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3.3. A TRANSEXUALIDADE NA CONCEPÇÃO DE ROBERT STOLLER (1968; 1982)

3.3.4. O complexo de édipo terapeuticamente induzido

Uma das principais dúvidas que surgem face às conclusões de Robert Stoller supra aduzidas é a seguinte: se tanto o desenvolvimento da masculinidade, quanto o da feminilidade são viáveis em qualquer indivíduo na mais tenra idade, de modo que apenas a fixação da identidade de gênero torna o processo irreversível, haveria a possibilidade uma intervenção corretiva no curso desse processo, passível de evitar ou reverter o “transexualismo”?

A essa pergunta Stoller responde da seguinte forma:

A feminilidade do menino transexual em seu curso natural continua além do período edipiano e não se altera na idade adulta, como foi anteriormente apontado. Entretanto, temos evidência de que uma poderosa intervenção

durante o período edipiano possa produzir fantasias edipianas e conflito, mudando a direção da orientação genérica em direção à masculinidade.

Deve-se chamar a isso de complexo de Édipo “terapeuticamente induzido”. (STOLLER, 1982, p. 101 – grifo nosso).

No Capítulo 6 da obra “A experiência transexual”, intitulado “A situação edipiana no transexualismo masculino”, o psicanalista norte-americano irá, então, relatar casos de crianças transexuais cujos pais buscaram tratamento psicanalítico e as experiências resultantes das tentativas de indução do conflito decorrente da instauração do complexo edipiano.

De início, destaca-se a observação do que já poderia ser esperado diante das hipóteses levantadas pelo autor, isto é, a dificuldade de separação da criança em

65 relação à mãe e o comportamento, manifesto sobretudo nos jogos, brincadeiras e histórias contadas, tido por “feminino”:

(...) Durante os primeiros meses de tratamento, o paciente não suportava estar sem sua mãe na sala de ludoterapia, a menos que lhe fosse continuamente reassegurado que ela estava no outro lado da porta. Evitava os olhos do analista e preferia brincar sozinho. Passou essas primeiras sessões brincando com bonecas e inventando cenas caseiras onde apenas mulheres estavam presentes. (...). (STOLLER, 1982, p. 100).

O objetivo do terapeuta, nesse meio tempo, seria estimular o afastamento entre a criança e a mãe, bem como a identificação do menino consigo, enquanto referencial de uma masculinidade que se poderia dizer, no contexto do paradigma em evidência, “ativa”, “manifesta” e “sadia”. Gradualmente, portanto, o psicanalista passara a observar que:

(...) a tendência do paciente de evitar contato com seu terapeuta e retirar-se para um mundo de fantasias femininas foi ultrapassada. O paciente começou a sentir afeição por Dr. Newman e a buscar terapia. Não mais temia deixar sua mãe ao entrar na sala de ludoterapia. Pela primeira vez, homens começaram a aparecer em suas histórias. A princípio, eram apenas acompanhantes de mulheres dramaticamente bonitas. (...) À medida que homens apareciam mais, igualmente surgiram agressão e crueldade, especialmente em relação a mulheres. (...). (STOLLER, 1982, p. 101).

Nota-se, diante deste último quadro, que, supostamente, caberia também ao analista reforçar características tradicionalmente associadas ao arquétipo masculino, numa perigosa associação entre masculinidade, virilidade e agressividade, cujos resultados são sentidos pela sociedade, em geral, até hoje, inclusive tendo levado à edição da Lei n.º 11.340/2006 (Lei Maria da Penha). A indução provocada nas sessões de análise estariam, pois, surtindo efeito na conduta da criança em casa:

Nas semanas seguintes, sua mãe relatou que ele começou a bater em sua irmã e a xingá-la pela primeira vez em sua vida. Tinha também ficado nervoso e agressivo com sua mãe, disse ela com desânimo. A agressividade com as mulheres aumentou em seus desenhos. Por exemplo, desenhou um homem com uma mulher deitada a seus pés. Ele riu e disse que a mulher tinha aborrecido o homem que, então, a tinha atirado na lama e batido nela. (STOLLER, 1982, p. 102).

Ou seja, toda uma normatividade (diretrizes voltadas ao disciplinamento dos corpos, desejos, ações, atitudes, etc., por intermédio de uma dinâmica de estímulos e interdições) estaria incidindo sobre a criança, a fim de corrigir e adequar o seu

66 comportamento, evidenciando que, de fato, a construção da identidade de gênero perpassa, sim, por um longo processo de aprendizagem e assimilação, não sendo, pois, determinado por forças biológicas. Uma normatividade, evidentemente, de matriz binária e heterossexual, portanto uma heteronormatividade23.

Essa normatividade é tão marcante e está tão presente nas sessões estudadas por Stoller que o psicanalista chega a reproduzir um conjunto de regras elaborado por um dos próprios pacientes, em tratamento já há algum tempo:

Procurando agradar seu terapeuta ao refletir a atitude deste em relação ao travestismo (...), dizia: “É ruim para um menino vestir-se com roupas de meninas”. Estava começando a praticar o que seria “ser um menino”. Fez uma lista de ‘regras’ e fez com que o terapeuta a escrevesse: “1 – Não brincar com meninas; 2 – Não brincar com bonecas de meninas; 3 – Não se vestir com roupas de meninas; 4 – Nem mesmo olhar no armário da irmã; 5 – Não se sentar como uma menina; 6 – Não falar como uma menina; 7 – Não ficar de pé como uma menina; 8 – Não pentear o cabelo como uma menina; 9 – Brincar como um menino; 10 – Não usar maquilagem; 11 – Não deixar que seu quarto pareça um quarto de uma menina; 12 – Não fazer poses; 13 – Ser um menino”. (STOLLER, 1982, p. 102).

A criança em questão, após quatro anos de tratamento, teria alcançado relativo “êxito” na reversão do “transexualismo”, abandonando significativamente os traços de feminilidade que apresentara e desenvolvendo uma nova masculinidade. Esse cenário teria demonstrado, para Stoller, a possibilidade de se considerar a intervenção corretiva, através da psicoterapia, como uma alternativa passível de ser investigada, aprofundada e tentada:

Durante os quase quatro anos de tratamento, o paciente mudou de uma orientação totalmente feminino e um desejo de tornar-se mulher para uma existência consideravelmente mais masculina. À medida que começou a identificar-se com o terapeuta, a tornar-se mais masculino em roupas e aparência, temas de agressão, vingança e ferimento predominavam em suas fantasias; ele tornou-se mais consciente de seu pênis, e sua feminilidade foi desaparecendo gradualmente. (...). (STOLLER, 1982, p. 104).

23 Segundo explica Richard Miskolci (2009, pp. 156-157 – grifos nossos): “A heteronormatividade

expressa as expectativas, as demandas e as obrigações sociais que derivam do pressuposto da heterossexualidade como natural e, portanto, fundamento da sociedade (CHAMBERS, 2003; COHEN, 2005, p. 24). Muito mais do que o aperçu de que a heterossexualidade é compulsória, a heteronormatividade é um conjunto de prescrições que fundamenta processos sociais de regulação e controle, até mesmo àqueles que não se relacionam com pessoas do sexo oposto. Assim, ela não se refere apenas aos sujeitos legítimos e normalizados, mas é uma denominação contemporânea para o dispositivo histórico da sexualidade que evidencia seu objetivo: formar todos para serem

heterossexuais ou organizarem suas vidas a partir do modelo supostamente coerente, superior e “natural” da heterossexualidade”.

67 Não obstante a aferição de resultados “positivos” como esse, o psicanalista norte-americano não consideraria a terapia precoce como uma solução segura e definitiva. Ainda assim, alertaria para o fato de que “a partir da puberdade, não parece possível uma alteração da feminilidade do transexual masculino pela psicoterapia. O tratamento do menino transexual pode ser a única possibilidade de prevenir o transexualismo adulto” (STOLLER, 1982, p. 107).

Em suma, e em face de todo o exposto, torna-se interessante observar que haveria uma série de características a serem verificadas na criança e no seu contexto familiar para que se consubstanciasse o diagnóstico do “transexualismo”, quais sejam:

1) Uma mãe bissexual (o que, no jargão stolleriano, corresponde a uma mãe que já teve dúvidas sobre o seu sexo/gênero e revela traços de comportamento ambíguos);

2) Um pai física e emocionalmente ausente ou distante; 3) Uma perfeita e prolongada simbiose entre mãe e filho;

4) Uma especial beleza e graça no bebê do sexo masculino, capaz de leva-lo a ocupar o centro das atenções da mãe, rememorar a sua inveja do pênis e repúdio aos homens simultaneamente, bem como leva-la a recepcionar e estimular os traços de feminilidade que venham a ser manifestados no período de identificação original com essa mãe e na possível reiteração deste estágio.

Identificada essa condição ainda na fase edipiana, seria possível (embora não absolutamente provável) revertê-la através de uma intensa e prolongada abordagem psicoterapêutica, mas o curso “natural” do desenvolvimento da identidade de gênero nessas crianças transexuais seria a confirmação da identificação original com a mãe e, portanto, a consolidação da feminilidade em um corpo biologicamente associado ao sexo masculino, resultando em posterior desejo pela realização da “mudança de sexo”. Os principais fatores determinantes do direcionamento de todo esse processo estariam presentes no contexto circundante e, principalmente, familiar da criança.

68 3.4. A TRANSEXUALIDADE NA CONCEPÇÃO DE HARRY BENJAMIN (1966; 1999)

Harry Benjamin (1885-1986), endocrinologista e sexólogo de origem alemã radicado nos Estados Unidos, cuja formação inicial fora em infectologia, mas que se consagrou, em verdade, pelos estudos e desenvolvimentos na seara da medicina sexual, foi o grande responsável, conforme já mencionado, por estabelecer os contornos iniciais da compreensão moderna, ainda amplamente aceita e difundida internacionalmente, da transexualidade, desde quando procurado por outro renomado sexólogo, Alfred Kinsey (1894-1956), em 1948, para analisar um singular e aparentemente “novo” caso de um jovem que ansiava por “transformar-se em mulher”.

Em 1966, H. Benjamin lançou a obra The Transsexual Phenomenon, de modo a sistematizar, divulgar e consolidar o entendimento firmado sobre a experiência transexual, o que influenciaria o tratamento conferido à questão por diversas instituições e organismos ao redor do mundo, bem como a ulterior inclusão da transexualidade no DSM e na CID.

3.4.1. A composição multifacetada, porém binária, do conceito de sexo de