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4.4 ESTRATÉGIAS DA DANÇA CONTEMPORÂNEA

4.4.3 A construção do corpo pela via do processo criativo

Da forma como vem sendo pensada nos dias de hoje, a dança contemporânea caracteriza-se por princípios que incluem, principalmente, questões corporais como mola propulsora do movimento e da criação. Nesse sentido, a dança vai se organizar de acordo com o pensamento que norteia a obra, a qual abrange uma construção particular de corpo.

Silva (2005, p. 193) esclarece essa ideia no seguinte discurso: “o corpo na dança, hoje, constrói-se separadamente para cada montagem e nele estão inscritos as particularidades do seu momento, da sua cultura, das suas possibilidades, que são inúmeras”. As montagens, em dança contemporânea, não se preocupam em reproduzir um vocabulário de movimentos predeterminados como os estabelecidos pelo balé clássico e pela dança moderna, mas sim, em mostrar um corpo resultado da pesquisa e da experimentação dos laboratórios corporais a partir da própria esfera sensível e cultural de cada intérprete-criador.

Para se preparar o corpo ou criar na dança contemporânea sem, meramente, reproduzir uma técnica, muitos coreógrafos têm buscado, para cada processo, diferentes práticas que vão da Educação Somática109 a outras atividades corporais.

Os métodos de Educação Somática se tornaram um aliado da dança contemporânea, ao buscar ampliar as possibilidades de movimento para a cena. Ainda nessa relação, surge um

109

A Educação Somática, de uma maneira geral, está comprometida em promover o bem-estar e a saúde corporal, levando em consideração o indivíduo como um ser complexo, a partir de seus domínios físicos, emocionais, sociais, psíquicos e espirituais. Essa educação se desenvolveu a fim de reeducar os movimentos para que o indivíduo realize-os com o máximo de aproveitamento e o mínimo de esforço, com um olhar voltado para a percepção do seu corpo. A Educação Somática corresponde a diferentes métodos de trabalho corporal como, por exemplo, o Feldenkrais, a técnica de Alexander, a Ideokinesis, entre outros.

procedimento voltado para a escuta do próprio corpo e o respeito ao corpo do outro, conduzindo o intérprete-criador a um grau maior de liberdade da estrutura, da funcionalidade e da percepção corporal.

A pesquisa de movimento e as constantes experimentações constituíram-se como preparação e treinamento dos intérpretes-criadores. A construção corporal se fez no próprio processo criativo coreográfico, à semelhança de muitos grupos, como o grupo Tran Chan, de Salvador, exemplificado por Silva (2005), em seu livro Dança e Pós-Modernidade.

Ressalto que no processo do espetáculo, não se trabalhou com um corpo delineado por uma linguagem específica de dança, mas, principalmente, buscou-se a dança no corpo de cada intérprete-criador.

Consequentemente, os corpos não seguem um modelo estereotipado do corpo da bailarina clássica e nem modelos específicos para determinado gênero. “A dança parece querer, de fato, expressar a multiplicidade corporal feita de músculos, ossos, nudez, imperfeições e qualidades do ser humano, para uma plateia que se identifique com o que vê” (SILVA, 2008, p. 36). Logo, na dança contemporânea, não há mais um padrão a ser seguido.

O elenco do espetáculo possuía integrantes jovens e magras, ao lado de outras mais maduras. Os corpos dos intérpretes-criadores eram diversos, havendo diferentes estaturas e pesos corporais.

A construção dos corpos dos intérpretes-criadores foi conduzida pela via do processo criativo do espetáculo, resultado das relações de troca e de articulações de saberes entre eles, que se encontravam em diferentes estágios de amadurecimento.

A conversão dos gestuais dos feirantes, dos objetos e de situações do dia a dia da feira, apoiou-se em uma tradução do cotidiano para tornar-se cena coreográfica, o que significa dizer, uma transfiguração. Na seção seguinte, esse processo será desenvolvido a partir do conceito da conversão semiótica como revelador da cena diária do Ver-o-Peso e da criação na dança.

5 O VER-O-PESO NA CONVERSÃO SEMIÓTICA DE OUTROS OLHARES

[...] O corpo na dança se faz um duplo ser, unidos braço a braço, perna a perna, torso e ventre, ventre e torso,

unidos corpo e dança, dança e corpo, casto coito entre o sonho e a realidade. Ora um ora outro torna-se visível.

A dança é língua enquanto o corpo é fala. A dança, como um pássaro voando,

é sempre a solidão sem asas de um abismo. Contemplá-la é contemplar as nuvens atados à terra que nos prende ao chão.

Impossível separar dança e imaginário. O gesto que dança do corpo na dança [...]

(LOUREIRO – Hino à Dança)110

Nesta seção, demonstro, por meio da aplicação do conceito da conversão semiótica, dos estudos de Loureiro, a transfiguração do cotidiano da feira do Ver-o-Peso no espetáculo

Outros Olhares. Sobre esse aspecto, apresento o trânsito da dominância simbólica de um

signo de uma dimensão para outra, como, por exemplo, do prático para o estético.

Com base neste estudo, utilizarei a expressão semiótica coreográfica, com a intenção de tornar clara a compreensão relativa à investigação dos processos coreográficos do espetáculo do qual participei como professora-coreógrafa.

Entendo a semiótica coreográfica como uma linha segmentar da conversão, o que implica dizer que de acordo com o pensamento de Deleuze e Guattari (1995, p. 11), não é uma linha de ruptura, mas de “articulação ou segmentaridade, estratos, territorialidades”. Ela é percebida como parte do todo, articulando-se aos fundamentos da conversão semiótica, sem pretender ser uma linha de fuga, mas apresenta uma complementaridade relacionada à análise coreográfica.

Do processo criativo, verifiquei que, tanto no ato colaborativo explanado na segunda seção, quanto nas criações apresentadas na quarta seção, a construção coreográfica foi

110Trecho do poema Hino à Dança, de autoria de João de Jesus Paes Loureiro, retirado dos anexos da

conduzida pelo caminho da transfiguração, neste momento reveladora do dia a dia da feira por meio da visualidade e da sonoridade, bem como da movimentação dos intérpretes-criadores no espetáculo.

Desse modo, descrevo as doze cenas, levando em consideração os gestuais e os deslocamentos dos intérpretes-criadores em suas sequências coreográficas. Para isso, parti da análise das fotografias e do vídeo, acrescida das informações que compartilhei no processo de criação.