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4.3 LABORATÓRIOS DE CRIAÇÃO

4.3.1 Estímulos para a criação coreográfica

4.3.1.1 Associações, sensações e percepções

Nos laboratórios de criação, os estímulos variaram a cada cena, explorados pela improvisação com ou sem objeto, dialogando com as sensações e as percepções, além das constantes associações realizadas pelos intérpretes-criadores, traduzidas coreograficamente.

No processo criativo do espetáculo, à medida que os objetos cênicos iam sendo apresentados para o elenco, os intérpretes-criadores tinham a oportunidade de escolher, dentre eles, com quais iriam iniciar a sua pesquisa, estabelecendo, assim, uma relação de identificação, a exemplo do carro de mão. Com isso, cada intérprete-criador tinha toda a liberdade de pesquisar e investigar as possibilidades de movimento a partir da interação com o objeto.

Do exemplo acima, a intérprete-criadora Luciene Cerqueira101, que escolheu trabalhar com o carro de mão, relatou em entrevista que, para a pesquisa de movimento com esse objeto, recorreu às lembranças da época do seu pai, conforme o seguinte depoimento:

Eu cresci com a visão do carro de mão, vendo o carro de mão todo dia, brincando com ele. Isso não era distante para mim. Então, eu fui lembrando do que eu fazia no carro de mão, eu lembrava que eu brincava muito com o carro de mão, ele emborcado, eu brincava com os braços e com a roda. Então comecei a experimentar o equilíbrio do meu corpo nos braços (do carro de mão) e eu comecei a pegar uma gestualidade de apoio nos braços, depois eu subia no carro de mão, exatamente como quando criança. Sendo criança, o carro de mão parecia uma coisa monstruosa para mim, para o meu corpo. Eu era pequena, subia e descia, e trouxe isso para a criação, para a cena. (informação verbal)

O ponto de partida para a criação foi a lembrança do que ela fazia com o carro de mão de seu pai, que trabalhava com este material. Quando ele chegava em casa, ela brincava com o mesmo de diversos modos, pulando sobre ele, subindo, mexendo em sua roda, nos seus braços, enfim, movimentos próprios de brincadeira de criança.

A memória auxiliou a intérprete-criadora a reconhecer fatos acontecidos na sua infância, recuperando situações pessoais vividas no passado que, por meio do imaginário, viabilizaram ideias para sua criação.

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Constatei que “as percepções interagem com a experiência passada, portanto, não é divorciada da memória. As sensações têm papel amplificador, permitindo que certas percepções fiquem na memória” (SALLES, 2010, p. 23). A intérprete-criadora tinha registrado em sua memória a brincadeira com o carro de mão e, ao fazer uso disso, transformou em cena de dança.

Verifico também que, no caso, a autobiografia da intérprete-criadora Luciene Cerqueira deixa de lado a sua característica pessoal, passando a ser compartilhada, como diz Santana (2007). A ideia de ser compartilhada parte do princípio de que, embora os movimentos tivessem sido criados com base em um relato pessoal, eles foram alterados, ajustados e partilhados com o grupo, tornando o discurso pessoal um discurso grupal, pois foi dividido com os integrantes daquela cena.

Entendo que a dança extrapola a execução de passos e gestos e passa a representar uma forte lembrança do passado ou, conforme Rodrigues (1997, p. 30), "a dança exerce a função de revivificar a memória”, alimentando o processo criativo coreográfico e enfatizando o relacionamento do intérprete com a obra, em diferentes intensidades e graus de proximidade. Acrescento que esse entendimento refere-se à memória não como um espaço apenas de lembranças, mas sim um lugar no qual “as redes de associações, responsáveis pelas lembranças sofrem modificações ao longo da vida” (SALLES, 2008b, p. 69).

Fica evidente que a memória seleciona e guarda certos acontecimentos passados. No entanto, há uma relação permanente entre memória e percepção, que modificam-se mutuamente; “não há percepção que não seja impregnada de lembranças, não há lembranças que não sejam modificadas por novas impressões” (SALLES, 2008b, p. 70).

Assim, a intérprete-criadora levou para o palco as suas memórias ou um pouco dela própria, imprimindo, nos movimentos encenados, imagens da vida cotidiana. O significado das percepções sobre o carro de mão estabeleceu sintonia com a sua história, utilizada como propulsora do seu processo de criação.

Para a construção da personagem mucura, a intérprete-criadora Nyl’ Lords se interessou pela história narrada pelo feirante do Ver-o-Peso José Luís de Freitas Pedreira - conhecido como Seu Rolha -, aos intérpretes Baety Magalhães e Augusto Corrêa, durante a pesquisa de campo à noite.

O feirante contou que a mucura era uma mulher com problemas mentais que andava pela feira. Ela era professora, porém, depois do parto ficou mentalmente perturbada. Usava uma bolsa que continha caneta, papel velho, caderno, batom e pente, mas quando alguém puxava a sua bolsa, se aborrecia, gritava e cuspia. Hoje em dia ela sumiu da feira e ninguém

sabe o seu paradeiro.

Contudo, Nyl’ Lords se apropriou dessa história e da observação de uma mendiga que ficava na porta do Colégio Estadual Paes de Carvalho, onde estudava. Cobria-se com muitos panos rasgados e segurava uma panelinha, que batia quando alguém passava por perto; na maior parte do tempo ela ficava lendo os jornais e as revistas que levava dentro de um saco.

Da associação entre a história narrada pelo feirante e as investigações feitas no seu cotidiano, surgiu a movimentação da intérprete, a qual será descrita na análise da primeira cena do espetáculo.

As ideias dos intérpretes-criadores iam se configurando a cada criação. A partir das relações “entre sensação, percepção e ação, começam a nascer os movimentos dançados, providos de imagem e memória, desabrochando-se em uma criação em dança” (LOBO; NAVAS, 2008, p. 77).

A correspondência existente entre a sensação e a percepção no ato de criar, na dança, é bastante clarificada no depoimento da intérprete-criadora Paula Lisboa102:

Aquela parte em que eu passava a mão pelo meu corpo, dobrava de um lado e de outro, só sei que eram três partituras corporais que eu fazia e que repetia até o final, na diagonal, que era a questão da sensação daquela fruta, quando passei pelo meu corpo e as sensações que eu sentia, que foi feito depois da visita ao Ver-o-Peso. Que é a questão da fruta, não a fruta passando pela minha boca, eu comendo, mas a sensação da textura, se ela era gelada ou quente, molhada, se o cheiro agradava no meu corpo ou só na minha boca. Então, foi um trabalho totalmente diferente, não a fruta para comer, mas a fruta que foi passada no meu corpo, a sensação no meu corpo. (informação verbal)

Na entrevista, a intérprete-criadora narrou que havia passado manga no seu corpo, no quintal da sua casa. Esse experimento revelou como o toque, especificamente, da fruta no corpo, ao entrar em contato com a pele, proporcionara diferentes sensações, a partir de sua textura, forma, temperatura e cheiro, os quais interferiram no processo criativo da intérprete. Demonstra-se, assim, que esse processo, além de estar ligado a uma experiência sensorial, também resultou na formação de ideias ou frases coreográficas.

O experimento foi o mote para o exercício de criar na dança, fazendo com que ela percebesse as suas possibilidades de movimento a partir das sensações do sumo da manga conforme ia secando e grudando no seu corpo. Diante dessas percepções, a intérprete-criadora pesquisou sua movimentação, apresentada na primeira cena do espetáculo.

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Entrevista concedida à autora, no dia 14 de maio de 2010, na Escola de Danças Paula Lisboa, em Belém- PA.

Outros Olhares envolveu práticas dentro de um grupo que, na tessitura da

singularidade humana, estavam vinculadas à subjetividade de cada um, envoltos por suas sensações e percepções, em um processo contínuo de trocas que se entrelaçavam como uma rede de ideias para a composição das cenas.

As investigações corporais propostas nos laboratórios evidenciaram as estratégias desenvolvidas na construção do espetáculo, a fim de propor novos modos de organização de criação, multiplicando ideias e ações relacionadas à realidade dos intérpretes-criadores.