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Para realizar a montagem do espetáculo, foi preciso exercer a função de professora- coreógrafa. Diante de um processo colaborativo, tal função se desenvolveu e se definiu no fluxo entre dois papéis: o de professora e o de coreógrafa. Nesse sentido, não cabia trabalhar separadamente cada uma delas, mas sim, estabelecer o seu entrelaçamento ao longo do percurso.

Entendo que para desempenhar a função de professora na disciplina Prática de Montagem II, não bastava apenas trabalhar o previsto no plano de ensino, sob o enfoque de repassar os conteúdos, mas, principalmente, “ensinar, abrir, construir, desconstruir, relacionar as leituras decorrentes dos diferentes papéis da dança às leituras que se desdobram e se multiplicam nos corpos dos alunos” (MARQUES, 2010, p. 47), para a compreensão da construção coreográfica.

No papel de coreógrafas, eram provocadoras do mergulho de cada intérprete-criador para dentro de si, em relação ao que viram e sentiram na pesquisa de campo, na busca de material para criar e construir a cena.

Durante o processo de criação, as mesmas possibilitaram um espaço no qual os intérpretes-criadores puderam experimentar as funções do coreógrafo, do figurinista, do cenógrafo e do iluminador, objetivando não só alimentar os debates no grupo, mas também pensar o processo em suas múltiplas dimensões.

Sobre isso, trago como exemplo o momento em que os intérpretes-criadores eram convidados a observar uma cena do espetáculo já pronta, tecendo suas análises e comentários relacionados à adequação da proposta e à passagem para a outra cena. Eles puderam perceber, então, que “compor e coreografar diz respeito, principalmente, a fazer escolhas” (MARQUES, 2010, p. 50), selecionando frases de movimento que dessem sentido à cena.

Em todas as etapas as professoras-coreógrafas eram provocadoras, coordenadoras e mediadoras, ao auxiliarem as ideias dos alunos. Os procedimentos adotados estabeleceram um ambiente no qual eles foram responsáveis pela construção do próprio conhecimento. Às professoras, coube mediar e criar um espaço favorável para que o processo se realizasse, permanecendo em uma posição de fronteira, agenciando o fazer educacional e o artístico. Naquele momento, agenciar foi estar no meio, no sentido em que Deleuze e Parnet (1998) propõem este termo.

O agenciamento permitiu propor caminhos para que os intérpretes-criadores se arriscassem na criação. Em outras situações, foi necessário mostrar-lhes formas de dividir o tempo da música, maneiras de realizar determinadas pegadas na coreografia dos duos, dentre outras tarefas que permitiam o fluxo de papéis de professor e coreógrafo. O primeiro contato dessa parceria com o grupo foi iniciada na disciplina Composição Coreográfica, durante o terceiro bimestre de 2005.

O trabalho do professor de dança desdobra-se e multiplica-se ao orientar na formação dos alunos e na transmissão do conhecimento coreográfico. Nesse caminho, ficou evidente, no trabalho com os intérpretes, o estímulo para o uso da maior liberdade na construção das cenas do espetáculo, a partir das investigações corporais e da exploração dos objetos cênicos. Ainda assim, foi necessário fornecer ferramentas que orientassem o processo de lapidação do material apresentado inicialmente pelo intérprete-criador, levando-o a encontrar a limpeza do movimento, em uma linguagem poética.

Remarco que as professoras-coreógrafas instigavam o grupo, trazendo questões, problemas e estímulos aos intérpretes-criadores, cujo feedback “não está vinculado a aprovações ou reprovações, a erros ou acertos, mas a apontamentos e reflexões que são construídos em coletivo” (MUNDIM, 2008, p. 123). Ao tomarem essas atitudes, demonstraram estar abertas ao aprendizado, à troca de ideias e ao diálogo.

No estágio inicial do processo de criação, “o ver, o olhar, o observar, o sentir [...] Toda essa experiência foi materializada, de maneira viva em associação com nosso ser e em relação com o mundo” (SÁNCHES, 2010, p. 52). A experiência vivenciada no Ver-o-Peso trouxe a possibilidade de enxergar as múltiplas significações que o ambiente poderia sugerir para a construção do espetáculo.

Após a pesquisa de campo, a tarefa destinada às professoras-coreógrafas era descobrir o grupo e como cada um poderia contribuir para uma determinada cena. No entanto, “nossa descoberta é também a descoberta deles, entrelaçadas, umas a outras no processo provocação - descoberta que faz surgir o submerso, através de frestas, espaços na memória, fazendo aflorar o que trazem como conteúdo” (SÁNCHES, 2010, p. 167). Destaco como principais descobertas aquelas que vieram das pesquisas corporais, nas quais os intérpretes-criadores puderam experimentar outras possibilidades de movimento.

Nas atividades diárias, o elenco explorava o exercício da pesquisa de movimento, dialogando com os demais componentes do grupo, como esclarece a intérprete-criadora

Mayrla Andrade24, em entrevista:

As discussões eram muito coletivas, eu lembro de vocês (professoras) sempre estimulando, dando as pistas e os caminhos. Os processos de criação eram muito coletivos, a gente estava aprendendo na verdade, um estava aprendendo com o outro. (informação verbal)

As tarefas distribuídas entre os intérpretes propiciavam a troca de conhecimento de distintas possibilidades de movimento, além de promover o compartilhar das ideias. Essa prática valorizava as habilidades e qualidades expressivas individuais, e, somada às condutas utilizadas nos laboratórios para o fomento à criação, despertava no intérprete a sensibilidade poética do fazer coreográfico.

Compreendo que no espaço da criação, os intérpretes-criadores “[...] se afetam uns aos outros, à medida que a relação que constitui cada um forma um grau de potência, um poder de ser afetado [...]” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 73). A proposta de um intérprete-criador para uma cena afetava ou era afetada por outros, em um entrelaçamento de opiniões; cada um com sua ideia, era como potência para o ato criador. Sendo assim, a potencialidade da dança no espetáculo esteve no próprio processo colaborativo da criação.

Nessa experiência, foi preciso estabelecer um ambiente de respeito, ao aceitar e incluir - ou não - a ideia de um dos componentes do grupo, para que não houvesse prejuízo à proposta estética do espetáculo. Em um dado momento, se o grupo não chegasse a um ponto em comum, as sugestões das professoras-coreógrafas eram integradas às criações, como tomadas de decisão determinantes à continuidade do processo.

Esclareço que em zonas de conflito ou nas situações de insegurança apresentadas pelos intérpretes-criadores, as professoras-coreógrafas intervinham, demonstrando que “para lidar com a criação, necessário se faz provocar e suportar as incertezas, não se livrar delas, produzir experiências de múltiplas tentativas, chegar aos limites, lidar com a sobra e com a sombra, com o lixo e com as pedras” (RANGEL, 2006, p. 312). As constantes dúvidas surgidas durante a construção coreográfica, para a intérprete-criadora Domitila Bastos, vieram da dificuldade em criar a própria movimentação, tendo em vista que antes desse processo só dançava o que era concebido pelo coreógrafo.

A criação passou por diferentes atividades desenvolvidas durante as aulas da disciplina Prática de Montagem II. Proporcionadas pelas professoras-coreógrafas, tiveram como base as

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Entrevista concedida à autora, em 22 de maio de 2010, na Escola de Teatro e Dança da UFPA, Belém - PA.

ações propostas por Iannitelli (2000): geração, interpretação, exploração, seleção, avaliação e estruturação.

Percebo que no caso do espetáculo, tais ações estiveram relacionadas aos procedimentos adotados em conjunto entre os intérpretes-criadores e as professoras- coreógrafas, e, “não se constituem como fases estanques, nem tampouco lineares” (IANNITELLI, 2000, p. 252). Isso significa dizer que, embora as cenas estivessem estruturadas, mudanças necessárias ocorreram até no ensaio geral, ou seja, novas explorações, ao mesmo tempo em que ocorria a estruturação. Compreendo que as fases detalhadas a seguir são interligadas e inseparáveis, ainda que não obedeçam a uma sequência ordenada.

Dessa forma, as ações decorrentes das atividades desenvolvidas no processo criativo são explanadas da seguinte maneira: a geração refere-se àquelas que estimularam os intérpretes-criadores para a criação a partir da pesquisa de movimento em improvisações com ou sem material. Na construção do espetáculo, eles foram instigados pelas professoras- coreógrafas e, até pelos colegas, à criação de sequências de movimento geradas por meio de distintas conexões.

O intérprete-criador Roberto Tavares25 descreveu em entrevista:

[...] Quando eu venho da minha cidade, eu vejo quando a maré tá seca, a gente vem pelo canal Pijó e é outra vista, porque a gente vê o rio Cafezal, o Guamá até chegar na Baía do Guajará e a gente atravessa essa orla e vê um monte de sarará dançando. Sarará é um caranguejo menor [...]. Eu também vejo os pescadores [...]. Eu narrei para eles que no barco algumas pessoas vêm dormindo, outras vêm contando histórias, outras cuidando de crianças [...]. Traduzir isso em movimento e dança, foi a parte mais difícil da coreografia. (informação verbal)

Esse intérprete-criador teve como estímulo o que via durante suas viagens de barco, de Barcarena a Belém, até chegar ao porto localizado na feira do Ver-o-Peso, retirando ideias dessas viagens, como material de composição coreográfica.

A interpretação faz referência ao ato de perceber e compreender os gestos e os movimentos que estão sendo criados, dialogando com a proposta da cena. Como exemplo, a intérprete-criadora Rose Marques partiu do movimento realizado pelo vendedor de farinha do Ver-o-Peso. Para convertê-lo à cena, refletiu sobre o gestual do vendedor, como ele tira a farinha de dentro do saco e, ainda, percebeu que alterações desse movimento corporal acontecem, em se tratando do peso, da fluência, se é um movimento contido ou não etc. Nessa

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Entrevista concedida à autora, no dia 02 de abril de 2011, na Escola de Teatro e Dança da UFPA, em Belém - PA.

atividade, destaco a importância da consciência do intérprete quanto ao que está executando. A exploração implica na manipulação dos elementos da dança, na possibilidade de criar novas frases de movimento, bem como explorar o espaço e o objeto de cena, quando utilizado.

Na construção da cena do açaí26, foi criada uma associação à queda das bolas, como se fosse o açaí na sua forma líquida e como cada um sentia esse líquido no corpo. A cada ensaio, essa cena foi ganhando uma amplitude de movimento em novas explorações, realçadas não somente pela experiência de cada um nas várias técnicas de dança, mas também, pelo que esse líquido representava em relação à sua cultura.

No espetáculo estudado, a exploração da cena permitiu que os intérpretes-criadores percebessem que, dentro de uma cena, poderiam acontecer várias situações. Foi então que surgiu a cena denominada situações diversas, a qual explorou o dia a dia da feira: o carregador empurrando o carro de mão, feirantes movimentando-se cotidianamente, o ir e vir dos fregueses, ônibus lotado de passageiros e outros aspectos desse ambiente foram inseridos.

A seleção acontece em vários momentos do processo de criação e está relacionada à tomada de decisões. No caso do espetáculo, ocorreu tanto por parte dos intérpretes-criadores quanto das professoras-coreógrafas, ao terem que selecionar frases de movimento e tomar outras resoluções no decorrer do processo de construção coreográfica.

A atitude de selecionar aconteceu do seguinte modo, segundo o depoimento da professora-coreógrafa Eleonora Leal27:

[...] quando tinha alguns alunos que estavam mais livres, eles viam também com a gente. Não era só o nosso olhar (de professora-coreógrafa) de lapidar a coisa, mas o olhar dos outros alunos, que estavam mais disponíveis ou até dos alunos que tinham mais experiência em coreografia e em participar de espetáculos. (informação verbal)

A ação de selecionar acontecia de forma proposital, a partir do momento em que as professoras-coreógrafas perguntavam aos intérpretes-criadores quais suas opiniões sobre uma cena ou o que lhes chamava a atenção. Assim, poderiam colaborar com o processo e ao mesmo tempo eram encorajados a olhar para o trabalho, exercitando a tarefa de selecionar durante a composição coreográfica.

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Açaí é o fruto da palmeira conhecida como açaizeiro, cujo nome científico é Euterpe oleracea. Em tupi, quer dizer fruta que chora. O açaí também se destaca por ser utilizado no setor de cosmético, farmacêutico, produto odontológico (placa dental), além da utilização de seu caroço para a confecção de bijuterias.

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Quanto à avaliação, manifesta-se, principalmente, ao término do ensaio (laboratório, cotidiano ou ensaio geral, os quais serão detalhados na quarta seção), o que não significa que durante a etapa inicial de pesquisa de movimento essa atividade não aconteça. Por exemplo, discutir sobre as motivações que o intérprete-criador necessitava para melhor explorar a cena. Nesse sentido, a avaliação acontece tanto a nível micro quanto macro do processo artístico.

Já a estruturação compreende a organização da cena e do próprio espetáculo no todo, envolvendo montagens e edições diante do processo colaborativo. Outros Olhares contou com a participação coletiva dos intérpretes-criadores, das professoras-coreógrafas e dos demais profissionais envolvidos no projeto.

O processo do espetáculo permitiu que todos estabelecessem uma relação de horizontalidade, discutindo conjuntamente as propostas ou sugestões na perspectiva de atender o grupo da melhor maneira possível. Nesse contexto, as professoras-coreógrafas se mantiveram numa posição de facilitadoras, coordenadoras e orientadoras, conforme já foi dito.

Para garantir a presença de grande parte dos intérpretes-criadores na montagem, foi preciso apresentar motivações, em um cronograma reajustado devido aos feriados e outros imprevistos, como o atraso na confecção do figurino das alunas na cena dos paneiros.

Compreendo que esse espetáculo foi além de um exercício cênico; foi uma espécie de prova pública, um instrumento de avaliação do desempenho do aluno na disciplina Prática de Montagem II, pois o contato com o público é uma experiência de fundamental importância na formação do intérprete-criador em dança.

Por se tratar de uma montagem com esse caráter, estabeleceu-se uma autoavaliação na qual cada intérprete-criador pôde se avaliar de modo crítico, em conjunto e aberto às proposições de cada elemento do grupo e não só das professoras-coreógrafas. Todos os intérpretes-criadores foram considerados aptos28.

Portanto, o espetáculo de dança surgiu de um processo em colaboração – o qual será explanado na próxima subseção – a partir de atividades práticas compartilhadas e da proposta do movimento ou da cena sugerida por qualquer componente do grupo.

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Os critérios de avaliação da disciplina Prática de Montagem II consideraram, além da frequência e participação nas aulas, as atividades desenvolvidas no processo de criação e montagem do espetáculo. Como resultado final, o intérprete-criador poderia ser considerado APTO ou NÃO APTO, procedimento avaliativo estabelecido pelo Curso Técnico em Dança, da ETDUFPA, à época do espetáculo.