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4.4 ESTRATÉGIAS DA DANÇA CONTEMPORÂNEA

4.4.2 A comicidade na cena da dança

O cômico, na dança contemporânea, tem se apresentado de diferentes maneiras. Algumas vezes está vinculado a clichês de estereótipos e produtos culturais no que se refere a gênero, consumo e ideal de corpo, interpretado por movimentos e gestuais engraçados. Diante dessa possibilidade, aponto, como exemplo, o grupo Dimenti, de Salvador, que se utiliza de algumas características dos desenhos animados para a criação.

No espetáculo, a comicidade esteve presente em determinadas situações cênicas, por exemplo, quando entravam os pregões (comentados na próxima seção), revelando a cultura cabocla característica do Ver-o-Peso, a partir do

[...] estereótipo do tipo caboclo com seus costumes, a maneira de andar, falar e vestir que reforçam a ação cômica e expõem o jeito simples do povo paraense que vive no interior, com sua forte e ímpar cultura ribeirinha, de regras restritas na alimentação, no cozinhar e no aplicar dos condimentos (PEREIRA, 2004, p. 56).

O caboclo do Ver-o-Peso é muito brincalhão, costuma zombar dos outros, contar piadas, inclusive envolvendo aspectos da feira. Esse jeito de fazer graça é evidenciado em várias situações do cotidiano, como na maneira de vender o seu produto, expresso tanto na fala quanto no gestual. Sobretudo ao narrar uma história, ele cita detalhes, faz gestos, enfim, recheia de criatividade o seu relato sobre um determinado fato.

Sublinho que o modo próprio do caboclo paraense é reconhecido e representado em outros contextos cênicos, como na peça teatral Ver de Ver-o-Peso, encenada desde a década

de oitenta, até os dias de hoje, e no Pássaro Junino107, no qual ganha destaque no quadro dos matutos.

A comicidade também foi visualizada na microcena apresentada pelos intérpretes- criadores Rose Marques e Augusto Corrêa que, além do gestual, recriaram a fala de dois bêbados, emitindo as seguintes palavras: “leão” e “papão”. Esses nomes referem-se a dois times rivais de futebol da cidade de Belém, respectivamente, o Remo e o Paysandu, times que são, constantemente, alvo de discussões entre os feirantes da feira do Ver-o-Peso. Para enfatizar a relação existente entre essa feira e a torcida organizada de um dos times, destaco a torcida Ver-o-Remo, do clube do Remo, que participa da maioria das partidas de futebol do clube.

Na cena dos bêbados, foi possível observar uma mudança na forma de se deslocar no espaço, provocada pelo desequilíbrio corporal, em um andar cambaleante, com uma leve curvatura na região dorsal da coluna. Percebo que, nessa cena, a comicidade surgiu como uma forma de encenar o não-sério ou o desvio do padrão de comportamento de outras pessoas, na feira. “No cômico, o corpo se faz presente, tem movimento, ações e peso; os defeitos, por mais leves que sejam nos fazem rir, pois todo o desvio é cômico [...]” (PEREIRA, 2004, p. 74).

Por sua vez, essa estratégia foi utilizada como uma maneira de aproveitar o potencial cômico do gestual dos intérpretes-criadores, os quais se apropriaram da espetacularidade do comportamento de bêbados que comumente transitam no espaço da feira. Nessa perspectiva, os intérpretes-criadores perceberam o caráter espetacular nos corpos de pessoas embriagadas, que falam alto e fazem tudo para chamar a atenção e serem vistas. Trata-se de uma espetacularidade do cotidiano, ou seja, não é arte, porém apresenta uma forma específica espetacular evidenciada, sem ter a função artística como dominante, conforme foi explicado na segunda seção.

Ao retomar o assunto da comicidade, agora em outra cena do espetáculo (figura 33), essa característica foi reconhecida quando um casal de intérpretes-criadores dançou no ritmo da guitarrada108, cujo som parecia vir de um microsystem posicionado na lateral do palco.

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Pássaro Junino é uma forma de teatro popular, também denominado de Pássaro Melodrama Fantasia. Essa manifestação acontece no período junino, em Belém do Pará e em outros municípios do estado. Tem em seu enredo a perseguição de um pássaro, e gira em torno da sua caça, morte e ressurreição. O espetáculo estrutura-se a partir de quadros que necessitam de um espaço apropriado para a sua encenação, com palco, camarim e cortinas.

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Guitarrada é um gênero musical paraense, criado pelo Mestre Vieira, nascido em Barcarena, município do Estado do Pará. Caracteriza-se por apresentar temas instrumentais em ritmos como o carimbó, o merengue e a cumbia.

Figura 33 - Experimentação e pesquisa de movimento da cena dos vendedores ambulantes de CD.

Fonte: Eleonora Leal, 2005.

Nessa cena, o intérprete-criador Baety Magalhães, como vendedor ambulante de CD, executou gestos e movimentos da dança de salão realizados de forma cômica. No lado oposto, estava o intérprete Fábio da Purificação, também como vendedor ambulante.

A cena se desenrolou como um jogo entre os vendedores, que disputavam quem possuía as melhores músicas desse gênero. Enquanto o casal de intérpretes, Marília Araújo e Maurício Souza, dançava no centro do palco as músicas tocadas no microsystem, em meio a outros intérpretes que apenas transitavam pelo espaço da cena.

A dose de comicidade apareceu nos gestos realizados pelo casal e pelos intérpretes vendedores de CDs, pois quando o casal estava dançando, um dos intérpretes-criadores, como vendedor, trocava a música.

Na troca da música, a intérprete Marília Araújo, aparentemente, aborrecia-se e logo retomava a dança com outra movimentação ainda mais agitada, frenética e engraçada, realizando giros e movimentos dos pés, com testa encostada sobre a testa do seu parceiro. De modo cômico, ela demonstrava que não gostava de certos gestos do seu parceiro, por isso dava um tapa no rosto dele, depois o empurrava com as nádegas e, também, levantava o joelho no meio das pernas dele.

realizados por ela, nessa cena, têm o seu próprio jeito de ser brincalhona e engraçada. O cômico está sempre presente no seu comportamento diário, por isso decidiu, durante o processo de criação, levá-lo para a cena. Além disso, seus movimentos coreografados caracterizavam o gestual do caboclo, o seu modo de dançar nas festas dos interiores e nos bairros periféricos da cidade de Belém.

De acordo com as cenas do espetáculo de dança descritas acima, concordo com o que diz Sampaio (2007, p. 37): “ele (o cômico) pode se aproximar muito da dança e, mais especificamente, da dança contemporânea, quando o corpo assume a impossibilidade de respostas definitivas”. Nesse caso, o corpo do intérprete-criador elabora variações de estados corpóreos, tornando o risível um estímulo para a criação coreográfica.