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4.4 ESTRATÉGIAS DA DANÇA CONTEMPORÂNEA

4.4.1 A liberdade criativa

Atualmente, a liberdade criativa encontra-se presente nas construções em dança, podendo-se destacar que toda a sua ebulição é originária dos princípios do pós-modernismo artístico. Por volta de 1960, os artistas de vanguarda formaram, por meio da arte, uma

comunidade constituída do seguinte modo: “Era uma comunidade alternativa, que considerava os estilos folclórico, popular e subcultural ou transgressor, assim como, o rito religioso, como meios de rejeitar, tanto a geração de artistas precedente, como o sistema sociopolítico”. (BANES, 1999, p. 23).

O movimento libertário e transgressor iria se multiplicar nesse período. Em cena, havia bailarinos e não-bailarinos, rompendo com a visão da cena formada por corpos advindos das técnicas de dança e que expressassem somente o virtuosismo.

Especificamente em Outros Olhares, e em relação à liberdade criativa, grifo a característica da não negação de linguagens, quando, por exemplo, se via movimentos da dança popular ou da dança de salão diluídas nas cenas do espetáculo.

Essas diferentes linguagens de dança apresentadas pelo elenco fizeram com que o processo buscasse valorizar o potencial de cada um dos componentes do grupo, respeitando as suas limitações e o que cada um tinha de melhor, como ressaltou a intérprete-criadora Mayrla Andrade103, em entrevista, no seguinte depoimento:

Mas o que era muito legal da nossa turma era que cada um vinha mesmo de uma área diferente. Por exemplo, o Fábio vinha de uma área popular, o Gleidson vinha de uma área do folclore, junto com a Ghislaine, o Augusto vinha da área do balé clássico, mas com o jazz muito forte no corpo dele, eu vinha da área do balé clássico, mas com a dança contemporânea já introduzindo isso, essa liberdade de movimento, a Domitila vinha do balé clássico muito forte, era especificamente clássica. Vinha o Roberto com a cultura popular muito forte, o Baety que tinha uma experiência com alguns estilos de dança, mas que vinha de uma formação de conseguir passear pela quadrilha e pela dança de salão, o Maurício que veio especificamente da dança de salão, junto com a Marília, que é da dança de salão, inclusive, fizeram a cena da dança de salão. Essa pluralidade de estilos foi a grande sacada de Outros Olhares. (informação verbal)

O modo de condução do processo teve como objetivo acolher as contribuições de corpos tão diversos enquanto ponto de colaboração, troca e, também, como um motor propulsor da pesquisa de movimento, reunindo, no contexto da obra, as características individuais peculiares, de forma harmoniosa. Então, cada um, com seu repertório de possibilidades, contribuía para a criação.

O grupo heterogêneo oferece aprendizado para todos os envolvidos no processo. As vivências de diferentes linguagens de dança de cada um dos intérpretes-criadores trouxeram para o espetáculo um diferencial. Nessa

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Entrevista concedida à autora, no dia 22 de maio de 2010, na Escola de Teatro e Dança da UFPA, Belém – PA.

condição, os mesmos carregavam, em seus corpos, além de suas características biopsicossociais, a conectividade destes com as linhas de movimento relativas às suas experiências corporais104. (informação verbal)

Daolio (1994, p. 39) explica que “no corpo estão inscritas todas as regras, todas as normas e todos os valores de uma sociedade específica, por ser ele o meio de contato primário do indivíduo com o ambiente que o cerca”. Sob esse aspecto, no corpo dos intérpretes- criadores estavam registradas as informações particulares de cada um, que refletem diferentes modos e estados de ver, sentir e de estar no mundo.

No processo em questão, não havia uma preocupação em trabalhar com uma técnica específica de dança - o balé clássico ou a dança moderna, por exemplo - como base para a criação coreográfica, mas sim, instigar o intérprete a explorar a sua disponibilidade corporal ou a sua entrega para atuar como criador nos processos coreográficos.

Na seguinte assertiva, Nachmanovitch (1993, p. 30) esclarece que “entregar-se significa cultivar uma atitude de não saber, nutrir-se do mistério contido em cada momento, que é certamente surpreendente e sempre novo”. A entrega aconteceu em todas as fases do processo de criação e, principalmente, durante a pesquisa de movimento, nos laboratórios de criação, como um exercício de especulação, donde brotavam novos movimentos e descobertas, provocando uma abertura para o desconhecido e para a experiência reflexiva do movimento.

Foi a partir dessa possibilidade de entrega que os intérpretes-criadores tiveram a oportunidade da criação de acordo com as suas idiossincrasias. Sob esse ponto de vista, os mesmos se aproximaram da pesquisa e da experimentação de movimento na busca de um gestual que correspondesse às necessidades de expressão próprias dos seus corpos e mais próxima dos movimentos cotidianos da feira.

Dessa liberdade criativa, algumas características vão ser recorrentes na linguagem da dança contemporânea, como lista Mundim (2008). Fundamentada em tais características, relacionei as que se encontram presentes no espetáculo, nos comentários a seguir.

A (des) hierarquização do corpo significa que o movimento pode iniciar de qualquer região corpórea, sem necessariamente partir do eixo central da coluna. No espetáculo, essa característica foi percebida em diferentes cenas e, principalmente, naquelas que foram improvisadas.

Nos laboratórios de criação, os intérpretes-criadores, além de terem experimentado diferentes pontos de apoio a cada posição do corpo no espaço, evidenciaram distintas partes

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corporais como propulsoras do movimento - por exemplo, o quadril, o ombro, a cabeça e outros.

A (des) hierarquização do espaço é a compreensão de que em uma mesma cena muitas situações acontecem ao mesmo tempo e o espectador escolhe onde focar o olhar. No espetáculo, via-se microcenas distribuídas no palco, descartando a ideia do bailarino principal ao centro, e o corpo de baile ao fundo, como nos balés de repertório.

Quanto ao posicionamento do corpo no espaço, os intérpretes-criadores utilizaram vários pontos de referência, como diagonais, frente e atrás, tomadas por meio de deslocamentos e movimentos que aproximavam-se de uma gestualidade cotidiana da feira.

Rolamentos ocorreram no chão, imprimindo à gestualidade uma horizontalidade. Nesse aspecto, sublinho que as coreografias tiveram, em sua composição, a exploração dos níveis baixo, médio, alto e aéreo (no caso das redes).

A pesquisa corporal teve como investigação o gestual do dia a dia dos feirantes, fregueses, carregadores e vendedores de peixe do Ver-o-Peso, a partir de um processo de observação do movimento.

Enfatizo que os gestos cotidianos tornaram-se importante fonte de construção de movimento na dança desde o século XVIII, a partir dos trabalhos de Noverre105, passando pela dança moderna, a exemplo de Doris Humphrey106, e na dança pós-moderna, fruto do movimento americano que procurou construir repertórios gestuais sem relação com as formas de dança existentes.

Silva (2008, p. 195) comenta que “um dos conceitos-chave da dança pós-moderna é

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Jean-Georges Noverre (1727-1810) foi o criador de uma obra teórica, escrita em forma de carta intitulada Cartas sobre a Dança, na qual expôs várias reflexões sobre o balé clássico. Noverre propôs o balé de ação para estabelecer os fundamentos para as modificações na dança. No balé de ação, a dança faz uso do gestual e da pantomima, opondo-se ao simples mecanismo de passos. Após ter sinalizado a necessidade de uma ação conjunta de todos os elementos que compõem um espetáculo de dança, Noverre conferiu maior autonomia à dança cênica. Laban (1990) destacou o trabalho de Noverre, apontando como uma de suas grandes ações, a de apreender gestos e movimentos cotidianos de sua época e levá-los para a cena, procurando criar novas expressões de movimento. Dessa forma, Noverre já relacionava os movimentos de dança aos movimentos ligados ao trabalho e ao cotidiano, pois compreendia que os movimentos realizados pelas danças campestres e pela nobreza eram inadequados para o homem dos centros industriais que começava a despontar. Nesses lugares, os homens se especializavam em desenvolver tarefas no interior das fábricas, empregando movimentos repetitivos e pouco diferenciados.

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Doris Humphrey (1895-1958) foi aluna da Denishawn School e sua técnica tinha um princípio básico relacionado à queda e à recuperação. Essa artista concebeu a dança a partir dos movimentos da vida. Para isso, estudou os gestos e classificou-os em gestos sociais, que são os gestos do dia a dia; gestos funcionais, ligados aos do trabalho, competindo ao bailarino apreendê-los e recriá-los simbolicamente, sem que percam suas ações originais; gestos rituais, os quais se referem à magia e à religião e, por fim, os gestos emocionais, que são aqueles de que não se tem modelos porque emanam de nosso mundo interior.

justamente celebrar e levar ao palco o movimento na sua naturalidade cotidiana, buscando realizar leves abstrações para que ele se torne identificável pelo público”. Os artistas passaram areconhecer, nos movimentos e ações do dia a dia, como sentar, correr, caminhar, vestir-se e outros gestos, anúncios de uma dança que dialogava com a realidade cotidiana.

A improvisação ocorre como manifestação criativa e também é realizada no momento da cena. Assinalo que na década de setenta, Steve Paxton iniciava o Contact Improvisation, técnica cujo principal fundamento é dançar com alguém de um modo não planejado e, sim, por meio do contato com o outro. O movimento nasce espontaneamente e cada um dos intérpretes está livre para criar. O improviso pode surgir do contato do corpo com os elementos do espaço que o cercam, ou do contato com o próprio chão ou com o objeto.

Na criação do espetáculo a improvisação foi utilizada tanto individualmente, voltada para a pesquisa de movimento, quanto com objetos e com o corpo do outro. Nas cenas do açaí e das erveiras, os intérpretes-criadores improvisaram, como uma espécie de composição instantânea, realizada no momento da cena.

Algumas indicações foram dadas para a improvisação na cena, por exemplo, a delimitação do espaço, os níveis em que os intérpretes-criadores poderiam executar o movimento, constituindo um improviso estruturado ou estudado. As improvisações estudadas são aquelas que podem ser “revisadas e reestruturadas durante certo tempo, antes que o público possa desfrutá-las” (NACHMANOVITCH, 1993, p. 19). Nesse caso, havia uma marcação que não impedia a livre improvisação no ato da cena.

A valorização do singular na relação com o coletivo propõe que as possibilidades técnico-criativas de cada intérprete-criador trazem contribuições significativas para o trabalho com o grupo. Logo, todos que dançam são valorizados.

O processo do espetáculo envolveu práticas dentro de um grupo que, na tessitura da singularidade humana, estavam vinculadas à subjetividade de cada um, envoltos por suas sensações e percepções.

Assim, compreendo que ao proporcionar experimentações e pesquisas, durante a criação, o intérprete-criador deixa suas marcas, revelando seus encaminhamentos, suas escolhas e suas próprias maneiras de se relacionar com os objetos, com o espaço e com os outros, ampliando a rede de significados na cena coreográfica.

A valorização do processo na relação com a obra é reconhecida nesse espetáculo, principalmente por se tratar de uma montagem prática resultado de uma disciplina de curso. O processo ganhou importância a fim de que as experiências compartilhadas e os laboratórios vivenciados servissem como exercício cênico para os intérpretes-criadores.

Acrescento às características acima comentadas, a interdisciplinaridade como algo que acolhe, no momento da construção, elementos do teatro, do circo (tecido aéreo), das artes plásticas. Particularmente em Outros Olhares, é uma característica percebida a partir do uso da voz diante do texto falado e do recurso do vídeo, utilizado como cenografia.

Esse espetáculo tratou de um processo que não excluiu ninguém; ao contrário, foi capaz de acolher diferentes linguagens de dança dos intérpretes-criadores em uma mesma montagem. Com isso, insere-se no cenário da dança contemporânea, associando, a esse aspecto, outras possibilidades de movimentos e de gestuais, no trânsito livre de ideias e experimentações, proporcionando cenas carregadas de certa comicidade, como retrato da feira, as quais foram convertidas em cena coreográfica.