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A complexidade das questões sociocientíficas

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3. QUESTÕES SOCIOCIENTÍFICAS NA EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS: O QUE

3.4. A complexidade das questões sociocientíficas

Um ponto de partida para compreender a complexidade das questões sociocientíficas é diferenciá-las das questões que comumente estão presentes no ensino de ciências escolar. Os problemas acadêmicos, geralmente abordados na escola e as QSC possuem natureza epistêmica diferente. Ao considerar a resolução de um problema escolar acadêmico tem-se, desde o início, uma definição completa do mesmo e um resultado único é esperado. A solução é desenvolvida sob o foco disciplinar, usando-se muitas vezes algoritmos, e pode ser avaliada como certa ou errada.

No entanto, o debate em torno de QSC aponta que a resolução de um problema que se insere na vida do cidadão, possui uma natureza epistêmica complexa, dado que os problemas concretos do cidadão não se mostram a partir de uma questão tão bem definida, quanto os problemas acadêmicos escolares. Os resultados podem encerrar alternativas múltiplas, e a solução é tomada sob o foco multi e/ou interdisciplinar, envolvendo diferentes aspectos por meio de discussões e análise de custos/benefícios. Com base nessas considerações, Fensham (2012, p. 12) aponta

algumas das principais diferenças entre os problemas escolares acadêmicos e as QSC, conforme o quadro 4, a seguir:

Quadro 4: Comparação das características das Questões Sociocientíficas com a ciência escolar tradicional Ciência de questões sociocientíficas Ciência da escola tradicional

Interdisciplinar Disciplinas discretas

Multidisciplinar, incluindo aspectos não científicos. Aspectos não científicos são usados apenas para motivação

Alguns conhecimentos são incertos O conhecimento está firmemente estabelecido As perspectivas científicas sozinhas podem distorcer a

realidade dos problemas.

O conhecimento da ciência só é necessário para idealizar situações.

São possíveis e prováveis várias soluções, não uma única solução correta.

Os problemas têm uma única resposta correta, muitas vezes envolvendo a reprodução de conhecimentos estáticos e aplicações simples de princípios.

Lida com a incerteza, apresentam ideias de risco, o raciocínio se baseia na confiança da fonte e no argumento como características das soluções.

O raciocínio científico tem uma racionalidade que não inclui risco e probabilidade. Confiar na fonte e no argumento não são características que devam ser levadas em consideração.

Fonte: FENSHAM, 2012, p.12.

Para além dessas considerações em relação à comparação de problemas acadêmicos escolares e as QSC. A dimensões social, ambiental, humanística, política, cultural, econômica entre outras, que podem envolver a abordagem desses problemas apontam que as diferentes representações de um mesmo contexto e revelam a complexidade do mundo e da realidade. A realidade é complexa bem como suas representações.

No debate específico sobre uma QSC, está imbricada essa complexidade do mundo e de suas relações. Tendo em vista que diferentes elementos e aspectos são considerados tanto para a representação dos conhecimentos em suas dimensões epistemológicas, ontológicas e axiológicas, quanto para a compreensão de como essa realidade se apresenta e do que está em jogo quando um QSC está sendo discutida.

De acordo com Bar-Yam (1992), no contexto da teoria da complexidade um sistema complexo pode ser definido como um conjunto de partes que interagem dinamicamente em função de um mesmo fim, podendo-se considerar uma turma (alunos e professor) como um sistema com agentes diversos (o professor, o aluno, os outros alunos, os manuais, as ideias, os saberes etc.) que partilham um objetivo comum – a construção do conhecimento.

Coutinho e Júnior (2007) definem que o que caracteriza um sistema complexo e o distingue de um sistema simples é o fato de:

a) ser constituído por uma muito maior variedade de componentes ou elementos que, por sua vez, se organizam em níveis hierárquicos internos (por exemplo, no corpo humano: as células, os órgãos, os sistemas de órgãos); e,

b) os diferentes níveis e elementos individuais estarem ligados entre si por uma grande variedade de ligações. À noção de complexidade liga-se, portanto a de variedade dos elementos e das interações; da não linearidade das interações; da totalidade organizada.

Fensham (2012) já sinalizava para a complexidade dessas questões ao apontar em seu artigo

“Preparando cidadãos para um mundo complexo: O Grande Desafio do Ensino de Questões sociocientíficas na educação científica”, uma série de questões amplas que no âmbito da ciência e

da tecnologia se caracterizam como grandes desafios da atualidade. Entre outras questões o autor aponta: Ciclos biogeoquímicos, mudanças climáticas, diversidade biológica, previsão hidrológica, doenças infecciosas, melhorar as vacinas infantis, controlar insetos e a transmissão de doenças, melhoria da nutrição, minimizar os organismos resistentes a medicamentos, gestão de carbono, combustíveis renováveis, química verde, análises do ciclo da vida, aquecimento global (níveis do mar, etc.), combustão de carvão de forma limpa, eletricidade solar, gerenciar o ciclo de nitrogênio, acesso a água limpa, sequestro de carbono, ciberespaço seguro, prevenir o terrorismo nuclear, fusão de energia, etc.

De acordo com Fensham (2012), essas questões mais amplas são grandes desafios no mundo moderno, exemplos de uma classe muito maior de problemas reais que a sociedade e os cidadãos de forma geral vivenciam e que envolvem ciência e tecnologia, comumente referidas como questões sociocientíficas.

As QSC se caracterizam como um grande desafio para a educação científica. São questões que surgem da necessidade da sociedade de uma solução e que estão sendo trazidas regularmente para a atenção pública e política através dos meios de comunicação em massa revelando as complexas relações entre o homem, o mundo, os contextos e no âmbito da sala de aula o ensino e a aprendizagem.

O conhecimento escolar não pode mais ser reduzido aos "programas" de sempre baseado em conceitos que fornecem uma visão de mundo rígida e dogmática, mas deve ser uma oportunidade de fazer perguntas que incitem a intervenção e reflexão sobre os fenômenos e as relações entre os fenômenos que são relevantes para compreender temas científicos e/ou as questões atuais

(IZQUIERDO, 2005, p. 113-114). Os conhecimentos científicos devem ser aplicáveis à vida e fazer sentido também fora da escola.

CP Snow's (1959) chamou a atenção do público para os problemas que surgem quando o conhecimento científico assume um status separado em relação a outras formas de saber. Segundo Fensham (2012) essa separação entre o conhecimento científico e outras formas de conhecimento é histórica, foi reforçada na segunda metade do século XX por estruturas e práticas da própria escolaridade.

O autor aponta que a ênfase abstrata no currículo da ciência se difunde, neste período, nos diferentes níveis e modalidades de ensino contribuindo para uma concepção histórica e culturalmente construída que aprender Ciência era algo difícil para muitos estudantes, criando assim um mito de superioridade sobre o conhecimento científico. A ciência foi cada vez mais ensinada como conhecimento conceitual que forneceu princípios generalizados que, ao reunir de outra forma fenômenos diferentes, promovia a construção de uma imagem simplificada e poderosa, mas abstrata do mundo natural.

O ensino por meio de QSC segue uma direção oposta a essa simplificação, se alinhando a perceptivas nas quais a visão da complexidade do mundo e de suas representações tem um papel importante na discussão e resolução dos problemas contemporâneos reais. Essa mudança na visão de mundo reforça uma mudança de paradigma, Jenkins (2000, p. 211) argumentou que o “mundo prova ser muito mais complicado, incerto e arriscado do que a ciência escolar incentiva os estudantes a acreditar”. Essa complexidade deve ser explorada na sala de aula, e, sobretudo, nos permitir refletir sobre o papel da ciência ao abordar questões de natureza complexa. Garcia (1998), alinhado a esse debate argumenta que:

Parece, portanto, que começa a haver algum consenso de que a educação científica deve apresentar uma ciência não exclusivamente analítica, que não seja linear, mas integradora; não reducionista, mas complexa; que não seja neutra ou asséptica, que contextualize e envolva a problemática socioambiental, que seja útil para o tratamento adequado de tais problemas; que seja progressista e libertadora, de modo que a cultura científica permita a formação de cidadãos críticos com o desempenho técnico e capaz de gerenciar seu ambiente; para enfrentar problemas em aberto e ambíguos da realidade; envolvendo a democratização do uso social e político da ciência, etc. (GARCIA, 1988, p. 3)

Para o autor, dentro destas abordagens que buscam reformular o lugar da ciência na determinação dos currículos escolares se evidencia uma transição importante: de uma perspectiva mais simples e linear para uma perspectiva mais complexa, na qual se enfatiza uma forte

preocupação com o papel social da educação e a forma como conhecimentos cotidianos e científicos são considerados. Na figura 3 resume-se essas diferentes posições e a transição da perspectiva simples para a complexa:

Figura 3: Conhecimento Cotidiano, do Simples ao Complexo

Fonte: GARCIA, 1998.

A primeira abordagem, caracterizada pelo autor como uma perspectiva simples à qual se articula ao que foi denominada na literatura como o modelo de mudança conceitual. Propõe-se uma

1 PERSPECTIVA SIMPLES Conhecimento científico CONOC IMIENTO Conhecimento cotidiano DESCONTINUIDADE CIENTÍFICO-COTIDIANO 2

CONTINUIDADE CIENTÍFICO – COTIDIANO. Conhecimento técnico - prático Conhecimento científico Conhecimento cotidiano 3

DIVERSIDADE, INTERDEPENDENCIA, COEVOLUÇÃO. Conhecimento cotidiano Conhecimento científico Conhecimento técnico - prático PERSPECTIVA COMPLEXA

ruptura entre conhecimentos cotidianos e científicos, o foco da abordagem de ensino é nos conteúdos conceituais e se pretende substituir um tipo de conhecimento pelo outro.

Já a segunda abordagem, segundo Garcia (1998), pode se caracterizar como um modelo de transição, o fazer ciência pela resolução de problemas é entendido como um ensino por investigação, enfoque que pretende propiciar uma troca conceitual, atitudinal e metodológica no pensamento dos estudantes, para aproximá-lo do conhecimento científico.

A perspectiva mais atual, a complexa, considera o papel da ciência na sociedade e as complexas relações que se estabelecem para que os estudantes compreendam o papel social da ciência e interações ciência - tecnologia – sociedade, aspectos éticos, morais, econômicos, políticos e outros.

Finalmente, acreditamos, que a abordagem das QSC à qual defendemos se alinha a essa perspectiva complexa, porque propõe a reorganização do conhecimento cotidiano dos sujeitos, no sentido de torná-lo mais complexo, integrando e incorporando a participação de muitas fontes de conhecimentos de origens diferentes e não só do conhecimento científico, não considerando a substituição de uma forma de conhecimento por outra, mas a integração, isto é, complexificação dessas diferentes formas de conhecimento na perspectiva de compreender a base da QSC e o debate sobre as possíveis soluções e a tomada de decisão para os problemas.

Diante dessa complexidade, surge um questionamento: Como dar conta do ensino e da aprendizagem no contexto da sala de aula, explorando as QSC? Uma vez, que essa visão de totalidade que se insere na compreensão da realidade enquanto sistema complexo nos propicia tomar os contextos explorados também como realidades complexas, e as suas representações na sala de aula como possibilidade para construção de sentidos e significados quanto aos conceitos e a sua integração a outras formas de conhecimento. E, ainda, como subsidiar o trabalho do professor em sala de aula, que elementos podem viabilizar a abordagem das QSC no contexto escolar.

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