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Se para Foucault (1979), conforme já aduzido, um dispositivo corresponde a um conjunto de enunciados, proposições, discursos e instituições, dentre outros elementos com potencial normativo, abarcando as suas complexas articulações e interações produtivas, os protocolos médicos elaborados sobre a transexualidade, institucionalizados e difundidos com o propósito de conceitua-la, diagnosticá-la e trata-la, a fim de conformar o indivíduo transexual aos padrões de inteligibilidade social, “adequando” o seu sexo anatômico ao gênero psicossexual vivenciado, certamente formam um dispositivo da transexualidade.

Os documentos médicos oficiais que identificam, classificam, estabelecem protocolos e tratamentos para esta experiência, em suas múltiplas terminologias já adotadas, provocam, pois, segundo esclarece Berenice Bento (2006, p. 43), desdobramentos micro e macro. Os desdobramentos micro (intergrupo) seriam aqueles relativos à forma como uma pessoa transexual avalia e valora outra; já os

macros (institucionais) dizem respeito à percepção que as próprias instituições têm

destes sujeitos, destacando-se as grandes áreas com maior potencial regulamentador sobre os corpos, identidades e vivências tanto sociais quanto, em alguns casos, privadas: a Medicina e o Direito.

Este foi o resultado de uma disputa de saberes envolvendo pelo menos três áreas do conhecimento: Psicanálise, Medicina e Sociologia – assimilado, posteriormente, pela Bioética e pelo Direito; uma disputa inacabada, à medida que, por maior que tenha sido a pretensão de certeza no estabelecimento da categoria diagnóstica do “transexual verdadeiro” e da melhor abordagem para este fenômeno, ainda remanescem dúvidas acerca dos seus contornos definitivos face à realidade das vivências transexuais e do melhor caminho a ser seguido na resposta às demandas destes sujeitos.

Não obstante a existência de tais fraturas no processo de produção do citado

dispositivo, é possível identificar, sem dúvidas, uma matriz teórica comum, um

46 condições de possibilidade para a emergência e coexistência dos diferentes saberes presentes em um mesmo processo e com contribuições passíveis de serem compatibilizadas.

Trata-se do paradigma patologizante-biologicista-terapêutico-adequatório (referido como paradigma da patologização, em virtude da sua faceta mais aparente consubstanciada em nosologias e etiologias da sexualidade) cujas formulação e compreensão já esboçamos em trabalhos anteriores (GRANT, 2013-A).

Patologizante porque a primeira resposta que a ciência, no caso, a Sexologia,

ofereceu à transexualidade, para retirá-la do rol dos “atos contra a natureza” punidos violentamente pelo Estado, foi a de que seria uma patologia, uma “compulsão irrefreável”, passível de reconhecimento, escuta e acompanhamento médico especializado. Em seguida, a Psicanálise ofertou uma “cura” psicoterapêutica; a Endocrinologia, uma solução hormonal; a Medicina, uma intervenção cirúrgica “corretiva”; e a Sociologia as bases para a conclusão do processo cirúrgico-hormonal através de uma educação inequivocamente orientada para o “novo sexo/gênero”. Hoje, a transexualidade, referida como “transexualismo” em muitos documentos e protocolos médicos, ainda é considerada um transtorno ou disforia.

Biologicista porque a própria determinação da transexualidade como patologia

funda-se em pressupostos “biológicos”, mais especificamente no dimorfismo dos corpos, na diferença sexual e na heterossexualidade compulsória, que, em verdade, seriam mais bem identificados como pressupostos biologicistas, posto que a noção do que é “natural” ou “normal” também é culturalmente construída e não meramente determinada pela genética, por conformidades anatômicas ou dosagens hormonais.

Terapêutico porque se se está diante de uma patologia, esta demanda

tratamento e cura terapêuticos para resolver, extirpar, o “problema”, de modo a apresentar resultados exitosos e satisfatórios, que levem ao “bom” e “correto” funcionamento do organismo.

Adequatório porque a finalidade da solução terapêutica é “adequar” o sexo

biológico ao gênero psíquico do indivíduo transexual, de acordo com o entendimento ainda dominante, revelando o intuito de que este indivíduo possa desenvolver uma vida sexual sadia e interagir socialmente como membro do sexo/gênero “correto”.

Eis delineado o paradigma que consubstanciou o dispositivo da transexualidade; um paradigma capaz de “conformar e disciplinar corpos, gêneros e

47 sexualidades” (GRANT, 2013-A, p. 28), quando se está diante de afirmações como a de que: “[...] a cirurgia do transexual devidamente padronizada e regulamentada é um procedimento ético, legal e de ressocialização humana” (ALBANO, 2003, p. 336); enfim, um paradigma ainda bastante presente e perpetuado, tanto pela Medicina, quanto pela Bioética.

2.6. CONCLUSÃO

Através de uma retrospectiva histórica do “fenômeno transexual”, conduzida por uma abordagem genealógica nos moldes foucaultianos, a relação entre poder e

saber no que diz respeito à transexualidade foi se delineando. As condições de

emergência dos protocolos da transexualidade demonstraram que, se havia a necessidade de um novo saber sobre uma nova realidade emergente, cuja resposta punitiva estatal se mostrava insuficiente e injusta, este saber erigiu-se sobre um determinado poder, o poder de dizer a última palavra sobre a sexualidade alheia, de controlar e administrar corpos e subjetividades, ao passo que o resultado desta empreitada científica apenas consolidou e conferiu novas formas a este poder e novos meios de perpetuá-lo, em um ciclo interminável de poder-saber.

Este ciclo envolveu uma disputa de saberes, os quais, para não perderem completamente os respectivos quinhões, acabaram por coexistir e cooperar na construção de um dispositivo o mais coerente e consistente possível, cujas certeza e segurança que oferecia o tonariam extremamente atrativo e, por conseguinte, muito mais forte. Um dispositivo fundado em um paradigma patologizante-biologicista- terapêutico-adequatório estruturado sobre uma linguagem médica tradicionalmente dimórfica e corretiva, por isso sedutora e de fácil assimilação para uma comunidade médico-científica ansiosa por avanços e pela conveniência de resultados pragmáticos, funcionais e objetivamente verificáveis.

O “mérito” deste dispositivo, a sua pretensão de certeza e segurança fundada na biologia dos corpos e em uma categoria diagnóstica supostamente definitiva e absoluta, foi o seu auge e, ao mesmo tempo, o seu limite e insuficiência, em razão da impossibilidade detectada pela própria comunidade médica de determinar com a mesma “precisão cirúrgica” empregada no processo transexualizador os contornos desta experiência, face à pluralidade das vivências de gênero e sexualidade

48 encontradas.

Entender, contudo, a aludida empreitada, a sua consolidação pela Medicina e reprodução pela Bioética, foi fundamental para dar seguimento às análises dos seus limites e apontar novos caminhos à transexualidade.

49 3. A GENEALOGIA DA TRANSEXUALIDADE (PARTE II): O PARADIGMA DE GÊNERO QUE EMBASOU O DISPOSITIVO DA TRANSEXUALIDADE

Interpelar a história através da análise genealógica da cronologia do “fenômeno transexual” elaborada por Castel (2001) e comentada por Bento (2006) permitiu averiguar as condições de possibilidade de emergência do dispositivo da transexualidade e constatar a sua reprodução pela Medicina e pela Bioética. Ou seja, possibilitou chegar à conclusão de que se trata de um dispositivo que foi resultante da relação entre poder e saber e, por conseguinte, de uma disputa de diferentes saberes que, contudo, assumiam pressupostos comuns. Dessa forma, prosseguir com a investigação dos limites e insuficiências do discurso consolidado em torno da experiência transexual significa interpelar, agora, essa própria matriz teórica comum.

Para alcançar esse objetivo, parte-se da hipótese de que, em um primeiro momento, a “verdade” sobre o sexo e a sexualidade procurada e, ao mesmo tempo, produzida por esses saberes residiu na biologia dos corpos, mas, em um segundo momento e de forma mais decisiva para a consolidação do dispositivo da transexualidade, tal “verdade” passou a ser ancorada na construção cultural do gênero, embora em ambos os momentos houvesse algo em comum entre os pressupostos assumidos: a necessidade de uma base sólida, imutável e cômoda, isto é, binária e heterossexual, a orientar as formas de abordagem dos seres e práticas “desviantes” e, pois, “anormais”.

As considerações de Michel Foucault (1988) sobre o dispositivo da sexualidade e a scientia sexualis, bem como as conclusões de Rafaela Cyrino (2013) acerca da produção normativa e discursiva referente à experiência transexual, também embasadas no pensamento foucaultiano, guiarão as presentes reflexões, auxiliando na análise das interligadas construções teóricas de Robert Stoller (1982), Harry Benjamin (1966; 1999), John Money (1985) e Talcott Parsons (1951; 1970).

A metodologia empregada, mais uma vez, seguirá a genealogia nos moldes foucaultianos, tal qual já aduzido e explanado supra, através de uma análise de conteúdo, mais especificamente da análise do discurso das obras selecionadas em razão da sua representatividade historiográfica, conceitual e/ou paradigmática.

50 3.1. A SCIENTIA SEXUALIS

Ao contestar a “hipótese repressiva”, de acordo com a qual a modernidade fora marcada por uma forte repressão ao sexo, pelo seu confinamento e silenciamento, de modo que apenas poderia ter lugar, em práticas e discursos, em espaços determinados e legitimados para tanto, Foucault realiza uma genealogia da sexualidade, investigando o dispositivo decorrente da longa empreitada de uma sociedade que, em verdade, “há mais de um século se fustiga ruidosamente por sua hipocrisia, fala prolixamente do seu próprio silêncio, obstina-se em detalhar o que não diz, denuncia os poderes que exerce e promete libertar-se das leis que a fazem funcionar” (FOUCAULT, 1988, p. 15).

O que o teórico francês pretende defender não é que não tenha havido a referida interdição, mas que a questão sobre o sexo e a sexualidade não se restringia a tal intento e, sim, que as negações, proibições e censuras experimentadas correspondiam a elementos de uma estratégia maior, resultante tanto em uma produção discursiva, de saber e de poder, quanto nas interações entre tais esferas, uma estratégia dispersa e disseminada por toda a sociedade, com objetivos de controle e disciplinamento.

A partir do final do Séc. XVI, portanto, nota-se uma verdadeira “colocação do sexo em discurso” (FOUCAULT, 1988, p. 26), gerando uma proliferação de discursos sobre o sexo, uma incitação institucional a falar sobre ele, cada vez mais e com mais detalhes, assim como uma obstinação destas instituições e instâncias de poder em ouvir falar sobre o “assunto proibido”.

No Séc. XVII, o marco inicial desta empreitada foi a evolução da pastoral católica e do sacramento da confissão, após o Concílio de Trento e a elaboração dos minuciosos manuais de confissão da Idade Média; neste momento, encontrava-se sob a égide da Igreja a missão de determinar os limites entre o sagrado e o profano, instituir o pecado, controlar o sexo e discipliná-lo.

No Séc. XVIII, surge o conceito de “população”, como um problema de ordem política e econômica, e o sexo torna-se assunto de natureza pública, uma questão de “polícia”20 e de policiamento; isso porque, a partir de então, não interessa mais

20 Foucault (1988, p. 31) vai definir a “polícia do sexo” no seguinte sentido: “necessidade de regular o

51 apenas condená-lo ou tolerá-lo, mas é preciso geri-lo, torna-lo útil e funcional, em nome do bom funcionamento de toda a sociedade.

Uma vez tornado assunto de interesse público, o sexo passa a ser regulado por diversas instituições e instâncias, tais como a Escola, o Estado, o Direito e a Medicina.

Nas Escolas, a constatação da existência de uma suposta sexualidade precoce, ativa e permanente, capaz de macular, corromper e adoecer, física e psicologicamente, crianças e adolescentes mobiliza professores, pedagogos, médicos e familiares em torno da contenção e assepsia do colegial e do seu sexo. Todo um aparato é posto em andamento para disciplinar os corpos em formação, desde um constante estado de alerta e vigilância por parte de todos os que detêm alguma parcela de poder no ambiente escolar, até a organização dos espaços físicos, salas de aula, banheiros, dormitórios, passando pela escolha das atividades desenvolvidas, fixação de horários, regras de convivência, interação e contato. Tudo para proteger, separar e prevenir, instaurando uma dinâmica de responsabilidades e punições, bem como preparando esses jovens para desempenharem o papel que suas famílias, a sociedade em geral e o próprio Estado lhes designaram.

O Estado, por sua vez, exercendo o controle populacional, começa a administrar a fecundidade, através das taxas de natalidade, e gerir casamentos, nascimentos, sobrevivências e falecimentos, bem como as suas consequências. Por outro lado, face à crescente laicização da moralidade, passa a assumir a sua normatividade oficial, interditando os desvios, contendo as perversões, mediante a instituição do lícito e do ilícito. O Direito serviu de inegável e fundamental ferramenta para ambos os propósitos.

A Medicina, por fim, adentrou na esfera mais íntima do indivíduo e do casal, formulando patologias orgânicas, funcionais ou mentais, originadas de práticas sexuais “incompletas”, “não-convencionais” ou simplesmente “divergentes”, assumidas, pois, como desviantes e doentias. Auxiliou a sociedade ocidental moderna a erigir uma verdadeira scientia sexualis, na busca (ou produção?) pela “verdade” sobre o sexo, assimilando e adaptando o instituto da confissão católica, obrigatória e exaustiva, aos espaços e práticas médicas, como suporte indispensável para a construção do discurso científico.

52 institucionalização e sistematização clínica do “fazer falar” (para fins de observação de sinais e sintomas); partia de uma causalidade geral e difusa (ou seja, de um suposto potencial causal inesgotável do sexo sobre as mais variadas consequências médicas); pressupunha um princípio de latência intrínseca à sexualidade (uma vez que os desejos sexuais mais profundos e verdadeiros do indivíduo poderiam encontrar-se escondidos dele mesmo); desenvolvia-se sobre métodos de interpretação específicos e acordados pela comunidade médico-científica (justamente para lidar melhor com as informações, muitas vezes incompletas, truncadas e confusas, coletadas dos pacientes, sobre as quais caberia ao médico dar a última palavra, exercendo a sua função hermenêutica precípua); resultava na medicalização dos efeitos da confissão, o que significava que o sexo não estaria mais sob a égide da culpa e do pecado, nem do excesso e da transgressão, mas do regime do normal e do patológico, sendo, portanto, passível de intervenção e cura.

Tratava-se, ademais, de uma ciência que, face à impossibilidade de referir-se ao sexo e à sexualidade como algo natural, em todas as suas múltiplas formas e manifestações, voltava-se para o tido como diferente, excêntrico, mórbido ou pervertido, servindo de instrumento para a reiteração de imperativos morais, embora os tenha, antes, encoberto por uma suposta austeridade e neutralidade científicas21. No curso do século XIX, o sexo foi, então, inscrito “em dois registros de saber bem distintos: uma biologia da reprodução desenvolvida continuamente segundo uma normatividade científica geral, e uma medicina do sexo obediente a regras de origens inteiramente diversas” (FOUCAULT, 1988, p. 63). A scientia sexualis estabeleceu uma matriz biológica para o sexo, mais especificamente de base anatômica, apoiada no dimorfismo dos corpos (pênis/vagina; masculino/feminino), e reprodutiva, fundada na premissa da heterossexualidade natural; uma matriz que foi incorporada, reproduzida e controlada pelo dispositivo da sexualidade denunciado por Foucault, do qual aquela ciência representou uma peça-chave.

Conforme já defendemos antes, no que diz respeito à compreensão do sexo na obra do teórico francês em apresso (GRANT, 2013-B, p. 17), seria esta matriz a

21 Com os resultados destas teorizações sobre o sexo, em síntese, reitera Foucault (1988, p. 43): “(...)

multiplicaram-se as condenações judiciárias das perversões menores, anexou-se a irregularidade sexual à doença mental; da infância à velhice foi definida uma norma do desenvolvimento sexual e cuidadosamente caracterizados os desvios possíveis; organizaram-se controles pedagógicos e tratamentos médicos; em torno das mínimas fantasias, os moralistas e, também e sobretudo, os médicos, trouxeram à baila todo o vocabulário enfático da abominação; (...)”.

53 responsável pelo acesso à materialidade dos corpos, à inteligibilidade e identidade de cada indivíduo, uma vez que a genitália formada por um pênis ou uma vagina determinaria as expectativas sociais correspondentes, as exigências de coerência entre corpo, sexo, gênero, sexualidade, práticas sexuais, comportamentos, espaços e condicionamentos, tanto pela linha masculina (pênis-masculino-homem- heterossexual-ativo-viril-futebol-público-razão), quanto pela feminina (vagina- feminino-mulher-heterossexual-passiva-frágil-boneca-privado-emoção).

A verdade do “sexo” residiria, pois, na biologia dos corpos.