• Nenhum resultado encontrado

Vários níveis de deslocamento e desorientação sexual: o diagnóstico diferencial entre travestismo e transexualismo e a tabela classificatória de

3.3. A TRANSEXUALIDADE NA CONCEPÇÃO DE ROBERT STOLLER (1968; 1982)

3.4.4. Vários níveis de deslocamento e desorientação sexual: o diagnóstico diferencial entre travestismo e transexualismo e a tabela classificatória de

Benjamin

O indivíduo transexual, que vivencia o deslocamento mencionado acima entre o sexo psicológico e os outros sexos, destaca Benjamin, é fisicamente, sobretudo anatomicamente, “normal”, isto é, não deve ser confundido com os casos de “hermafroditismo”.

Ainda assim, aquelas pessoas sofreriam, como relata o endocrinologista, de um sentimento de “profunda tristeza” por pertencerem e serem identificadas como membros do sexo designado nas suas respectivas certidões de nascimento, ou seja, com base no sexo que lhes fora atribuído em função da genitália, da estrutura anatômica, que apresentavam ao nascer.

Tal desconforto poderia até ser minimizado através do uso de vestimentas e da assunção de comportamentos usualmente associados ao sexo/gênero oposto, o que remete às práticas cross-dressing, mas, para Harry Benjamin, um transexual não se contentaria somente com tais práticas esporádicas ou parciais; para este autor, o “verdadeiro transexual”27 sente que pertence plenamente ao sexo/gênero

27 No original: “(…) These persons can somewhat appease their unhappiness by dressing in the

clothes of the opposite sex, that is to say, by cross-dressing, and they are, therefore, transvestites too. But while "dressing" would satisfy the true transvestite (who is content with his morphological sex), it is only incidental and not more than a partial or temporary help to the transsexual. True transsexuals feel that they belong to the other sex, they want to be and function as members of the opposite sex, not only to appear as such. For them, their sex organs, the primary (testes) as well as the secondary (penis and others) are disgusting deformities that must be changed by the surgeon’s knife. This attitude appears to be the chief differential diagnostic point between the two syndromes (sets of

73 oposto e pretende interagir, relacionar-se, viver plenamente, de maneira geral, como membro do sexo oposto, não apenas “parecer” ou “aparecer” como um.

Práticas cross-dressing seriam um denominador comum entre travestis e transexuais, estando presentes em praticamente todos os transexuais, embora, por outro lado, desejos tipicamente transexuais não sejam evidentes (ainda que possivelmente latentes, segundo Benjamin) na maioria dos travestis.

Ao se debruçar sobre a relação entre Travestismo (TVism) e Transexualismo (TSism), contudo, Harry Benjamin (1999, pp. 13-16) destaca que esta não se dá de forma tão simples, demandando uma análise mais aprofundada e alguma reflexão; ambos poderiam ser considerados “sintomas” ou “síndromes” da mesma condição psicopatológica subjacente, uma “indecisão ou desorientação do papel sexual ou de gênero”, o travestismo sendo menos grave e mais frequente, enquanto o “transexualismo” seria considerado uma desordem muito mais grave, embora menos frequente; a identificação do quadro clínico dependeria do quão profundamente e por quais razões congênitas ou adquiridas a orientação sexual e de gênero do indivíduo em exame é “perturbada”.

Transexuais genuínos, nesse diapasão, sentiriam repulsa pelos seus órgãos sexuais e caracteres sexuais secundários, almejando submeterem-se o quanto antes a procedimentos hormonais e cirúrgicos para modifica-los. Essa seria a marca do diagnóstico diferencial entre as duas “síndromes” consideradas: o “travestismo” e o “transexualismo” – enquanto os indivíduos do primeiro grupo sentir-se-iam satisfeitos em vestir-se como pessoas do sexo/gênero oposto, estando, por outro lado, satisfeitos com seus corpos, sem apresentar demandas aos profissionais da área de saúde, os indivíduos do segundo grupo, não contentes em “aparecer” como alguém do sexo/gênero oposto, depositariam todas as suas expetativas nas mãos dos médicos, sobretudo dos cirurgiões e nas cirurgias corretivas ou de readequação, de modo a tornar seus corpos os mais próximos possível dos corpos do sexo/gênero

symptoms) - that is, those of transvestism and transsexualism. (BENJAMIN, 1999, p. 11). [Tradução livre: “Essas pessoas podem apaziguar um pouco a sua infelicidade vestindo-se com roupas do sexo oposto, ou seja, pelo ‘cross-dressing’, são, portanto, travestis também. Mas enquanto ‘vestir’ satisfaria o verdadeiro travesti (que se contenta com seu sexo morfológico), seria apenas incidental e não mais do que uma ajuda parcial ou temporária para o transexual. Transexuais verdadeiros sentem que

pertencem ao outro sexo, eles querem ser e funcionar como membros do sexo oposto, não apenas

para aparecer como tal. Para eles, os seus órgãos sexuais, os primários (testículos), bem como os secundários (pênis e outros) são deformidades nojentas que devem ser alteradas pela faca do cirurgião. Esta atitude parece ser o ponto de diagnóstico diferencial principal entre as duas síndromes (conjuntos de sintomas) - ou seja, aquelas do travestismo e do transexualismo”].

74 com o qual se identificam e ao qual desejam pertencer.

Entre os traços característicos supramencionados, utilizados para identificar e distinguir o “travestismo” do “transexualismo”, existiriam nuances passíveis de serem demarcadas e auxiliarem na busca pela abordagem mais adequada a cada manifestação de “desorientação sexual”.

Diante desse cenário, Harry Benjamin elaborou, então, uma tabela classificatória para estabelecer uma escala de orientação sexual adequada a travestis e transexuais e especificar níveis de indecisão ou desorientação relativos ao papel de gênero e sexual em homens (“Sex and Gender Role Disorientatio and

Indecision (Males)”), tomando por base a Escala de Orientação Sexual (“Sex Orientation Scale (S.O.S.)” ou “Kinsey Scale”) criada por Alfred Charles Kinsey

(1894-1956)28, qual seja:

Escala Kinsey

(KINSEY, POMEROY, MARTIN, 1948)

A tabela de Benjamin (ANEXO A), por sua vez, compreende um conjunto de três grupos (travesti, transexual não-cirúrgico e transexual verdadeiro), subdivididos em seis tipos, os quais vão do pseudotravesti – que viveria como homem, apresentando apenas o desejo de se vestir como alguém do sexo/gênero oposto esporadicamente – até o transexual verdadeiro de alta intensidade – este sim sofreria de uma inversão psicossexual total, intenso desconforto de gênero e corresponderia àquele para quem vestir-se como mulher seria insuficiente, sendo

28 Renomado entomologista e zoólogo norte-americano, fundador do Instituto de Pesquisa sobre Sexo

(hoje conhecido como Instituto Kinsey para Pesquisa sobre Sexo, Gênero e Reprodução) e responsável por estudos sexuais paradigmáticos, reunidos e divulgados nos famosos “Relatórios Kinsey”.

75 altamente necessárias e recomendadas as intervenções hormonais e cirúrgicas, dentre outras singularidades apontadas abaixo.

O Grupo 1 (Travesti) abarcaria o pseudotravesti (Tipo I), o travesti fetichista (Tipo II) e o travesti verdadeiro (Tipo III); o Grupo 2 abarcaria apenas o transexual não-cirúrgico (Tipo IV); e o Grupo 3 abarcaria os “transexuais verdadeiros”, de intensidade moderada (Tipo V) e de alta intensidade (Tipo VI).

Tal qual na Escala Kinsey, a tabela benjaminiana também contaria, em verdade, com sete categorias ou tipos, não necessariamente estágios, mas o “Tipo Zero” se aplicaria às pessoas com uma orientação sexual e de gênero “normal”, para as quais as ideias de vestir-se como o sexo oposto ou mudar de sexo são completamente estranhas e definitivamente desagradáveis, por isso este tipo não costuma aparecer expressamente na formulação da tabela.

O objetivo desta classificação gradativa seria o auxílio na identificação do “transexual verdadeiro” – o único passível de ser submetido tanto às intervenções hormonais, quanto às cirúrgicas como solução adequada para as suas inquietações e demandas –, a partir do reconhecimento da presença de todas as suas características distintivas.