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O positivismo da sociedade salarial fordista

1 A GRANDE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL E HISTÓ RICA CONTEMPORÂNEA

1.1 A crise da sociedade salarial fordista

1.1.3 O positivismo da sociedade salarial fordista

A Escola da Regulação, embora contribua para o debate a respeito do fordismo, comete o erro ao colocar as mutações técnicas como papel central na dinâmica social. Apesar das inovações terem a sua importância, é necessário frisar que a luta de classes continua sendo central no processo de transformações sociais. Nesse sentido, rejeitando a teoria da regulação, em prol de uma posição crítica e revolucionária,Farias(2001b, p. 87) adota o método marxiano de análise para demonstrar que “[...] nenhuma conquista será arrancada da classe dominante sob a bandeira regulacionista [...]”. Ele faz críticas aos autores da Escola da Regulação (Boyer, Coriat, Lipietz, Aglietta, Brender etc), revelando o positivismo da sociedade salarial2, onde os seus teóricos colocam como centro das transformações as mutações técnicas. Conforme a concepção dos regulacionistas, a sociedade salarial possui como seus principais agentes sociais, os capitalistas, cientistas, trabalhadores de empresas privadas e públicas, que agiriam para obter o progresso material (crescimento) e o progresso social (socialização), de maneira que todos esses

2 SegundoAglietta(1998, p. 44): “Sociedade salarial significa uma sociedade cujo desenvolvimento

ocorre sob impulso do capitalismo e onde a venda da força de trabalho é o meio preponderante de emprego.”.

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agentes estariam unidos pela dinâmica do progresso técnico, conforme representado na Figura2.

Figura 2 – Sociedade salarial

Fonte: FARIAS, F. B. de. O Estado capitalista contemporâneo: para a crítica das visões regulacionistas. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2001b. p. 90.

De acordo comFarias(2001b), o positivismo da sociedade salarial apresenta ao centro dessa sociedade os funcionamentos locais na produção de objetos e práticas de normalização das relações sociais (ver Figura2). Destarte, criticaFarias(2001b, p. 90):

Para a produção dos objetos, os fins dos capitalistas e dos assalariados são o progresso material. Para a normalização das relações sociais, os fins dos aparelhos contratuais e estatais são o progresso social. Para as atividades tecnológicas e científicas, os fins dos sistemas de inovação são o progresso técnico [...] Enfim, o motor do regime de crescimento e de socialização na sociedade salarial não seria mais a luta de classes, como na sociedade capitalista, mas a técnica.

Acreditar que o elemento dinâmico da sociedade salarial é o progresso técnico é uma forma de reificação, em razão de eliminar a dimensão da sociabilidade, inerente ao ser social. Na sociedade capitalista, isso serviria para ocultar a exploração do homem pelo homem e a luta de classes, colocando essas categorias por atrás do conceito de progresso técnico.

Considerando-se o movimento desta sociedade, inserida no modo de produção capitalista, a luta entre classes, como motor da história, apresenta-se como algo evidente (MARX; ENGELS,1999), a despeito do que defendem os regulacionistas. Para eles, a luta de classes não é fundamental para a análise que traça da sociedade salarial fordista, de maneira que os principais atores sociais estariam mobilizados no sentido de obter o progresso material que conduziria ao progresso social. É assim que a abordagem de

Aglietta e Brender(1984) deixa de fora a principal parte do processo: a população que é personificada na luta de classes.

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Embora, para os regulacionistas, a sociedade salarial caracterize-se por ter um elemento dinâmico que não seja a luta de classes (mas as inovações técnicas), segundo

Farias(2001b), entre esses teóricos, alguns não renunciaram totalmente a luta de classes, apesar do raciocínio básico entre eles não diferir muito. Assim, a Escola da Regulação se dividiu entre aqueles que achavam que a luta de classes deveria ser abandonada (tendência tecnicista) e outros que não a abandonaram totalmente (tendência politicista).

Com o passar dos anos, muitos regulacionistas passaram a dedicar seus estudos na construção das ideias sobre o capitalismo cognitivo (LAZZARATO,2003;PAULRÉ,

2001;DIEUAIDE; PAULRÉ; VERCELLONE,2003) e o capitalismo patrimonial (AGLIETTA; BRENDER,1984). Como o modelo japonês passou a não funcionar nem mesmo para o Japão3,Aglietta e Brender(1984) apresentaram uma solução nos 1990, ao dizer que as

inovações tecnocientíficas encontraram uma nova dinâmica, num tipo de inovação que ainda não se tinha pensando antes: as inovações financeiras (capitalismo patrimonial). As- sim, nesse raciocínio, continuaram a excluir o movimento da luta de classes, imaginado um capitalismo cujo a dinâmica resume-se às forças produtivas. Nessa perspectiva, eles definem o capitalismo patrimonial em função do papel desempenhado pelo aumento do número de trabalhadores acionistas e da importância dos investidores institucionais na governança das empresas, caracterizado por três fatores: mudança tecnológica, indivi- dualização e extensão do salariado e globalização financeira (AGLIETTA; BRENDER,

1984;OLIVIER,1998). Dessa maneira, para os regulacionistas, a sociedade salarial fordista foi metamorfoseada em capitalismo patrimonial pós-fordista, cuja dinâmica passaria a residir nas mutações financeiras neoliberais. Trata-se-ia, então, de reformar o capitalismo mundial para fazê-lo funcionar melhor.

Por sua vez, capitalismo cognitivo é definido como “[...] uma forma histórica emergente de capitalismo na qual a acumulação, isto é, a dinâmica de transformação econômica e social da sociedade, está baseada na exploração sistemática do conhecimento e das informações novas.” (PAULRÉ,2001, p. 10). A respeito disso,Braga(2004, p. 52) observa que, “[...] para os regulacionistas, no capitalismo ‘pós-industrial’, a ‘atividade cognitiva’ tornar-se-ia o fator essencial de criação de valor.”, de maneira que a luta de classes estaria ultrapassada e a figura do trabalhador como sujeito emancipado finalmente seria alcançada, uma vez que, nessa concepção, os conhecimentos tornar-se- iam o objeto da acumulação.

O pensamento em torno do surgimento desse novo regime de crescimento, de caráter cognitivo, têm sido formatado pelas ideias dos regulacionistas (Boyer, Coriat, Lipietz, Aglietta, Brender), que deslocaram, segundoFarias(2003), suas análises para esse novo tipo de capitalismo. Além destes, muitos outros autores também têm se encantado com essa idealização, a exemplo dos defensores do Software Livre, conforme veremos no

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decorrer desta exposição.

ParaDieuaide, Paulré e Vercellone(2003, p. 4), capitalismo cognitivo é

[...] um sistema de acumulação associado a um modo de produção capitalista, a um regime de acumulação que privilegia o conhecimento e a criatividade a um modo de regulação caracterizado por relações sociais fundamentais e de comportamento orientados para a inovação, a criatividade e o compartilhamento de direitos sobre estes.

No entanto, não faz sentido pensar em dois tipos de capitalismo (patrimonial e cognitivo). Na verdade, eles não são antitéticos. É, portanto, necessário compreender que o conjunto dos elementos históricos desse fenômeno, que foi denominado de capitalismo patrimonial, não é prejudicial ao desenvolvimento da Ciência e da Tecnologia, que permite, pela sua expansão, o desenvolvimento das forças produtivas. Todavia, é necessário vinculá-las a outras dimensões: financeira, luta de classes etc.

Os pressupostos da ideologia da emergência de uma nova economia, que repousam, sobretudo, na expectativa da aceleração dos ganhos de produtividade vinculados às novas tecnologias, apresentam a desmaterialização da produção como condição necessária a um crescimento maior e mais estável da economia em crise. Embora essa ideologia não seja capaz de apresentar “[...] nenhuma solução tecnológica para as contradições do capitalismo.” (HUSSON,2002, p. 9), seus falsos argumentos cooperam na construção desse novo modelo de desenvolvimento, de tipo cognitivo. Nessa concepção, esse modelo tem como princípio a primazia ao progresso técnico no seio de uma sociedade do futuro, situada na mundialização e para além do fordismo, tentando excluir “[...] a dinâmica da luta de classes do processo de mundialização neoliberal.” (FARIAS,2003, p. 142, grifo do autor).

O estudo de Farias (2003) mostra que o fracasso da ideia de um capitalismo cognitivo pode ser confirmado, inclusive, por meio da observação de dados relativos aos investimentos em tecnologia nos Estados Unidos, país onde se situa o ideal-tipo desse novo capitalismo, conforme representado da Figura3.

Os dados apresentados porFarias(2003), que mostram uma acentuada queda no volume de investimentos em tecnologia nos Estados-Unidos (país que serve de referência para os teóricos desse novo modelo de crescimento), ratificam que o capitalismo cognitivo, enquanto novo regime de crescimento, não é capaz de cumprir suas promessas de colaborar com a resolução da crise capitalista iniciada nos anos 1970.

Sob o pressuposto de que a medida da acumulação ocorre agora na dimensão do conhecimento acumulado no trabalho e não mais em termos de tempo de trabalho socialmente necessário, esse novo regime tenta colocar os bens imateriais (a informação, o conhecimento e o trabalho intelectual) como nova fonte do excedente. Nesse sentido,

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Figura 3 – Investimentos em tecnologia nos Estados Unidos

Fonte: FARIAS, F. B. de. A economia política do financeiro. Revista de Políticas Públicas, São Luís, v. 7, n. 2, p. 141–174, jul-dez 2003.

as inovações científicas e técnicas, enquanto forças produtivas, passariam a ter primazia na produção de riquezas, onde as interações entre as pessoas seriam capazes de fazer surgir “[...] uma sociedade do conhecimento (o capitalismo cognitivo), da informação, das competências, dos saberes, da cooperação, das externalidades.” (PALLOIX,2001, p. 279).Farias(2003, p. 7, grifos do autor) refuta esse pensamento, ao observar que

No momento de fazer novas prospectivas, os teóricos do capitalismo cognitivo não colocaram claramente, por um lado, as questões da explo- ração atual sob a base racional do valor e, então, da mais-valia (absoluta e relativa), assim como da subsunção (formal e real) ao capital; por outro lado, as questões da dominação atual das formas ideológicas, estatais e culturais burguesas. Assim, a concentração de poder não é meramente produto dos aspectos cognitivos do capitalismo atual, mas do resultado direto do desenvolvimento desigual inerente ao imperialismo [...]. Ao negar a exploração do homem pelo homem e ao rejeitar a ontologia marxiana do ser social, os teóricos do capitalismo cognitivo não conse- guiram evitar as experimentações terminológicas e as generalizações excessivamente precipitadas, sobretudo as que os levaram ao “excesso”, para se desfazer do marxismo a qualquer custo (PALLOIX, 2001b, p. 277-278) por um lado, afirmando a primazia da circulação sobre a produ- ção, a dissipação do aspecto material da mercadoria diante da ascensão do seu aspecto imaterial, etc.; por outro lado, negando a dialética da vida social e produtiva, que teria se tornado uma “interpenetração”, entre estes aspectos, “eminentemente problemática do ponto de vista dos fundamentos da valorização capitalista”.

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Com efeito, toda sociedade é uma sociedade baseada no conhecimento, mas é no capitalismo, a partir da década de 1970, que a ideia do surgimento de uma sociedade do conhecimento foi apresentada como novidade, na forma de um modelo de crescimento baseado no aspecto cognitivo do trabalho. Assim como também não é novo o fato do capitalismo apropriar-se dos conhecimentos dos assalariados. Nunca foi diferente em todo a existência do modo de produção capitalista. Sem dúvida, a apropriação dos frutos do trabalho coletivo (aí incluída a incorporação dos conhecimentos próprios ao trabalho coletivo, que não são pagos na forma de salário) torna-se um traço importante da contradição da relação entre capital e trabalho (FARIAS,2003). A respeito disso,Katz e Coggiola(1995, p. 64-65) mostram que “Os desenvolvimentos tecnológicos não fazem avançar a riqueza das nações, ajudam apenas a marcha atabalhoada do capital de uma crise para outra.”.

Embora hoje a parcela da população que transforma diretamente a natureza (trabalho manual) esteja diminuindo em alguns setores, é importante ressaltar que a concepção que coloca as atividades intelectuais como a principal fonte produtora de riqueza servem para mascarar as relações de dominação existentes em qualquer sociedade. E não é diferente na sociedade capitalista. Apesar da utopia informacional, muitas fábricas continuam ainda repletas de trabalhadores manuais (LESSA, 2008). A despeito das promessas feitas pelos regulacionistas, de uma forma geral, esses trabalhadores não migraram para atividades intelectuais e continuam a viver sob permanente ameaça de desemprego. Nesta era informacional, temos o caso das linhas de produção de equipamentos eletrônicos, onde se observa a ocupação de inúmeros postos de trabalho manual. Portanto, assim como no fordismo, a fábrica automática não acabou com o trabalho manual. A fábrica informatizada ou robotizada também não conseguirá fazê-lo. Isso porque as novidades do capitalismo cognitivo não contemplam o desaparecimento das contradições do capitalismo. Na realidade, as tornam mais palpáveis, sem ter condições de negar que a verdadeira fonte e a essência das diversas formas de lucro continuam sendo a mais-valia.

1.2

Reestruturação produtiva: ruptura e continuidade