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III. PRESSUPOSTOS NECESSÁRIOS À ADMISSIBILIDADE DA AÇÃO

3.2. Pressupostos específicos da ação rescisória

3.2.2. Coisa julgada

3.2.2.1. Fundamentação política e jurídica da coisa julgada

A razão de ser da coisa julgada pode ser explicada por meio de motivos de ordem política e jurídica. É o que demonstraremos a seguir.

É cediço que são objetivos da jurisdição a realização do direito objetivo e a pacificação social com justiça. E é por meio do processo que se realiza esse encargo estatal. Composta a lide pelo Estado-juiz, há um interesse público na estabilização das relações jurídicas, no intuito de impedir a perpetuação dos litígios. Nesse ponto, entra em cena a “solução técnica”134 da coisa julgada,

134 Expressão de J. J. Calmon de Passos, em Coisa julgada civil, verbete da Enciclopédia

com a função de tornar imutável a decisão judicial, impedindo a rediscussão do que restou jurisdicionalmente fixado em termos de direito. Assim, o fundamento político da coisa julgada é a segurança que torna estáveis as relações, resultando na eliminação dos litígios contínuos ou intermináveis e proporcionando paz social.

A segurança e a estabilidade jurídicas como supedâneo político para a coisa julgada sempre foram aplaudidas pela doutrina, sem maiores divergências, mas ultimamente vem tomando relevo a discussão sobre a importância da segurança ante outros valores de igual ou maior grandeza, que também embasam o sistema, e acabam preteridos quando a segurança sobressai por meio da coisa julgada. Esse assunto será melhor trabalhado no item 3.2.2.7: A coisa julgada hoje: tendências relativizadoras.

Tarefa mais complexa é estabelecer o fundamento jurídico da coisa julgada, pois isso impõe uma investigação sobre a natureza jurídica do instituto, o que, não obstante a dificuldade que apresenta, vem sendo ofício de inúmeros juristas ao longo da história, os quais elaboraram teorias variadas no afã de desvendar a essência e a razão de ser da coisa julgada, figura jurídica que, ainda hoje, é das mais controversas. Vejamos tais construções teóricas e suas argumentações:

Teoria da presunção da verdade

Juristas da Idade Média, com base em texto de Ulpiano e seguindo os ensinamentos da filosofia escolástica, fundamentavam a autoridade da coisa julgada na presunção de verdade, que, segundo eles, estava contida na sentença. Esse é o sentido do conhecido brocardo extraído de texto de

Ulpiano: res iudicata pro veritate habetur. Destarte, não se pode afirmar que a sentença corresponde à verdade, mas sim que ela contém a presunção da verdade. Ou seja, presume-se que a sentença contém a verdade. Adota-se um estilo “faz-de-conta”; “faz-de-conta” que a sentença é a verdade.

Tal teoria foi adotada por Pothier e, ensina Moacyr Amaral dos Santos, deste passou para os tempos modernos, pela consagração que lhe deu o Código de Napoleão, daí estendendo-se para outros códigos. Era a teoria esposada pelo Regulamento 737, de 1850, cujo art. 185 rezava: “São presunções legais absolutas os fatos ou atos que a lei expressamente estabelece como verdade, ainda que haja prova em contrário, como a coisa julgada”.135

Teoria da ficção da verdade

A teoria da ficção da verdade, elaborada por Savigny, fundando-se em texto de Paulo, propugna que a autoridade da coisa julgada está na ficção de

verdade existente na sentença. A sentença, então, produz uma verdade

artificial, que se impõe como se verdade fosse.

Merece destaque na doutrina de Savigny, observa Alexandre Isaac Borges, o realce por ele dado à dupla função da exceptio rei iudicatae no direito justiniano, ou seja, além da antiga função negativa de impedir uma nova ação, acrescenta-se uma função positiva, baseada no conteúdo da sentença, pela qual uma decisão não deve contradizer o conteúdo de uma sentença já pronunciada (eadem questio).136

135 Primeiras linhas de direito processual civil, p. 46. 136 Da coisa julgada, artigo publicado na RePro 20, p. 113.

Teoria da força legal da sentença

Para Pagenstecher, criador dessa teoria, toda sentença, inclusive a declaratória, cria direito, é constitutiva de direito. A sentença é criadora de direito novo, resultante da certeza jurídica produzida por ela, acrescida de um

quid a mais, que vem a ser a força legal que detém e que a distingue de um

parecer de um jurisconsulto, que também produz certeza jurídica, mas que não apresenta o tal quid.

Esse quid a mais, que por força de lei se ajusta à sentença, tornando-a constitutiva de direito, é que lhe dá autoridade de coisa julgada. O fundamento da coisa julgada está no direito novo, por força de lei criado pela sentença. A sentença, pelo seu trânsito em julgado, atribui ao direito novo (direito substancial), por ela criado, força de lei.137

Teoria da eficácia da declaração

Os defensores dessa teoria (Helwig, Binder, Stein) argumentam que a autoridade da coisa julgada está na eficácia da declaração de certeza contida na sentença.

Segundo essa teoria, todas as sentenças, mesmo as constitutivas e as condenatórias, contêm uma carga declaratória e esta declaração é que produz a certeza do direito. Isso quer dizer que é a declaração contida na sentença que se torna imutável, residindo aí a autoridade da coisa julgada. Assim, “a declaração de certeza produz a eficácia de impor às partes, bem como ao juiz que proferiu a sentença e aos demais juízes, a observância da declaração”.138

137 Moacyr Amaral dos Santos, ob. cit., p. 47. 138 Idem, p. 48.

Teoria da extinção da obrigação jurisdicional

Deve-se a Ugo Rocco essa teoria, para quem ao direito subjetivo de pedir ao Estado que resolva um conflito, aplicando o direito material incidente no caso (direito de ação), corresponde o poder-dever de prestação jurisdicional do Estado de declarar o direito. Nesse contexto, a sentença é o ato por meio do qual o Estado presta a sua obrigação jurisdicional. A extinção dessa obrigação estatal implica a extinção do direito de ação correlacionado, que lhe deu causa. Com a extinção de ambos, a relação de direito material decidida no processo não pode mais ser novamente discutida e decidida, porque o direito de ação não pode mais ser exercido, na espécie, e a jurisdição restou cumprida, extinguindo-se. Assim, o fundamento da coisa julgada resulta da extinção da obrigação jurisdicional que impõe a extinção do direito de ação e confere, por isso, imutabilidade à sentença proferida.

Teoria da vontade do estado

Mais uma vez, para explicar o fundamento da coisa julgada, compara-se a sentença judicial a um parecer de um jurisconsulto. De fato, naquele ato existe um plus, uma força especial, que lhe é atribuída pelo Estado. A interferência estatal incide sobre o comando ou decisão contida na sentença, não sobre o raciocínio lógico desenvolvido, concedendo-lhe força obrigatória e impondo, conseqüentemente, a sua observância por todos. Além da força obrigatória, também provém do Estado a indiscutibilidade da sentença.

Assim, a teoria, que teve como seu maior arauto Chiovenda, considera como fundamento da coisa julgada a vontade do Estado, que confere à sentença o atributo de “ato estatal, irrevogável e de força obrigatória”.139

Teoria da imperatividade da sentença

A teoria da imperatividade da sentença, que teve em Carnelutti seu mais ilustre defensor, justifica a autoridade da coisa julgada na imperatividade contida na sentença por ser um ato estatal. Assim como Chiovenda, Carnelutti também compreende o fundamento da coisa julgada no fato de ela provir do Estado, o que, em última análise, consiste na prevalência da vontade estatal.

Doutro lado, Chiovenda vê o comando da lei, abstrato e geral, tornado concreto na sentença. Assim, o comando da lei está paralelo ao comando da sentença, sendo este autônomo. Carnelutti, contrariamente, entende que o comando da sentença pressupõe o comando da lei, o que o torna complementar a este, não paralelo. Grosso modo, nisso reside a divergência essencial entre as duas teorias, que, em princípio, parecem idênticas.

Carnelutti, curiosamente, faz uma inversão dos momentos de ocorrência da coisa julgada formal e material, sustentando que aquela pressupõe esta, no sentido contrário ao entendimento assente. Assim explica Moacyr Amaral dos Santos: “Na certeza que a sentença produz está a imperatividade dela, e é esta imperatividade que constitui a coisa julgada material, a qual, pela preclusão dos recursos, se transforma em coisa julgada formal”.140

Teoria de Liebman

139 Idem, p. 50. 140 Idem, p. 50.

O estudo elaborado pelo jurista italiano Enrico Tullio Liebman sobre a coisa julgada representa um marco no que se refere a essa temática. Antes de Liebman enfrentar a questão, considerava-se a coisa julgada como o principal efeito da sentença. Observando, todavia, que a doutrina da época estava classificando as sentenças em declaratórias, constitutivas e condenatórias, a partir do conteúdo e dos efeitos apresentados por elas, Liebman passou a questionar se a coisa julgada, como efeito da sentença, deveria ser posta ao lado desses outros efeitos produzidos pela sentença; e se, desse modo, haveria em cada sentença uma parte atingida pela autoridade da coisa julgada e outra que permaneceria sem ela.

Divergindo, então, do entendimento vigente, Liebman entende a coisa julgada como uma qualidade especial da sentença, a reforçar a sua eficácia, que consiste na imutabilidade da sentença como ato processual (coisa julgada formal) e na imutabilidade dos seus efeitos (coisa julgada material). Para ele, a sentença é um ato que, por ser oriundo do poder público, goza de uma presunção de legitimidade, impondo sua eficácia141 a todos, genericamente, após a preclusão dos recursos de efeito suspensivo. Coisa diversa é a autoridade da sentença, que significa a imutabilidade de sua eficácia e que é representada pela coisa julgada. Esta vem reforçar a eficácia natural da sentença com a preclusão de todos os recursos. Nesse ponto, a sentença, além de eficaz, torna-se imutável, e assim também os seus efeitos.

Costumam dizer os doutos que a teoria liebmaniana acertou quando afirma que a coisa julgada não é um efeito da sentença, realizando a desvinculação entre a eficácia da sentença e a res iudicata, atuando aquela

141 O termo eficácia, aqui, é usado no sentido de efetiva produção de efeitos, não como aptidão

erga omnes e restringindo-se esta às partes. Mas a referida doutrina foi alvo de

críticas contundentes, das quais podemos destacar as formuladas por Allorio e, entre nós, por José Carlos Barbosa Moreira, a respeito da identificação da coisa julgada como uma qualidade a conferir imutabilidade aos efeitos da sentença.

Nesse sentido, assevera o ilustre processualista Barbosa Moreira: “Ora, a quem observe, com atenção, a realidade da vida jurídica não pode deixar de impor-se esta verdade muito simples: se alguma coisa, em tudo isso, escapa ao selo da imutabilidade, são justamente os efeitos da sentença. A decisão que acolhe o pedido, na ação renovatória, produz o efeito de estender por certo prazo, e com fixação de determinado aluguel, o vínculo locatício; mas que impede as partes de, no curso desse prazo, de comum acordo, modificarem o aluguel fixado, alterarem esta ou aquela cláusula, e até porem fim à locação? – Imutabilidade, pois: mas não ‘da sentença e dos seus efeitos’ como pretende Liebman, senão apenas da ‘própria sentença’”.

Com efeito, o que se torna imutável, inalterável, com a formação da coisa julgada, é a sentença como ato jurisdicional; os seus efeitos, a ensejarem alteração no mundo empírico, podem ser diversos daqueles previstos na decisão.