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Se a “verdade” sobre o sexo dos indivíduos residia na biologia dos corpos, o que fazer diante dos casos de pessoas intersexuais ou transexuais, senão descobrir os seus “verdadeiros sexos”, trazê-los à tona e coloca-los em evidência? Foi o que a Medicina, no primeiro caso, e a Psicologia (mais especificamente a psicanálise), sobretudo, no segundo, procuraram fazer, durante anos de forma inconteste até que a validade destes paradigma, diagnóstico e formas de tratamento fosse questionada. A Medicina sempre pretendeu, através do exame do cariótipo e das gônadas de intersexuais, além da minuciosa avaliação de suas genitais, desvendar qual seria o sexo predominante para, então, realizar a cirurgia de “correção” da genitália “ambígua” apresentada. A Psicologia, por sua vez, aspirou à cura terapêutica dos casos de “transexualismo”, objetivando reverter o processo através do procedimento de análise e, assim, ajustar a mente do indivíduo ao seu sexo originário.

A formulação do conceito de gênero por John Money na década de 1950, revisitada por Robert Stoller na década de 1960, jogou, entretanto, uma nova luz sobre a questão.

O conceito que se popularizou nas áreas das ciências humanas da sociologia e antropologia, por exemplo, de modo que poucos se recordam ou conhecem a sua origem na psicologia/sexologia anos antes, representou uma transição epistemológica do paradigma do sexo biológico para o paradigma da construção cultural do gênero, em razão do fortalecimento e grande assimilação das teorias sócio-psicológicas voltadas para a explicação dos comportamentos humanos, principalmente no que diz respeito aos papéis sociais, sexuais e de gênero.

54 Por intermédio deste novo conceito, tornou-se mais fácil compreender e, portanto, teorizar, abordar e recepcionar as demandas daqueles que se mostravam descontentes com o seu sexo biológico, viabilizando a construção do diagnóstico, dos procedimentos médicos (hormonais, cirúrgicos e afins), do tratamento e acompanhamento dos casos de “hermafroditismo” e “transexualismo”. Eis que surgia uma nova racionalidade a orientar a prática médica, capaz de repercutir, nos anos seguintes, na própria reformulação do conceito de “sexo” difundido no seio da comunidade médico-científica.

Em linhas gerais, o conceito de gênero introduziu no pressuposto da diferença sexual uma segunda dimensão a ser ponderada, associando à consideração do sexo biológico originário da pessoa a observância do seu gênero psicossocial. Isto é, às influências genéticas, hormonais e afins responsáveis pela constituição dos caracteres sexuais primários (aparelho reprodutor interno, mais especificamente as gônadas encarregadas da produção de gametas, quais sejam, testículos ou ovários) e aparecimento dos caracteres sexuais secundários (órgãos sexuais, mamas, presença e distribuição de pelos, etc.) foram acrescidas, para fins de investigação do processo de formação do sexo e do gênero do indivíduo, com grande peso e relevância, as influências externas, sociais e ambientais, recebidas desde o nascimento.

A compreensão médica desse processo definiu como parâmetro de “normalidade” a necessária concordância entre o sexo biológico (masculino ou feminino) e o gênero psicossocial (homem ou mulher, respectivamente), o que levou à determinação dos demais casos como situações “anormais”, “patológicas” e, pois, sujeitas a intervenções corretivas.

Tais intervenções foram sendo desenvolvidas e aperfeiçoadas ao longo dos anos, desde o início do século XX, tal qual já relatado, de forma a possibilitar a realização da cirurgia de “mudança de sexo” e contestar o suposto determinismo biológico até então reinante nesta seara ao revelar a plasticidade desse sexo e do corpo humano em geral.

Enquanto isso, os psicólogos procuravam identificar como se dava e em que fase da vida ocorria a fixação da identidade de gênero de uma pessoa, acreditando que, uma vez fixada, esse processo se tornava irreversível, por isso os sujeitos transexuais precisavam ter as suas demandas atendidas ou jamais se sentiriam

55 plenos ou felizes.

Com efeito, se o corpo tornara-se flexível e adaptável, a mente passara a dar o veredicto final sobre o sexo e o gênero. Essa mudança mostrou-se tão significativa que provocou a revisão do conceito de sexo utilizado pela comunidade médico- científica, conforme demonstra a evolução da literatura especializada e/ou referencial na área, a exemplo das edições do Dorland’s Dictionary.

Embora significativa, por dar ênfase ao processo de socialização do indivíduo e à aprendizagem social dos papéis sexuais e de gênero, de acordo com as expectativas produzidas e perpetuadas em um dado contexto sociocultural, essa mudança continuou pautada na diferença sexual, ou seja, no dimorfismo dos corpos, no binarismo dos gêneros e na matriz heterossexual.

Foi por essa razão que se assumiu, neste trabalho, para fins de retestagem, a hipótese levantada por Rafaela Cyrino (2013, p. 105), justamente no sentido de que a “mudança discursiva na natureza da diferença sexual, do biológico ao psicológico, (...) apesar de engendrar uma mudança conceitual de grande envergadura, mantém a crença em uma diferença sexual irredutível e bipolar”.

Cyrino buscou compreender, empreendendo uma breve incursão histórico- epistemológica através da análise da produção discursiva e normativa em torno do “transexualismo” – consubstanciada tanto no discurso médico que se tornou dominante, mais especificamente nas obras de John Money, Harry Benjamin e Robert Stoller, quanto nas falas de pacientes transexuais (autobiografias publicadas) –, o processo de legitimação das cirurgias de mudança de sexo nos EUA e o quanto, apesar da revolução paradigmática causada pelo conceito de gênero, os fundamentos teórico-empíricos daquela produção permaneceram conferindo uma inegável e basilar importância à diferença sexual.

Afinal, em síntese e nas elucidativas palavras da autora:

Com o advento do gênero psicológico, passamos a ser, do ponto de vista sexual, duplamente categorizados: se ao nascermos, nos é atribuído um sexo biológico, masculino ou feminino, adquirimos, com o passar dos tempos, um gênero, também masculino ou feminino, este, segundo as teorias nascentes, de caráter irreversível. Este duplo processo de sexuação e de categorização sexual mostra que o novo discurso centrado sobre o gênero não diminui a importância da diferença sexual, muito pelo contrário, esta permanece central na organização discursiva em voga. Tudo indica que a obsessão com a descoberta da identidade sexual dos indivíduos ainda permanece central no discurso médico analisado, com a ressalva de que ele não é mais concebido de maneira estritamente biológica, mas sobretudo psicológica. Utilizando uma linguagem foucaultiana poder-se-ia supor que a

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manutenção do caráter de irreversibilidade da diferença sexual representou a condição de possibilidade no processo de legitimação de cirurgias de conversão de sexo nos EUA. Neste sentido, acredita-se que, apesar da

proliferação das cirurgias de mudança de sexo, não se rompeu com a ideia do “verdadeiro sexo”. (...). (CYRINO, 2013, pp. 105-106 – grifo nosso).

A noção de gênero e a tese da sua irreversibilidade, portanto, vieram de forma cômoda e pragmática ao encontro dos anseios médicos por certeza e segurança no diagnóstico do “transexualismo”, bem como dos interesses da comunidade transexual (e, principalmente, em um primeiro momento, dos movimentos sociais

transgender) em acessar as técnicas de modificação corporal já disponíveis. Cyrino,

assim como Castel (2001), enfatiza, então, a forma como as autobiografias corroboram com o discurso médico, ao passo que fornecem elementos para a sua complementação e consolidação, alimentando a já sinalizada dinâmica de poder- saber que resultou na produção do dispositivo da (trans)sexualidade. Isso sem que se pudesse imaginar que as certezas construídas naquele momento histórico como avanços viriam a representar os limites do acesso aos procedimentos no futuro, se irredutíveis.

Com o objetivo de retestar a hipótese levantada por Cyrino e, ao final, comprovar a própria hipótese formulada no início deste capítulo, segue-se, agora, à análise retrospectiva das contribuições teóricas de Robert Stoller (1968; 1982), Harry Benjamin (1966; 1999), John Money (1955; 1985) e Talcott Parsons (1951) para essa transição do paradigma do “verdadeiro sexo” para o do “verdadeiro gênero”.