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3.2 VER-O-PESO: O ESPAÇO DO SENSÍVEL

3.2.1 Os cheiros: cheiroso e catingoso

A feira do Ver-o-Peso reserva uma quantidade de cheiros agradáveis advindos das frutas, das ervas e de outros aromas. No entanto, são infestados pela fumaça dos veículos, pelos odores do lixo proveniente de restos de comida estragada e acumulada nesse ambiente. Convivem lado a lado o cheiro cheiroso e o catingoso61.

No Mercado de Ferro percebe-se o cheiro do tucunaré, do pirarucu, do filhote, da dourada, da piramutaba, do acari, da pirapema, da pescada amarela, da anchova, da serra, da sarda, da gó, do tamuatá, dentre outras espécies de peixes de água doce e salgada. Nesse ambiente, as relações são quase assépticas; os vendedores trabalham de forma organizada, dentro de boxes, com roupas brancas, em contraste com o ambiente externo, a Pedra.

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Essa calçada, entre o rio e a rua, é um estreito corredor que abriga muitas pessoas em um ir e vir contínuo. O “pitiú62” do peixe entranha nos sapatos e nas roupas, pela água que vem das poças do chão ou pinga dos tabuleiros que passam sobre as cabeças dos carregadores apressados. O cheiro da maresia é bastante forte nesse entorno.

O Ver-o-Peso também cheira a tucupi que, em sua forma líquida amarelada, mistura-se ao pato assado, às folhas verdes do jambu63, da chicória64 e da pimenta. Há o aroma das frutas, que se unem aos cheiros corporais, em sua grande maioria, pelo suor, fruto do trabalho diário no calor do sol quente. Tais fragrâncias habitam a feira durante todo o ano. Especialmente por ocasião do Círio65 de Nossa Senhora de Nazaré, destacam-se a da maniva, utilizada para o preparo da maniçoba66 que, ao lado do pato no tucupi, são os pratos tradicionais do almoço do Círio.

Ressalto que o Círio de Nazaré é uma festa católica em homenagem a Nossa Senhora de Nazaré, a partir de uma procissão que acontece no segundo domingo do mês de outubro, na cidade de Belém do Pará. Os devotos percorrem as principais avenidas da cidade, acompanhando a santa em sua berlinda, com saída da Igreja da Sé, localizada no bairro da Cidade Velha (centro histórico de Belém), até a Praça Santuário de Nazaré, onde a imagem da santa permanece durante alguns dias para visitação.

Destaco que, nas adjacências do Ver-o-Peso, especificamente na Praça do Relógio, vê- se a berlinda67 com a imagem de Nossa Senhora de Nazaré, no início do trajeto do Círio, após a missa matinal. A berlinda contorna a praça até o Mercado de Peixe, percurso durante o qual são realizadas as homenagens do Sindicato dos Peixeiros e Feirantes, com uma grande quantidade de queima de fogos (figura 21).

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Pitiú é o odor forte e desagradável de peixe; cheiro de maresia.

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Jambu são folhas que apresentam flores amarelas em seus talos.

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Chicória é uma folha serrilhada usada como tempero na caldeirada de peixe e no pato no tucupi.

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Círio: esse vocábulo provém do latim cereus, “de cera”, que designa uma tocha grande como a vela pascal. Em Portugal e no Brasil esse termo refere-se às romarias ou procissões de grande porte, em celebração ao santo padroeiro do lugar.

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A maniçoba é feita da maniva. Como a maniva contém ácido cianídrico, precisa ferver por, aproximadamente, quatro dias. Depois, acrescentam-se as carnes: a carne seca, o toucinho, o chouriço, o paio, o bucho e outros ingredientes a gosto, tornando-a “adubada”, como dizem popularmente.

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Berlinda é o carro em que a santa é transportada, durante as procissões em homenagem a Nossa Senhora de Nazaré. É puxada pela corda dos promesseiros do Círio e decorada com flores naturais. Suas réplicas em variados tamanhos são carregadas na procissão e, em outros casos, enfeitam as residências.

Figura 21 - Praça do Relógio durante a passagem da imagem da santa no Círio de Nazaré.

Fonte: David Oliveira Júnior, 2010.

Para ver a santa em sua passagem pela feira, as pessoas aglomeram-se na Praça do Relógio, além de reunirem-se nas calçadas, no meio fio, em cima das árvores da Praça Dom Pedro II, nos barcos aportados no cais e nas marquises das casas comerciais. Na ocasião, os fiéis aplaudem, rezam, ouvem-se gritos68, além do choro emocionado estampado nos seus rostos.

Exala o cheiro de “fumaça, maresia, peixe e suores diversos. É o cheiro do Círio no Ver-o-Peso [...]” (SARÉ, 2007, p. 414). Na ocasião em que a procissão caminha pelas ruas do Complexo, há uma profusão de aromas que vêm das axilas dos vários corpos, daqueles que apenas assistem à passagem da santa e dos que acompanham a procissão.

Há, ainda, as cores e as formas dos enfeites, dos balões e das músicas em homenagem à santa e, na Avenida Boulevard Castilhos França, a berlinda é atrelada à corda para seguir o trajeto da procissão.

Também há o mau cheiro no entorno do Ver-o-Peso, resultado da urina depositada nas ruas e dos restos de comida e bebida. Afinal, após terem participado da Trasladação69, os promesseiros da corda passam a noite no local para marcar o seu lugar na corda, aguardando a saída da procissão ao amanhecer do dia seguinte.

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Gritos de “Viva Nossa Senhora de Nazaré” são emitidos pelos fiéis.

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Trasladação é a procissão que ocorre no sábado, com saída do Colégio Gentil Bittencourt, no turno da tarde. Esse colégio se localiza nas proximidades da Basílica de Nossa Senhora de Nazaré. A procissão então finaliza o seu percurso na Catedral Metropolitana de Belém, na Igreja da Sé. No dia seguinte, o caminho inverso se inicia, com a saída da imagem da santa dessa igreja, para retornar à Basílica, dando início ao Círio.

Das barracas de alimentação da feira vem o cheiro do peixe frito com açaí, do pirarucu; das barracas próximas ao rio, o da cerveja e do óleo diesel dos motores dos barcos. Já o perfume do patchouli, da priprioca, do alecrim e outros aromas vêm das barracas de ervas, além do colorido dos vidrinhos e do verde das folhas milagrosas. As ervas são indicadas pelas erveiras para serem usadas nas benzeções, simpatias e garrafadas preparadas por elas para chamar dinheiro, sorte e amor.

Em Outros Olhares, na cena das erveiras, podia-se ver uma bacia inox com ervas no centro do palco. No entanto, devido à distância entre o palco e a plateia do Teatro da Paz, o aroma só pôde ser sentido pelas intérpretes-criadoras.

Predominantemente mulheres, as erveiras precisam se destacar umas das outras a fim de venderem mais e obterem um lucro maior. Para isso, contam histórias, enfeitam-se, arrumam as suas barracas, enfim, fazem de tudo para chamar a atenção dos fregueses.

Verifico, no espaço da feira, a característica de ser formada “de um lado, pelo resultado material acumulado das ações humanas através do tempo, e, do outro lado, animado pelas ações atuais que hoje lhe atribuem um dinamismo e uma funcionalidade” (SANTOS, 2006, p. 106). Sentadas em seus banquinhos de madeira ou em pé, as erveiras transformam a organização do espaço, criam novas falas, novas situações e atualizam o ambiente, revelando- se como memória viva do passado.

Diferentemente dos perfumes das barracas das ervas, o mau cheiro vindo do lixo e da lama espalha-se em alguns lugares da feira, causando repugnância. Loureiro (2000, p. 283), ao poetizar o Ver-o-Peso, buscou construir, por meio das palavras, a imagem que aparece quando a maré baixa:

[...] A lama purificada, inocente, língua recoberta de asco,

a lama transbordante patamar de urubus festa de vermes. Lama.

O anti-cartão postal do Ver-o-Peso. E, no entanto, vida.

A vida mais original, porque negada. Ver-o-Peso.

Porto em que aporta uma cidade: Barca barroca

Com mastros de cimento armado.

Especificamente na Pedra, localizada às margens do rio, acontece a maior comercialização do pescado na feira. Ali, sobrevoam muitos urubus em busca de pedaços e

restos dos peixes espalhados; disputam os pedaços da carniça jogados no chão, construindo uma paisagem, não nos moldes dos cartões postais, mas conferindo ao Ver-o-Peso um estilo próprio e singular.

No final da manhã, sob o sol forte, as cores e os cheiros da banana, melão, abricó, pêra, mamão, abacate, tangerina, maçã, laranja, manga, melancia, uva, goiaba, abacaxi, manga rosa, acerola, maracujá, caju, graviola, e outras excessivamente doces, cítricas ou até de origem asiática, como a pitaya, contrastam com o cheiro forte do camarão salgado. Mas são as frutas regionais, encontradas em determinada época do ano, que chamam atenção, não só pelo seu cheiro e sabor, mas também pelos nomes: cupuaçu, bacuri, taperebá, uxi, biribá, pupunha, abiu, murici, tucumã, araçá, buriti ou miriti e tantas outras.

O Ver-o-Peso também cheira a quintal, que vem da parte de trás do Mercado de Peixe. Lá tem o pato, a galinha, o periquito, o porquinho da índia, dentre outras espécies de animais vivos.