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II. DA AÇÃO RESCISÓRIA EM GERAL

2.6. Suspensão da execução do julgado rescindendo

Dispõe o artigo 489 do CPC: “A ação rescisória não suspende a execução da sentença rescindenda”. Sempre se entendeu, com base nesse dispositivo, que a ação rescisória não tem efeito suspensivo. De fato, a mera propositura da ação rescisória não suspende a execução da decisão rescindenda. Essa é a ratio legis. O que não significa que uma medida de caráter urgente, se prevista no ordenamento e presentes os seus requisitos, não possa paralisar a execução em curso ou impedir o seu início, até o desfecho da ação rescisória. É o que veremos a seguir.

Diante da possibilidade de dano conjugada à probabilidade do direito alegado na ação rescisória, impôs-se a busca de um meio processual que evitasse o perecimento do direito em jogo em face da execução da sentença rescindenda. Utilizava-se, outrora, a cautelar, no bojo da rescisória, ou até antecedentemente, para impedir a continuidade da execução. Muito se discutia acerca da tamanha força dessa cautelar, não obstante seu caráter provisório e

sumário, mas suficiente para derrubar a coisa julgada, garantida em sede constitucional, que se formara sobre a sentença objeto da rescisória. Dizia-se que contra a coisa julgada não poderia haver apenas fumaça de bom direito.55 Em sentido favorável à preponderância da coisa julgada, fora emitida, à época, a Súmula 234 do antigo TFR, nestes termos: “Não cabe medida cautelar em ação rescisória para obstar os efeitos da coisa julgada”.

Galeno Lacerda foi o grande defensor da possibilidade de suspensão da execução da decisão rescindenda por meio de medida cautelar. Partindo da premissa de que a função cautelar se caracteriza pela outorga de segurança com vistas a garantir o resultado útil das demais funções jurisdicionais (cognitiva e executiva), ele sustentou que, comprovados o periculum in mora – fundado receio de dano irreparável para o autor da rescisória – e o fumus boni

iuris – probabilidade da existência de qualquer dos vícios relacionados no

artigo 485 do CPC –, seria possível a obtenção da suspensão da execução do julgado impugnado por meio de ação cautelar.56

55 “Ora, como pode mero fumus abalar a coisa julgada? Presume-se que para a formação da coisa julgada tenha-se percorrido um longo caminho até a prolação da sentença, inclusive com dilação probatória (quando necessário for), julgamento de recursos etc., sendo que mero fumus não pode ter o condão de suspender uma execução que iniciou-se após tudo isso. Apesar de a lei determinar a prestação de caução em sede de processo cautelar, esta não terá o condão de indenizar o tempo que a parte exeqüente perderá com a suspensão de sua execução. Poderiam perguntar: e no caso de prosseguir-se com a execução da decisão rescindenda, ou seja, não ocorrer a suspensão, como fica a situação da parte que propôs a rescisória e não obteve êxito ao requerer a suspensão? Ora, nosso sistema antes de tudo garante a coisa julgada e com este risco deve arcar parte que não se insurgiu à época em que pendia o processo, cuja sentença pretende rescindir, pois muitas das hipóteses de cabimento, dizem respeito a nulidades que poderiam e deveriam ter sido argüidas a qualquer tempo e grau de jurisdição, sendo que se não for caso de rescisória por alguma nulidade, também teria dado ensejo à época em que pendia o processo de ser revertida a situação, como é o caso de apresentar-se documento novo em sede de recurso” (Márcia Dinamarco, Meio processual adequado para suspender a execução do julgado rescindendo, artigo publicado na coletânea Aspectos polêmicos da antecipação de tutela, p. 343-344).

56 Ação rescisória e suspensão cautelar da execução do julgado rescindendo, passim. Trabalho pequeno, mas muito denso.

No mesmo sentido, favorável à cautelar com o fim de suspender a execução do julgado objeto de ação rescisória, eis a inteligência singular de Calmon de Passos:

no tocante à rescisória inadmitir a cautelar invocando-se a coisa julgada da ação rescindenda vale zero, porquanto se esta coisa julgada está sub judice, o que passa a ser relevante é a probabilidade da futura sentença favorável ao autor da rescisória. Porque a tutela que com a rescisória se persegue sobreleva à que foi, contra legem, obtida com a decisão rescindenda. Seria incompreensível que numa ação rescisória, mais típica de ação de direito objetivo que de direito subjetivo, vale dizer, mais voltada para afastar o gravame objetivo que o gravame subjetivo, se desprezasse o problema, sempre relevante, da ineficácia da futura sentença possível e provavelmente favorável.57

Também se cogitava, à época, do manuseio do mandado de segurança para a obtenção do efeito suspensivo da execução da decisão rescindenda. Sustentava-se que a referida ação teria status constitucional para combater a coisa julgada, também dotada de proteção constitucional. Além disso, o fumus

boni iuris, requisito das cautelares, não seria suficiente para impedir a

execução de uma decisão judicial acobertada pela coisa julgada. O principal baluarte desse entendimento fora a ilustre professora Teresa Arruda Alvim Wambier.58 Hoje tal posição não mais se sustenta.59

57 Comentários ao Código de Processo Civil, p. 80.

58 “Se, de regra, as sentenças trânsitas em julgado devem ser desconstituídas através de ação rescisória, nas hipóteses elencadas pelo art. 485 do CPC, se ocorrer hipótese, também encartável num (ou em mais de um) dos incisos do art. 485, em que a incidência nestes dispositivos seja demonstrável de plano e em que a decisão possa produzir efeito que seja significativo de lesão irreparável à parte, não concebemos razão alguma para que não se deva solucionar o direito da parte com remédio mais célere, cujo rito comporta concessão de liminar” (Medida cautelar, mandado de segurança e ato judicial, p. 84).

59 Márcia Dinamarco diz “não ser cabível a sua impetração ao lado da ação rescisória com o fim de suspender a execução da decisão rescindenda, por inadequado, uma vez que, para seu cabimento, seria necessário provar de plano o direito líquido e certo, sendo que, se realmente assim o fosse, não seria necessária a ação rescisória, por inócua. Na realidade, o que ocorreria é que seriam coincidentes o mérito da ação rescisória e do mandado de segurança” (ob. cit., p. 337-338), o que também é ressaltado por José Roberto de Barros Magalhães: “Se o impetrante possuir direito líquido e certo, este não será demonstrado no Mandado de Segurança. Será o próprio mérito da ação rescisória, cuja apreciação não pode

Com a difusão do instituto da tutela antecipada, antes restrito a determinados feitos, a partir da reformulação do artigo 273 do CPC pela Lei 8.952/94, passou-se a cogitar da utilização desse instrumento para suspender a execução do julgado rescindendo. Na verdade, em tese, não há impedimento para a concessão da tutela antecipada em ação rescisória, preenchidos os requisitos dispostos no referido dispositivo legal, haja vista ser a dita ação uma ação de conhecimento, cujo julgamento compete aos tribunais originariamente. Não há ofensa à coisa julgada, consagrada no artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal, pois a ação rescisória, outrossim, encontra previsão constitucional (art. 102, I, j, 105, I, e e 108, I, b) e constitui o meio próprio para a desconstituição da coisa julgada. Logo, perde o princípio da coisa julgada o caráter absoluto em face da mera existência da ação rescisória e da possibilidade de sua utilização. Ademais, a coisa julgada só se torna plena com o decurso do prazo decadencial para o ajuizamento da ação rescisória. Noutras palavras, assim já dizia o Ministro Francisco Rezek: “O argumento de que, em se tratando de rescisória, há coisa julgada, não vinga pela própria e singela circunstância de que a desconstituição da coisa julgada é o objeto mesmo da ação”.60

E assim, no sentido de acatar a possibilidade de concessão de uma medida de urgência com o fim de salvaguardar a efetividade-utilidade da ação rescisória, tem assentado o pensamento jurídico nacional, especialmente a partir do início da reforma por que vem passando nosso Código de Processo Civil, cuja tônica essencial é a efetividade do processo.

e não deve ser antecipada para discussão em sede de Segurança” (Ação rescisória: antecipação de seus efeitos, RePro 53/229).

60 Apud Rogério Lauria Tucci, Ação rescisória – medida cautelar – suspensão da execução da

Teori Albino Zavascki, posicionando-se contrariamente à natureza cautelar da medida que suspende a execução do julgado rescindendo, assim se pronunciou:

é medida que, para evitar dano irreparável, antecipa um efeito da futura sentença de procedência (‘execução para segurança’), efeito cuja duração transcenderá à da duração do processo, indo cristalizar-se como efeito definitivo, se procedente a rescisória.61

Vejamos alguns julgados pertinentes:

“Processo Civil. Atribuição de efeito suspensivo à ação rescisória. 1. Antecipação da tutela. A partir da Lei nº 8.952, de 1994, a atribuição de efeito suspensivo a ação rescisória deve ser requerida, nos respectivos autos, como antecipação de tutela, e não mais por meio de ação cautelar. 2. Cabimento. A regra do art. 489 cede sempre que, sem a atribuição de efeito suspensivo à ação rescisória, se possa prever que o acórdão, mesmo se o pedido for julgado procedente, não terá utilidade” (REsp 81.529-PI, Min. Rel. Ari Pargendler, 2ª T., un., j. em 16.10.97, DJU 10.11.1997).

“(...) Cabível a antecipação de tutela para conferir efeito suspensivo à ação rescisória, contudo, excepcionalmente, pode o magistrado deferir a suspensão requerida, dentro do seu poder geral de cautela, sempre que verifique a possibilidade de frustração do provimento judicial futuro da rescisória” (AGRAR 911-MG, Min. Rel. Nancy Andrighi, 1ª Seção, un., j. em 29.02. 2000, DJU 27.03.2000).

Não obstante seja possível a concessão de tutela antecipada em sede de ação rescisória, conforme dito alhures, com o fim único de paralisar a execução em curso, não é tão descabida a argumentação no sentido de que a cautelar serve bem ao desiderato de paralisar a execução. É cediço que a cautelar tem como finalidade assegurar o resultado útil do processo principal. Na hipótese, o prosseguimento da execução da decisão rescindenda poderia usurpar a utilidade do provimento proferido, a final, na demanda rescisória. Por isso, bastaria a cautelar para obter a suspensão. Não se trata de adiantar o que

se pede na rescisória, o que se pretende é evitar que o seu julgamento seja dado inutilmente.

A antecipação de tutela, por sua vez, requer a presença de todos os requisitos previstos no artigo 273 do CPC, quais sejam: prova inequívoca e verossimilhança da alegação, perigo de dano irreparável/de difícil reparação ou abuso do direito de defesa/manifesto propósito protelatório do réu, além do requisito negativo (que não pode estar presente), que é a irreversibilidade da medida. O fumus exigido é mais forte, mais robusto, não aquele necessário para a concessão da cautelar, e tais exigências se coadunam com a necessidade de preservação, a princípio, da sentença acobertada pela coisa julgada. Uma liminar, de cunho sumário e provisório, só detém o poder de se sobrepor à coisa julgada, mesmo relativa, se ficar demonstrada a forte probabilidade do direito alegado pelo autor e, conseqüentemente, a quase certeza de que a sentença proferida na demanda rescisória lhe será favorável.

Há quem argua, ainda, que a rescisória é ação constitutiva negativa, e não seria cabível a antecipação de tutela nas ações constitutivas, porque não se poderia antecipar, de forma provisória, uma alteração em uma situação jurídica (para criá-la, modificá-la ou extingui-la), o que só seria possível na sentença final. Não se antecipa, é verdade, a eficácia constitutiva de uma sentença, mas podem ser antecipados os efeitos práticos decorrentes da futura tutela jurisdicional. A grande maioria da doutrina entende possível a antecipação dos efeitos da tutela em sede de ações constitutivas.62

No que se refere à ação rescisória, é perfeitamente possível a antecipação da tutela para fins de suspensão da execução do ato judicial

62 Nesse sentido: Sahione Fadel, Humberto Theodoro Junior, Araken de Assis, Cândido Rangel Dinamarco, Athos Gusmão Carneiro, João Batista Lopes, Kazuo Watanabe, James Marins, Barbosa Moreira, Luiz Guilherme Marinoni.

rescindendo, e eis o único efeito antecipável.63 Nesse caso, a tutela concedida antecipadamente implica um não-fazer, viabilizando-se, assim, na imposição de uma ordem (tutela mandamental). Para Marinoni, “se com a sentença há a desconstituição do ato, impedindo-se a produção de efeitos a partir de sua pronúncia, com a tutela antecipatória há a suspensão da eficácia, impedindo-se antecipadamente que o ato produza efeitos concretos contrários ao autor”.64

Enfim, cabe ressaltar a possibilidade de aplicação do princípio da fungibilidade em relação à medida de urgência utilizada para se obter a suspensão da execução do julgado rescindendo, desde que preenchidos os requisitos exigidos. Logo, se a parte pede uma medida cautelar com esse fim, verificada a ocorrência dos requisitos da tutela antecipada, nada impede que o juiz dê a medida adequada, ao invés de simplesmente indeferir o pedido. Tal possibilidade veio a ser consolidada no direito positivo brasileiro com a inserção do parágrafo 7º no artigo 273, por meio da Lei 10.444/2002, mas ainda há muita controvérsia quanto à mão dupla dessa fungibilidade. O que

63 Márcia Dinamarco assevera que, apesar dos inúmeros obstáculos, a tutela antecipada é o instituto mais adequado para pleitear a suspensão da sentença rescindenda e explica: “A parte que lança mão da ação rescisória, seja qual for o fundamento, terá já na inicial, que fundamentar detalhadamente qual o motivo que ensejaria a desconstituição da coisa julgada, demonstrando cabalmente qual seria esse fato ensejador. Muitas vezes, quando a parte propõe a ação rescisória, já tem muitas provas, tal qual processo crime onde ficou demonstrado que o juiz que proferiu a sentença praticou qualquer dos crimes indicados no inc. I do art. 485 do CPC; ou que a prova em que se fundou a sentença é falsa (inc. VI), e assim por diante.

Nestes e em outros casos, em que a rescindibilidade da sentença, parece, à primeira vista, plausível, como é o caso da concessão de liminar de manutenção ou reintegração, onde o juiz analisa se presentes os requisitos objetivos para tanto, deve ser concedida a tutela, em nome da necessária efetividade do processo.

Assim, a problemática da coisa julgada fica afastada, tendo em vista o direito posto e em nome da efetividade do processo, tendo que ser analisados, caso a caso, e com prudência, e verificado, se preenchidos os requisitos para a sua concessão.

Portanto, temos que nada impede que seja aplicada à ação rescisória a norma do art. 273 do CPC, que prevê a antecipação da tutela jurisdicional quando preenchidos seus requisitos. Sua negação seria o mesmo que negar o próprio direito” (ob. cit., p. 349-350). 64 A antecipação da tutela, p. 53.

importa, todavia, é que o direito material da parte seja resguardado, pois, afinal, o processo serve para isso.65