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A colaboração em massa e o processo de extração de mais-valia

3 FORÇAS DA COOPERAÇÃO: velhas e novas formas de organização dos processos produtivos

3.3 A colaboração em massa e o processo de extração de mais-valia

Por meio das redes informacionais, a escala da cooperação, como uma variável da grandeza do capital, ampliou o poder de extração do sobretrabalho ao ponto de formatar a criação de um novo trabalhador coletivo. Nessa nova reconfiguração, além de versátil, esse corpo coletivo, que agora atua 24 horas por dia, é constituído por trabalhadores assalariados que podem se utilizar do trabalho de voluntários distribuídos por inúmeras regiões do globo terrestre. Conforme mostrado, existem inúmeros projetos de empresas capitalistas que utilizam essa nova condição de exploração, caracterizada pelas interações digitais entre trabalhadores de diversas áreas e voluntários especialistas, de maneira que esse novo trabalhador coletivo é constituído de trabalhadores assalariados que se utilizam dos conhecimentos dos voluntários. Nesse processo, o voluntariado potencializa a força do trabalhador coletivo, que passa a atuar a partir de um conjunto de saberes diversificados e globais. A constituição desse trabalhador de inteligência coletiva (LÉVY,

2011), que coloca as redes digitais como metáfora da cooperação, apenas expõe, de certo modo, nas condições da crise estrutural do capital (MÉSZÁROS,2009a), o processo de aprofundamento da precarização das relações de trabalho. Nesse sentido, o atual estágio da reestruturação produtiva exige do trabalhador assalariado tornar-se para si mesmo uma empresa (GORZ,2005), um empreendedor responsável por se voluntariar e arregimentar voluntários para aumentar a sua produtividade.

Quanto ao fato do trabalhador assalariado arregimentar voluntários para compor sua equipe de trabalho,Alves e Tavares(2006, p. 436) questionam as

[...] funções dos que incentivam e organizam desempregados para serem explorados pelo capital. Originários da classe trabalhadora, esses

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profissionais exercem sua atividade organizando e coordenando pessoas no sentido de reforçar a ordem capitalista e, em alguns casos, parece não se darem conta de que foram arrancados da sua origem para exercer uma função que os coloca em oposição a si mesmos.

Como o sistema capitalista não pode existir sem revolucionar continuamente as relações de produção, a colaboração em massa, enquanto parte do movimento de posição (e reposição) dos métodos de produção de mais-valia relativa, possibilita ao capital a busca por “[...] novas formas de organização do trabalho mais adequadas à autovalorização do valor.” (ALVES,2011b, p. 34), neste momento em que se atribui grande importância à informação. E é nesse contexto histórico que se presencia saltos de desenvolvimento tecnológico nunca antes vistos. Mas, apesar desse revolucionamento necessário ao desenvolvimento do capital, entendo que a colaboração em massa não caracteriza a inauguração de uma nova etapa da formação do capital industrial. Não é uma etapa pós-grande indústria, nem mesmo um novo capitalismo no contexto de uma sociedade da informação. Embora reconheça a existência de um processo de transformação social em curso, por meio do uso das máquinas informacionais, compreendo que o trabalho continua sendo central e, contraditoriamente, necessário à sobrevivência do capital.

Nesse contexto, as relações de produção, modificadas em sua forma pelo uso das redes informacionais, não colocam em xeque a organização do modelo de produção baseado na indústria. Em vez disso, na indústria, a subsunção real revela-se como plena, conforme asseveraSoares(2008, p. 126-127):

[...] a técnica produtiva já não é mais a antiga, é uma técnica nova, especificamente capitalista, na qual a subsunção do trabalho ao meio de produção não é mais apenas uma subsunção que pode ser captada no terreno econômico, mas é uma subsunção que se capta também no terreno material; ou seja, o trabalho é subsumido ao instrumento no sentido propriamente dito, que tem sua culminação na máquina; de fato o uso da máquina é a realização plena da subsunção real do trabalho ao capital.

Embora a introdução da maquinaria no processo produtivo tenha sido uma condição fundamental para que o capital pudesse subsumir realmente o trabalho aos seus interesses e se reconheça a atual universalidade do trabalho, as características da manufatura são revisitadas dialeticamente em alguns processos produtivos da atualidade, a exemplo da produção globalizada de programas informáticos. Isso pode ser evidenciado ao observar-se que as empresas de fabricação de sistemas computacionais mantêm seu quadro de programadores espalhado por vários países. Cada programador fabrica uma parte específica do código computacional, que depois é incorporada às outras partes, para então criar o produto final. Isso caracteriza a fragmentação da produção de sistemas computacionais, espraiada mundialmente. Como não poderia ser diferente, no capitalismo, a mercadoria software deixa, então, de ser um produto

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do trabalho individual para apresentar-se como resultado social de um conjunto de trabalhadores que realizam separadamente e simultaneamente operações específicas. Nesse processo, todos concorrem para um resultado coletivo que nenhum produtor isolado poderia alcançar.Castillo(2009), ao fazer uma análise da organização e divisão do trabalho nas fábricas de sistemas computacionais mundializadas virtualmente, mostra a importância que a padronização dos procedimentos de produção tem nos processos de criação de software. Embora a manufatura faça referência a um período anterior à indústria moderna, para o autor, essa fragmentação manufatureira torna-se fundamental na distribuição internacional dos trabalhadores envolvidos na produção desse tipo de mercadoria, tendo em vista a busca por “[...] trabalho barato, desqualificado ou semiqualificado.” (CASTILLO,2009, p. 26). Assim,

A estreiteza e as deficiências do trabalhador parcial tornam-se perfeições quando ele é parte integrante do trabalhador coletivo. O hábito de exercer uma função única limitada transforma-o naturalmente em órgão infalível dessa função, compelindo-o à conexão com o mecanismo global a operar com a regularidade de uma peça de máquina. (MARX,2008a, p. 404).

É oportuno ainda frisar que o desenvolvimento do capitalismo pela criação permanente de novos métodos de extração de mais-valia não é um processo linear, ocorre em sua processualidade dialética. O capitalismo não se desenvolve todo ao mesmo tempo, todo por igual. É um processo de desenvolvimento não linear, desigual e combinado, onde todas as etapas acontecem ao mesmo tempo pela combinação dos seus elementos constitutivos, em movimentos de avanços e retrocessos. Por exemplo, o trabalho manual, por mais rudimentar que seja, jamais é desprovido completamente de subjetividade. Na realidade, esses métodos “[...] são formas históricas de organização do capital que se repõem em cada fase de desenvolvimento do capitalismo, onde a grande indústria é a forma histórica em que o capital, como ‘contradição viva’, atinge seu pleno desenvolvimento categorial.” (ALVES,2011b, p. 34-35, grifo do autor). Por isso, o fordismo-taylorismo, por exemplo, não pode ser considerado um retorno à manufatura, mas como reposição desta forma de organização da produção capitalista nas condições materiais da grande indústria. Sobre isso, Moraes Neto (1989, p. 33) afirma: “[...] o fordismo, a linha de montagem, é um desenvolvimento da manufatura, e não da maquinaria. A linha de montagem leva ao limite as possibilidades de aumento de produtividade pela via da manufatura, do trabalho parcelar [...]”. Para os processos atuais que se reconstituem pelas redes informacionais, o trabalhador coletivo repõe, do mesmo modo, o princípio constitutivo da cooperação: um novo trabalhador coletivo, que inova e produz a partir de interações com os usuários dessas redes. Portanto, da mesma forma que o trabalhador coletivo da grande indústria depende do capitalista em relação ao processo produtivo, atualmente, a Ciência e a Técnica, incorporadas ao capital,

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são colocadas como condição indispensável ao ciclo de fabricação das mercadorias, como sendo primordiais ao trabalho do operário. E, em razão de tornar-se cada vez mais necessária à mudança no tipo de saber aplicado na produção (caráter científico, estranho ao saber-fazer operário), a captura da subjetividade do trabalhador apresenta-se como necessidade relevante para o capitalismo.

Quanto à organização da produção de sistemas computacionais, é importante ressaltar que o conjunto teórico aceito e praticado pela grande maioria dos analistas de sistemas4, busca viabilizar a modularização da produção de programas de com-

putador, de maneira que os trabalhadores de uma fábrica de software dividem-se entre trabalhadores de concepção e trabalhadores de execução. Os executores, programadores de computador, normalmente, não participam da etapa de concepção do projeto do sistema computacional a ser fabricado, tarefa do analista de sistemas. Normalmente, os programadores de computador têm apenas um pouco ou quase nenhum conhecimento dos demais módulos do projeto em que estão engajados. Esse caráter particular da produção de códigos computacionais possibilita o desenvolvimento de sistemas do tipo SL/CA, de maneira que as instituições organizadoras dessa forma de produção assumem a responsabilidade de concepção do produto do trabalho dos participantes das comunidades de SL/CA.

Convém ressaltar que a importância dos conhecimentos e da informação, tratados por alguns teóricos como elementos da imaterialidade, não é exclusividade do atual processo produtivo. A subjetividade do ser social sempre esteve presente em todos os processos de trabalho. No entanto, para o atual momento histórico, a novidade diz respeito à nova forma social do processo de trabalho que dá condições objetivas para ampliar a quantidade de sobretrabalho extraído. Nessa nova organização colaborativa, os resultados do trabalho dos voluntários são subsumidos pelo capital. Aparecem não como resultado da atividade do produtor, mas como resultado da produção e, portanto, passa a ser propriedade daquele que tem o encantador poder de gerar riqueza: o capital. Empresas envolvidas com esse processo de produção colaborativa, não se satisfa- zendo com a força de trabalho dos voluntários, utiliza também a mão-de-obra mais barata possível, a exemplo da contratação de crianças. Apenas para se ter uma ideia, a empresa Google, um dos símbolos da colaboração em massa, contratou em 2013 um adolescente de apenas 12 anos de idade para uma de suas equipes de programadores (GOOGLE. . .,2013).Marx(2008a, p. 453) descreve situação semelhante no século XIX, e quanto a isso afirma: “[...] antes, vendia o trabalhador sua própria força de trabalho, da qual dispunha formalmente como pessoa livre. Agora, vende mulher e filhos.”.

As condições materiais para colocar os trabalhadores em cooperação, mesmo

4 O analista de sistema é aqui compreendido como um profissional de Tecnologia da Informação que

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estando a distância, são dadas pelo complexo social das redes informacionais. Nesse novo processo produtivo, os produtores não precisam estar aglomerados em um mesmo local físico, como condição da criação da força social, as NTICs servem como meio de aproximação do novo trabalhador coletivo com o corpo de voluntários. Nesse sentido, a constituição dessas redes digitais “[...] permite que a natureza da ‘espoliação’ derivada do saber-fazer relacional se altere no sentido de que os benefícios da estrutura de integração sejam partilhados.” (ALVES, 2011b, p. 81). E no momento em que esse saber-fazer é compartilhado entre trabalhadores (sob a supervisão do capitalista) e entre trabalhadores e proprietários dos meios de produção, surge, então, mais um elemento mobilizador da captura da subjetividade do trabalho vivo pelo capital, um jogo sutil de contrapartidas, sob o estímulo da falsa ideia de construção coletiva de um outro mundo possível.

É bem verdade que “[...] a constituição das redes informacionais como nova base técnica da produção de mercadorias tem promovido importantes alterações no processo de trabalho e na produção do capital.” (ALVES, 2011b, p. 35). Além disso, não nego a importância instrumental das redes informacionais na composição de supercomputadores virtualizados (computação em grid) para estudos da cura da AIDS, por exemplo – processo no qual milhões de pessoas doam a capacidade computacional ociosa dos seus equipamentos para criar plataformas computacionais mais poderosas. Entretanto, ao mesmo tempo em que essas tecnologias avançam, o capital continua a depender da ampliação dos seus métodos de apropriação do trabalho excedente. Assim, os processos de modernização da produção, baseados nos recursos informacionais, alimentam a vontade do capital de se apropriar do sobretrabalho por meio, inclusive, do aumento da jornada de trabalho e da criação do exército industrial de reserva. Deste modo, à medida que são implementadas inovações tecnológicas e organizacionais, poupadoras de mão-de-obra assalariado, a exemplo da colaboração em massa, o desemprego aumenta (GORENDER, 1996a). Tal situação não é nenhuma novidade, está presente desde a introdução das primeiras máquinas no processo de trabalho, e podem ser evidenciadas no atual processo de precarização das relações de trabalho, mesmo para os trabalhadores informacionais5. E é nessa fase avançada do capitalismo que novas formas de extração

de mais-valia ocupam lugar de destaque nas estratégias do capital, na tentativa de promover ajustes necessários na esfera da produção, para que assim se dê continuidade ao processo de valorização do capital.

5 Curiosamente, no momento em que escrevo este parágrafo, chega a notícia de que um dos meus

colegas do curso de Ciência da Computação, 40 anos de idade, faleceu em decorrência de um infarto fulminante. Cessou a sua lida diária, a labuta de desdobrar-se entre a docência em uma universidade particular e um cargo de analista de tecnologia em uma instituição pública.

Parte II

A narrativa do capitalismo cognitivo no contexto da