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Naquela considerada por Pierre-Henri Castel (2001) como a “terceira fase” da cronologia do “fenômeno transexual”, compreendida durante o período de 1945 a

77 1975, o psicólogo, sexólogo e professor de psicopediatria do Hospital Universitário John Hopkins (Nova York), o neozelandês John Money (1921-2006), desenvolveu importantes contribuições teóricas, sobretudo acerca das noções de gênero, sexo e formação da “identidade sexual” do indivíduo, inspiradas na teoria dos papéis sociais/sexuais de Talcott Parsons, de modo a influenciar a formação do que já identificamos como sendo o dispositivo da transexualidade, isto é, a compreensão que perdurou e se desenvolveu através do tempo consubstanciada na abordagem clínica do fenômeno.

Antes de adentrar na forma como J. Money aplicou a teoria parsoniana ao tratamento então conferido às pessoas intersexuais (vulgo “hermafroditas”) e transexuais em meados do século XX, retomar-se-á, a seguir, brevemente, o contexto em que surgiram as ideias do sexólogo.

Desde a “segunda fase” identificada por Castel (2001), marcada pelo desenvolvimento da endocrinologia e pelo furor que as promessas relativas à descoberta progressiva do potencial dos hormônios causavam na sociedade em geral, indo desde o prolongamento dos benefícios da juventude até transformações mais significativas como as decorrentes da possibilidade de modificação dos caracteres externos de um sexo/gênero para outro, a eventual “anormalidade” de condutas e sentimentos, destaca o psicanalista francês, tornou-se uma questão de “dosagem sanguínea”, de modo a reduzir processos de subjetivação a interações biológico-comportamentais, relegando à margem as investigações psicanalíticas acerca de eventuais conflitos psíquicos.

Na “terceira fase”, portanto, a psicanálise americana já havia sido “medicalizada à força”, perdendo a batalha para os endocrinologistas ao não conseguir sustentar de maneira convincente a tese da patologização de um “distúrbio sexual” exclusivamente psicológico. Nesse momento, o próprio Castel enfatiza a influência que a sociologia norte-americana exerceu sobre as teorias que obtiveram destaque na época, estimulando o interesse de pesquisadores acerca dos processos de socialização de pessoas intersex, transex, dentre outros casos. A questão colocada, tal qual já aduzido, era a de investigar, então, comprovada e empiricamente, qual seria o fator determinante, capaz de dar “a última palavra”, para a formação da identidade sexual dos indivíduos, se a natureza ou a cultura.

78 diz respeito a “tudo o que uma pessoa expressa ou faz para mostrar-se como detentora do status de menino/homem ou menina/mulher, respectivamente”29 e ainda que “(...) como um grande guarda-chuva (...) abriga todos os seus componentes heterogêneos [legais, educacionais, vocacionais, recreativos, indumentários, cosméticos, etc.], dos quais o papel genital-sexual é apenas um”30 (MONEY, 1985, p. 72), ele provocou o que Cyrino (2013) reiterou configurar uma verdadeira “ruptura de paradigma” na concepção tradicional (isto é, médico- científica) de sexo31. Isso porque o novo conceito inseriu uma dimensão psicológica/psicossocial (ou mesmo cultural) na forma de compreender o significado de masculinidade e feminilidade, para além da já considerada dimensão biológica.

Desde então, além dos aspectos biológicos considerados ao tempo do nascimento do bebê, que contribuem para a sua classificação como uma criança do sexo masculino ou feminino, deveria ser levado em conta, também, para o seu enquadre e consequente tratamento como um menino/homem ou menina/mulher, o papel de gênero assimilado e vivenciado por esse ser em formação em momento posterior, após um longo e gradual processo de aprendizagem e socialização.

A matriz da diferença sexual, portanto, persiste, mas sob uma nova conformação; após a formulação do conceito de gênero por Money, ela passa a ser entendida com o resultado de uma adição: sexo biológico + gênero psicológico,

29 Tradução livre do original: “all those things that a person says or does to disclose himself or herself

as having the status of boy or man, girl or woman, respectively” (MONEY, 1955, p. 254).

30 Tradução livre e resumida do original: “The gender role (a definition is appended) is all-

encompassing, like a big umbrella that houses all its heterogeneous components, of which the genital- sexual role is only one. Other components, according to traditional conceptions, are legal, educational, vocational, recreational, sartorial and cosmetic roles, and so on, that are male/female stereotyped” (MONEY, 1985, p. 72).

31 Nas próprias palavras do autor já é possível notar essa complexificação da análise: “Nos meus

primeiros estudos sobre hermafroditismo, cheguei à conclusão de que não há uma dicotomia absoluta entre sexo masculino e feminino. O sexo de uma pessoa deve ser especificado não com base em um único critério, mas em vários critérios. Por exemplo, é possível ter o sexo genético de um macho (a contagem cromossomática não tinha sido descoberta, naqueles dias, antes de 1959), o sexo gonadal de um macho; o sexo morfológico interno de um macho; o sexo morfológico genital externo de uma fêmea; o sexo puberal hormonal de uma fêmea; o sexo atribuído [legal] de uma fêmea; e o papel de gênero e identidade de uma fêmea. Isto é o que normalmente acontece na síndrome de andrógeno- insensibilidade - e há muitas outras síndromes, cada um com sua própria história” (MONEY, 1985, p. 73). Tradução livre do original: “In my earliest studies of hermaphroditism, I came to the realization that there is no absolute dichotomy of male and female. A person’s sex must be specified not on the basis of a single criterion, but of multiple criteria. For example, it is possible to have the genetical sex of a male (chromosome counting had not been discovered in those days, before 1959), the gonadal sex of a male; the internal morphologic sex of a male; the external genital morphologic sex of a female; the hormonal pubertal sex of a female; the assigned sex of a female; and the gender-role and identity of a female, This is what typically happens in the androgen-insensitivity syndrome - and there are many other syndromes, each with its own story” (MONEY, 1985, p. 73).

79 ambas as dimensões auxiliando na sua compreensão, seja em função das influências biológicas hereditárias, seja das socioambientais recebidas ao longo da vida.

Com a emergência de uma variável integrante da diferença sexual independente de fatores biológicos, desvinculou-se a construção e o entendimento da masculinidade e da feminilidade do determinismo associado à biologia dos corpos, do império das forças naturais, de modo que o sentir-se homem ou o comportar-se como mulher, por exemplo, passaram a implicar uma análise mais detida dos consensos e acordos sociais a respeito, a fim de possibilitar uma compreensão mais ampla e apropriada destas manifestações.

Apesar da complexificação do entendimento da diferença sexual, o parâmetro de normalidade, para a comunidade médica, foi definido como a verificação de uma coerência necessária existente entre sexo biológico e gênero psicossocial. Quando tal correspondência não se manifestasse, configurar-se-iam os casos de anormalidade, para os quais seriam recomendadas as intervenções médicas corretivas.

Também a constatação de traços de ambiguidade genital ou de desenvolvimento de um gênero “neutro”, isto é, também os casos em que não fosse possível precisar o sexo e o gênero como masculino ou feminino, mereceriam intervenção. Foram justamente esses casos de intersexualidade que evidenciaram os limites da compreensão biológica do sexo, uma vez que a própria “natureza” estaria se apresentando de forma “duvidosa”.

O novo entendimento esboçado por John Money foi, nesse sentido, fundamental para a abordagem da intersexualidade, um fenômeno que abalou a crença nas certezas e definições biológicas. Se a biologia dos corpos não resolvia a questão da pessoa intersex e esta necessitava ter uma genitália funcional – sobretudo em termos de funcionalidade sexual, ou seja, aptidão para o coito, para a penetração – as cirurgias corretivas passaram a ser altamente recomendadas, mas sempre associadas a algo que pudesse assegurar o desenvolvimento “sadio” de uma correspondente masculinidade ou feminidade: uma educação voltada para a assimilação do respectivo papel de gênero. Money passou a se preocupar, então, com a idade em que era fixada a identidade sexual/de gênero da criança, a fim de garantir a eficácia do processo corretivo.

80 O sexólogo não defendia, contudo, a determinação do social sobre o natural, como aponta Bento (2006, p. 41), mas, sim, que as influências socioculturais, sobretudo as instituições, destacando-se, aí, o papel da família, poderiam interferir significativamente na construção e reafirmação da diferença sexual, a qual, por sua vez, Money assumia como “natural”. Isso porque, a seu ver, o desenvolvimento psicológico do gênero seria uma decorrência do desenvolvimento embrionário do sexo; se este último é marcado pelo dimorfismo, o primeiro também, para ser funcional, certamente o seria.

Ademais, a aparência da genitália, para Money, ao fornecer as bases materiais para tanto, teria inegável relevância na edificação da identidade de gênero, ou seja, na fixação do masculino ou feminino e, por conseguinte, na estruturação do comportamento reprodutor e heterossexual, de modo geral. Dessa forma, a construção de um canal vaginal em crianças intersexuais, por exemplo, não representava apenas o ajustamento de um órgão aparentemente defeituoso, como ressalta Bento (2006, p. 41), mas a sua adaptação ao exercício de uma função específica, qual seja, a de receber um pênis adulto, e, com isso, prescrevia-se, desde já, a esse indivíduo em formação práticas sexuais determinadas32.

O que se pode perceber, em face de todo o exposto neste tópico, é que foi John Money quem primeiro estabeleceu as premissas teóricas necessárias e criou as condições de possibilidade para a transição do paradigma do verdadeiro sexo para o do verdadeiro gênero ao formular o próprio conceito de gênero e demonstrar, através de suas controversas pesquisas33, que seria possível interferir no processo de formação da identidade de gênero do indivíduo até por volta dos três anos de idade, através de um condicionamento pedagógico direcionado ao gênero compatível com a genitália redefinida (em casos de intersexualidade ou mutilação).

Com efeito, J. Money foi um dos grandes responsáveis pela superação de uma significativa disputa de saberes, o que resultou na associação entre os avanços da Medicina (concepção biologicista) – acerca do funcionamento endocrinológico do corpo humano e das cirurgias genitais – e os da Sociologia (concepção construtivista) – no que diz respeito às teorias sobre o papel da aprendizagem e do

32 Numa perspectiva crítica, aponta, ainda, Berenice Bento que: “Quando Money formulou suas teses

sobre a estrutura naturalmente dimórfica do corpo e a heterossexualidade como a prática normal desse corpo, não previu que algumas destas meninas intersexuais seriam lésbicas e reivindicariam o uso alternativo de seus órgãos, conforme apontou Preciado (2002)” (BENTO, 2006, p. 41).

81 processo de socialização na construção da identidade de gênero de uma pessoa – no tratamento das “anormalidades” ligadas ao binômio sexo/gênero34.