou princípios que o repudiam. Só aparentemente elas produzem os efeitos substanciais programados, mas na realidade não os produzem porque eles são repelidos por razões superiores, de ordem constitucional”, ensina Dinamarco.179

Nesse ínterim, “é natural que a coisa julgada não se imponha quando os efeitos programados na sentença não tiverem condição de impor-se”. Assim, “da inexistência desses efeitos juridicamente impossíveis decorre logicamente a inexistência da coisa julgada material sobre a sentença que pretenda impô- los. (...) E, não havendo efeitos a serem imunizados pela coisa julgada material, essa autoridade cai no vazio e não tem como efetivar-se”.180

Ademais, sobre a sentença que enuncia preceitos impossíveis juridicamente, Dinamarco não a considera um ato jurídico inexistente, opinião à qual nos filiamos, em oposição ao pensamento de Francisco Barros Dias, que apregoa que um ato judicial violador da Constituição se afigura inexistente. Embora inexistentes os seus efeitos substanciais, a sentença existe e, como ato jurídico processual, terá o efeito, por exemplo, de pôr fim ao processo.181

179 Ob. cit., p. 27. Dinamarco oferece exemplos de sentenças de mérito que trazem preceitos juridicamente impossíveis: sentença que declarasse o recesso de algum Estado federado brasileiro, dispensando-o de prosseguir integrado na República Federativa do Brasil; sentença que condenasse uma pessoa a dar a outrem determinado peso de sua própria carne, em razão de uma dívida não honrada; sentença que condenasse uma mulher a proporcionar préstimos de prostituta ao autor, em cumprimento ao disposto em cláusula contratual. Essas sentenças esbarrariam frontalmente com garantias constitucionais.

180 Ob. cit., p. 28- 29. 181 Ob. cit., p. 29.

Ainda no plano da análise doutrinária, inevitável mencionar o posicionamento dos professores paulistas Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, árduos opositores da chamada teoria da “relativização” da coisa julgada. Para eles, trata-se verdadeiramente de desconsideração da coisa julgada, o que levaria à quebra do estado democrático de direito, que tem como

elemento de existência a coisa julgada, fato reconhecido pela doutrina mundial.

Assim argumentam os professores citados em prol de sua posição: O risco político de haver sentença injusta ou inconstitucional no caso concreto parece ser menos grave do que o risco político de instaurar-se a insegurança geral com a relativização (rectius: desconsideração) da coisa julgada.182

Não obstante a argumentação convincente elaborada, os ilustres professores partem da premissa de que, havendo choque entre os valores justiça da sentença e segurança das relações sociais e jurídicas, “o sistema constitucional brasileiro resolve o choque, optando pelo valor segurança (coisa julgada), que deve prevalecer em relação à justiça, que será sacrificada”.183 Conforme já dito noutros lugares, urge que se encontre o ponto de equilíbrio entre os valores litigantes, por isso não cremos que a segurança sempre prevalecerá em detrimento da justiça.

Vê-se que não se mostra fácil adotar uma teoria de “relativização” da coisa julgada em nosso direito, pois a vinculação da coisa julgada à segurança, à tranqüilidade social, e à sua aparente intocabilidade, que remonta às origens mais remotas do nosso ordenamento, está arraigada no pensamento jurídico nacional.

182 Código de Processo Civil comentado, comentários ao artigo 467, p. 867. Para o tema, alvo de acirradas discussões nos últimos tempos, é importante conhecer os argumentos utilizados pelos professores citados.

Parece-nos, todavia, que uma certa “dose” de flexibilidade se faz necessária. Inclusive porque o sistema previu exceções à prevalência da coisa julgada. O que deve ser feito é uma reanálise desses institutos de exceção, a fim de conferir-lhes aplicação de acordo com a novel realidade sócio- processual ou reestruturá-los para que atendam aos seus efetivos fins.

Então, saindo do plano predominantemente teórico e adentrando no prático, a questão que se coloca agora é: como sistematizar, ou seja, como tornar viável a teoria da flexibilização da coisa julgada no nosso direito, visto que as regras são rígidas e as mentes conservadoras. Alcançar um ponto de equilíbrio entre os valores que duelam no sistema, sem supervalorizar nenhum deles em detrimento dos outros, é possível e necessário.

A ação rescisória constitui o instrumento, por excelência, que pode proporcionar o afastamento da coisa julgada, mas naqueles casos determinados (art. 485, CPC) e naquele prazo determinado (art. 495, CPC). É muito restrito. Muitas injustiças só vêm à tona algum tempo depois, passado o exíguo prazo da rescisória, e se tornam permanentes, porque não é mais possível desacatar a “santa” coisa julgada, restando supervalorizada a segurança proporcionada por ela e preteridos outros valores tão ou mais importantes para a harmonia do sistema.

O problema pode estar na taxatividade da lista das sentenças (rectius: