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III. PRESSUPOSTOS NECESSÁRIOS À ADMISSIBILIDADE DA AÇÃO

3.2. Pressupostos específicos da ação rescisória

3.2.2. Coisa julgada

3.2.2.3. Extensão objetiva e subjetiva da coisa julgada

A coisa julgada sofre limitações quanto a sua abrangência, devido à necessidade de se delimitar o que e quem será atingido por ela. Assim, no aspecto subjetivo, hão que se definir os sujeitos que serão alcançados pela sua imutabilidade, aos quais ficará vedada a rediscussão do que restou decidido na sentença transitada em julgado. Objetivamente, impõe-se a determinação de que partes da sentença ficarão inalteráveis em decorrência da coisa julgada.

Acerca dos limites subjetivos da coisa julgada, na trilha do processo romano, a regra geral é no sentido de que a sentença se torna indiscutível pelos sujeitos que foram partes no processo. Ou seja, a sentença faz coisa julgada somente inter partes. Diz o artigo 472 do CPC que “a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando nem prejudicando terceiros”. A segunda parte do dispositivo alberga uma exceção à regra, que ocorre nos casos relativos ao estado de pessoa. Desde os romanos se apregoa o valor erga omnes das sentenças em matéria de filiação. Essa

144 Cândido Rangel Dinamarco, ob. cit., p. 7. 145 Humberto Theodoro Junior, ob. cit., p. 463.

orientação predomina nos sistemas processuais, apesar da dificuldade de conciliá-la com o princípio nemo debet inauditus damnari, que impõe a máxima redução do número de terceiros atingidos pela sentença proferida inter alios. Liebman dá a razão para tal regra: “Motivos práticos mais sérios fazem necessária essa regra, porque a razão de ser do conceito de status tem sua raiz precisamente na necessidade de que certas situações fundamentais das pessoas, importantes para uma série indefinida de relações jurídicas, apareçam de modo fixo e uniforme para todos”.146

Mas a questão dos limites subjetivos da coisa julgada constitui “um dos mais delicados problemas da processualística”.147 Além da exceção legal, há outros casos nos quais não vige a regra geral. No afã de determiná-los, várias doutrinas surgiram, pretendendo oferecer conceituação de “terceiros” e estabelecer quais os alcançados pela extensão da coisa julgada. Inicialmente, foram formulados os seguintes pensamentos a respeito do tema. A teoria da

identidade de posição jurídica preconiza que a coisa julgada vincula o terceiro

quando este se acha numa posição jurídica igual à de uma das partes. Segundo a teoria da representação, cuja autoria foi de Savigny, o terceiro sofre, excepcionalmente, os efeitos da coisa julgada quando esteve representado por uma das partes no processo. A teoria da subordinação da

posição jurídica, desenvolvida por Emilio Betti, sustenta que a coisa julgada vai

alcançar terceiros, quando se verificar entre estes e os litigantes uma relação de subordinação ou dependência, do ponto de vista do direito material.

Com o enfraquecimento das teorias retromencionadas, surgiu, com base em estudos de Ihering, a teoria dos efeitos reflexos da sentença, cujos

146 Eficácia e autoridade da sentença, p. 172.

147 No dizer de Gabriel de Rezende, apud Jorge Lafayette Pinto Guimarães, Repertório enciclopédico do direito brasileiro, verbete coisa julgada.

principais defensores foram Carnelutti e Chiovenda, que vê a coisa julgada como produtora de efeitos diretos, previstos e queridos pelas partes, e efeitos indiretos ou reflexos, não queridos nem previstos pelas partes, mas que atingem terceiros e são inevitáveis. Assim, a sentença, como ato jurídico que é, existe e vale em relação a todos, mas isso não significa que possa prejudicar terceiros, pois estes não podem sofrer prejuízo jurídico, sendo possível serem afetados apenas por prejuízo de fato. Nesse contexto, Chiovenda classifica os terceiros em três tipos, quanto à sua posição em face da coisa julgada: a) terceiros totalmente indiferentes; b) terceiros titulares de uma relação jurídica incompatível com a decidida; c) terceiros titulares de uma relação jurídica compatível com a decidida, ficando o segundo tipo fora do alcance da coisa julgada. Com essa distinção, aproxima-se da teoria de Betti, que formulou classificação semelhante.

Assumindo posição inovadora, Liebman deu novo trato à questão, formulando oportuna distinção entre a eficácia natural da sentença e a

autoridade da coisa julgada, valendo aquela para todos e esta apenas entre as

partes. Assim, somente a eficácia natural da sentença tem efeito erga omnes, atingindo terceiros, que podem se insurgir contra a sentença se desta lhes advier prejuízo jurídico. Ademais, apontando o desacerto das teorias antecedentes, especialmente em vislumbrar a coisa julgada como um efeito da sentença, Liebman sustenta que a coisa julgada consiste numa qualidade

especial da sentença, que tem o condão de lhe conferir imutabilidade.

Em relação aos terceiros, a concepção liebmaniana os classifica em três categorias, a saber: a) terceiros indiferentes; b) terceiros interessados praticamente; c) terceiros juridicamente interessados. Os primeiros são aqueles que não sofrem prejuízo de nenhuma espécie em decorrência da sentença. Os

segundos são aqueles para os quais advém prejuízo de fato (ou econômico) da sentença. Nesse caso, não há incompatibilidade entre o direito do terceiro e o direito declarado na sentença. A última categoria engloba os terceiros que têm interesse jurídico na causa, podendo ser o interesse igual ou inferior ao das partes. Tais terceiros podem se insurgir contra a sentença, demonstrando sua injustiça ou ilegalidade.

O próprio Liebman assim sintetizou a sua teoria:

I – A eficácia da sentença, nos limites de seu objeto, não sofre nenhuma limitação subjetiva; vale em face de todos.

II – A autoridade da coisa julgada não é efeito ulterior e diverso da sentença, mas uma qualidade dos seus efeitos e a todos os seus efeitos referente, isto é, precisamente só às partes do processo.

III – Conseqüentemente, todos os terceiros estão sujeitos à eficácia da sentença, não, porém, à autoridade da coisa julgada; a sentença, nos limites do seu objeto, é sempre oponível a eles, que lhes podem repelir os efeitos, demonstrando a sua injustiça, uma vez que tenham interesse jurídico nessa demonstração.148

O que se indaga, a respeito de limitação objetiva da coisa julgada, é até que ponto a matéria contida na sentença, e nela apreciada, transitará em julgado e se tornará imutável.

Consoante ensinamentos de Jorge Lafayette Pinto Guimarães,149 inicialmente, dominava a doutrina de Savigny, para quem a sentença constituía um todo único, uma unidade lógica e jurídica, iniscindível, não sendo possível separar da conclusão os motivos objetivos, aos quais se estenderia a autoridade da coisa julgada. Mas, como reação a essa doutrina, que Couture faz decorrer do direito comum alemão, surge a corrente oposta, no sentido de restringir a coisa julgada à conclusão da sentença, ou seja, à sua parte

148 Eficácia e autoridade da sentença, p. 141 e ss.

dispositiva, em que se acolhe ou rejeita a demanda, doutrina que findou por se tornar vitoriosa.

No direito pátrio, em 1885, Paula Batista, pioneiramente, já enunciava: “A autoridade da coisa julgada é restrita à parte dispositiva do julgamento e aos pontos aí decididos, e fielmente compreendidos em relação aos seus motivos, e não abrange o que é indicado em forma de enunciação”.150 Esse foi o pensamento que se tornou majoritário na doutrina nacional, influenciada por Liebman,151 na esteira da doutrina germânica dominante, não obstante o Código de Processo Civil de 1939 conter dispositivo152 que adotava, em parte, a doutrina de Savigny e, por isso, dava ensejo a grandes controvérsias.

Com o advento do Código vigente, a discussão restou esvaziada, tendo havido o acolhimento da corrente predominante: somente o dispositivo da sentença é abrangido pela coisa julgada. Veio o artigo 469 solucionar a questão, estabelecendo as partes ou pontos da sentença que não produzem coisa julgada, in verbis: “Não fazem coisa julgada: I – os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença; II – a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença; III – a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo”. Noutras palavras, o referido dispositivo legal quer dizer que das três partes que compõem a sentença – relatório, fundamentação e conclusão –, somente a última faz coisa julgada, tornando-se imutável. Trata-se de uma opção do legislador brasileiro. Quanto à questão prejudicial, se ela for abordada e

150 Compêndio de theoria e prática, 7. ed., Rio: H. Garnier Livreiro Editor, 1910, p. 275, apud Alexandre Isaac Borges.

151 Embora Liebman não tenha deixado de reconhecer o mérito de Paula Batista.

152 Art. 287, parágrafo único: “Considerar-se-ão decididas tôdas as questões que constituam premissa necessária da conclusão”.

decidida em sede de ação declaratória incidental, há que incidir a força da res

iudicata.