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Capítulo I. MATIÇÃO E AS MULHERES DO MATIÇÃO

1.2 A Comunidade Quilombola do Mato do Tição na Universidade

A emergência das quilombolas e dos quilombolas como sujeitos de direitos está ligado aos contextos político e acadêmico de valorização da diferença étnico-racial. Nesse sentido, as pesquisas realizadas com grupos negros ou em comunidades remanescentes de quilombo e o foco que elas dão a essa diferença fazem ressonância ao contexto em que se insere. Dessa forma, é importante também explicar o contexto de produção de cada uma das pesquisas realizadas, para melhor entendimento de como as pesquisas e os pesquisadores ― portanto, a cultura escrita―, representam, de certa forma, agentes importantes para as inúmeras significações do que é ser quilombola.

Muitas histórias e estórias do povo do Matição, conhecidos, transmitidos e circulados por meio da oralidade, até melodias, canções e ritmos por eles executados têm sido coletadas e escritas por diversos pesquisadores desde a década de 1980. As pesquisas e os livros publicados também representam um espaço de insurgência dos remanescentes de quilombo como sujeitos políticos, na medida em que suscitam novos processos de reflexões e de novas maneiras de se agenciar a própria identidade diante de agentes externos. Interagir com pesquisadores, desde o momento de assinatura de termos até o momento de responder a entrevistas, implica algum entendimento sobre as funções que a escrita assume e seus impactos sociais e políticos, não só sobre a comunidade como também sobre uma questão mais ampla, ligada à produção de sentido daquilo que vem a ser „quilombola‟.

Por um lado, o povo do Matição fala como muito carinho dos pesquisadores que estabeleceram vínculos mais duradouros com a comunidade. Por outro, mostram-se, às vezes, desconfiados: Tá todo mundo sabendo da nossa história e tem gente ficando rico vendendo ela. A referência ao livro Mundo Encaixado, sobre o qual falaremos, por exemplo, é trazido no discurso das mais velhas, muitas vezes, para dar credibilidade às histórias da comunidade: Cê pode ver, tá lá no mundo encaixado. Ou, no mundo encaixado até fala disso. Quando vem alguém de fora, algum outro pesquisador ou pesquisadora, por exemplo, D. Nilse busca o livro dentro de alguma gaveta para mostrar.

As décadas de 1980 e 1990 foram marcadas pela valorização da identidade étnico- racial, a partir da descolonização, do surgimento dos estudos pós-coloniais, da luta pelos direitos civis e diante da necessidade de afirmação identitária e política dos povos da diáspora africana. Além disso, as abordagens teóricas pós-modernas começaram a emergir, trazendo uma maior valorização à diferença nas experiências humanas (HALL, 2013).

Ademais, a partir do final da década de 1970, a visibilidade das comunidades remanescentes de quilombo se dá em contexto de redemocratização do país, que resultou da emergência do Movimento Negro Contemporâneo. Esse movimento se distingue dos anteriores por trazer novas reivindicações, tais como a denúncia do mito da democracia racial, a promoção de ações de valorização da identidade negra por meio de iniciativas de incentivo da autoestima, especificamente traços físicos e manifestações culturais; e a luta perante o poder público em prol de programas de ações afirmativas como forma de reparação aos afrodescendentes (ALMEIDA, 2014). Dessa forma, uma das primeiras vitórias jurídicas do Movimento Negro foi a promulgação da Constituição Federal de 1988. Nesse contexto, O Quilombo de Palmares também se constituiu como referência para diversos militantes de movimentos sociais que evidenciavam o quilombo como ideal da resistência e da solidariedade.

Nesse contexto, as pesquisas antropológicas e históricas tinham o objetivo de questionar a concepção tradicional de quilombo, reformulá-la em novas significações. Segundo Almeida (2014, p. 9):

Em meados da década de 1990, a ressemantização da categoria quilombo, com destaque nesse processo para a valorização do pertencimento cultural, favoreceu o deslocamento de conteúdos simbólicos relacionados ao masculino para as práticas culturais femininas, como por exemplo, a dança, a culinária, a medicina alternativa, o artesanato e as religiões.

Segundo Nilma Lino Gomes (2009), no Brasil, foi a partir da década de 1990 que grupos de intelectuais negros (ainda que com uma presença mínima) começaram a articular militância política e a produção do conhecimento sobre a realidade étnico-racial a partir da sua própria vivencia racial. Então, passaram a assumir uma especificidade no campo do conhecimento acadêmico, já que inauguram uma nova fase na produção de um conhecimento “articulado nos (e com) os movimentos sociais”(p. 422). Nas palavras da autora, um dos temas que começou a emergir a partir da atuação acadêmica desses grupos foi “o racismo e a desigualdade social que lamentavelmente ainda persistem no Brasil e são exemplos de como este país, a despeito da intensa diversidade cultural e da propalada miscigenação racial, ainda precisa avançar” (p. 422). Segundo Gomes,

atualmente, a questão racial tem encontrado um espaço maior no campo da produção científica brasileira. Tal inserção aponta uma possível inflexão, a partir dos anos 90, na tentativa de melhor compreender as relações raciais no contexto das desigualdades sócio-raciais. As pesquisas acadêmicas e oficiais começam a considerar com mais seriedade outras dimensões e categorias para além dos aspectos socioeconômicos. Esse processo não significa apenas uma mudança do olhar da ciência sobre a realidade. Representa, entre outros fatores, o resultado da pressão dos movimentos sociais de caráter identitário e os seus sujeitos sobre o campo da produção acadêmica: negros, indígenas, mulheres, homossexuais, etc. (GOMES, 2009 apud GOMES 2008, p. 420).

Exatamente nesse período, foram realizadas as primeiras pesquisas com a Comunidade Mato do Tição. Núbia Pereira de Magalhães Gomes e Edmilson de Almeida Pereira, em um capítulo do livro Mundo Encaixado, publicado em 1992, como parte do “Projeto Minas e seus Mineiros29”,trazem as histórias da comunidade, marcadas pela cultura e pelas tradições em um contexto de lutas da população negra e de preservação da cultura afro-brasileira. As moradoras e os moradores guardam registro dessa época, fotos dos pesquisadores relatos sobre a curiosa presença deles na comunidade. A pesquisa foi fruto de um grande estudo, que contou não só com os relatos orais, como também trabalhou em fontes documentais e bibliográficas.

Ainda na década de 1990, Glória Moura realizou o estudo Ritmo e Ancestralidade na força dos tambores negros: o currículo invisível da festa (1997). Parte da pesquisa foi publicada no artigo “Direito à diferença”, no livro organizado prelo Professor Kabenguele.

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O projeto aborda aspectos da cultura popular: narrativas (histórias de vida e histórias imaginárias): religiosidade (benzeções, festejos, rituais e crenças); manifestações musicais sagradas e profanas; representações culturais da morte e do feminino em Minas Gerais (1992, orelha do livro). Foi desenvolvido pela Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) em conjunto com prefeituras municipais e os professores de língua portuguesa das escolas locais.

Munanga, Superando o racismo na escola, com primeira edição de 1995. No artigo, ela repensa o papel da escola “como fonte de afirmação de identidades, à luz da experiência de quilombos contemporâneos”, nesse contexto, trazendo à reflexão a importância da diferença no currículo. Segundo Moura (1990, p. 70), “o que faz com que os quilombolas afirmem... vigorosamente sua diferença e a reivindiquem enquanto direito, vivendo de seu trabalho, quase sempre no campo e, concomitantemente, cantando, dançando, praticando suas devoções, vivenciando sua fé.”.

Em 2000, os estudos sobre quilombo já apontavam para a perspectiva da singularidade de cada comunidade, deslocando o olhar mítico para a denúncia de invisibilidades sociais ativamente produzidas e a forma como as comunidades quilombolas reagem a esse processo. Importante lembrar que, nessa década, os debates e as lutas do Movimento Negro culminaram na publicação do Decreto nº4.887/03, que regulamentou os procedimentos para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por esses grupos mediante a autodefinição dos próprios membros da comunidade. Santana (2015, p.29) afirma que, nesse contexto, os autores30

contribuíram para a ressignificação e ressemantização do conceito de quilombo, na esteira das lutas contemporâneas dessas comunidades, deslocando o olhar de certa mitologia erigida pelo quilombo de Palmares para agrupamentos negros rurais e urbanos, com seu potencial enquanto movimentos de afirmação de direitos identitários e da diversidade de motivações na estruturação das comunidades.

Em 2005, Edmilson de Almeida Pereira dá continuidade aos estudos realizados na década de 1980 e publica o livro Os tambores estão frios, a respeito do candombe em comunidades Quilombolas de Minas Gerais. Em 2008, o antropólogo Djalma Antônio da Silva publica o artigo intitulado De agricultores a quilombolas: a trajetória da Comunidade Quilombola Mato do Tição e a sua luta pela posse da terra. O autor, a partir de relatos orais e etnografia, reconstrói a constituição histórica do quilombo e a origem da comunidade, trazendo como foco a luta pela sobrevivência, as dificuldades, a ameaça de perda de terras e o processo de reconhecimento como comunidade quilombola – que ele considera como algo que alterou de forma significativa a vida no Mato do Tição. Já em 2009, Oliveira, Mata, Pádua e Teixeira publicam o artigo Espaço sagrado sobre a ótica da nova geografia cultural,

30João José Reis, Alex Ratts, José Maurício Arruti, Ilka Boaventura Leite, Neusa Maria Gusmão e Alfredo

no qual os autores articulam as manifestações religiosas, como A Festa de Santa Cruz e o São João e o candombe se com o espaço geográfico e as construções identitária.

Em 2011, Marcilene da Silva defende sua tese Conflito, estigma e resistência: um estudo a partir da comunidade quilombola do Matição - MG na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Na mesma direção dos demais pesquisadores que estiveram na comunidade realizando estudos, ela apresenta a história da comunidade a partir de embates pela manutenção da terra, da precariedade material e do estigma sofrido pelas marcas da escravidão. Sua análise está direcionada à luta pela sobrevivência, aos processos discriminatórios sofridos principalmente pelos moradores de Jaboticatubas e aos prejuízos materiais e morais que dificultam o acesso a bons empregos, a educação de qualidade e o sentimento de afirmação positiva do ser negro e quilombola.

A partir daí, as pesquisas realizadas em Matição deslocam o foco para as singularidades dos sujeitos em processo de entendimento e agência da própria identidade. Nisso consiste a dissertação de mestrado de Fernanda C. de Oliveira Silva (2013), Quando reza a Fé no Quilombo Mato do Tição ― Família, festas, males e curas fazem a comunidade, defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFMG, por meio de uma etnografia e dos relatos dos anciãos e das lideranças políticas. No texto etnográfico, a autora pensa o quilombo como um coletivo agenciado por meio das relações entre a família, pelas festas e rezas, pelos saberes de males e de curas e busca entender como, por meio desses processos, as moradoras e os moradores fazem a comunidade tornar-se quilombo. Segundo ela, esses agenciamentos são experimentados sob um intenso regime de fé que é mobilizada entre as gerações e pela “fé no quilombo” como modo de organização política, que também promete devoção.

E, finalmente, defendida em 2015, temos a tese de doutorado de Patrícia Santana, intitulada Modos de ser criança no Quilombo do Mato do Tição. A autora, por meio de observação participante, de entrevistas, de desenhos e de outros recursos metodológicos, busca compreender as singularidades nos modos de ser criança na comunidade. A autora parte da compreensão de que as crianças são atores sociais, produtoras de cultura e possuidoras de saberes próprios. A partir de então, ela descreve e analisa as diversas possibilidades de aprendizagens nas quais os pequenos se encontram enquanto se entendem e reelaboram sua identidade de crianças do Mato do Tição e criança quilombola. Além disso, a autora entrevista pessoas de distintas gerações para estabelecer comparações entre as infâncias nas mudanças sociais e políticas pelas quais a comunidade passou.

Sabemos que essas não foram as únicas produções acadêmicas realizadas na comunidade. Há outras, possíveis de serem encontradas em banco de dados da internet, que partem mais da leitura de textos do que propriamente do contato com a comunidade. Elegemos aqui as mais expressivas, a respeito das quais as moradoras e moradores da comunidade sempre falam e com as quais dialogamos na produção deste texto. Dessa forma, a produção acadêmica em relação à Comunidade Quilombola é intensa e pesquisadoras e pesquisadores representam uma figura quase constante na comunidade. Essa interação envolve jogos de conhecimento mútuo (ZALUAR, 1994), na medida em que dela emergem práticas discursivas marcadoras de diferenças, consequentemente, agência de identidade quilombola. D. Nilse também demonstrou ter esse entendimento, em uma ocasião em que me disse que ela foi entendendo mais esse negócio de quilombo com gente que vinha fazer trabalho aqui. Aí que nós foi ver que nossa história tinha importância, tinha até gente querendo escrever ela. D. Nilse também nos mostra que mobilizar a categoria quilombola é uma maneira de interagir com o outro.

Trazer para o texto escrito elementos da comunidade possibilita novos contornos à própria história do Matição e novas maneiras de se interagir com ela. Por exemplo, quando D. Nilse me contou sobre os trabalhos realizados sobre a comunidade: De vez em quando as crianças vêm aqui pra pegar esses trabalho e fazer pesquisa pra escola sobre a comunidade e aí desaparece com os livro, a gente nunca mais vê. As crianças, assim, ao pesquisarem a própria comunidade em atividades escolares, recorrem não apenas aos anciãos, como também às pesquisas acadêmicas. A presença de pessoas ligadas à universidade também é útil à comunidade na mediação de eventos de interesse coletivo e na escrita de editais para aquisição de recursos. Assim, constitui-se como um elemento que impulsiona, aproxima e intensifica as relações das quilombolas e dos quilombolas com a cultura escrita.

A relação entre a universidade e a Comunidade Quilombola do Mato do Tição não se esgota com a presença de pesquisadores da área de ciências humanas e de estudantes ligados a projetos de extensão. Atualmente, em nova modalidade de percurso curricular, vinculados ao Programa de Formação Transversal Encontro de Saberes, a Universidade Federal de Minas Gerais oferece disciplinas cujos professores são os mestres tradicionais. Seu Badu, acompanhado da sobrinha Marilene, fez parte de duas edições do programa, ministrando aulas sobre sua prática como homeopata e raizeiro, aprendidos na tradição de seu povo e na Universidade Federal de Viçosa. Entretanto, não há, na comunidade, nenhuma pessoa com

curso de graduação, e isso ainda parece ser uma realidade distante e pouco vislumbrada pelos jovens do Matição.

Pareceu-me curioso a maneira como Marilene se apropriou da forma acadêmica de se transmitir e de se produzir conhecimentos. Nos dias 27 e 28 de novembro de 2015, realizou o 1º encontro de comemoração à Consciência Negra. O folder de apresentação contava com citações de Beatriz Nascimento e na programação, além das próprias e dos próprios quilombolas e outros mestres tradicionais ministrando palestras, havia também membros da universidade. Participaram desse evento tanto pesquisadoras que já haviam realizados pesquisas ali como outras pessoas que ela conheceu no contexto acadêmico. Tiveram como recurso um aparelho data show para as apresentações, no entanto, como já foi dito, a falta de luz impossibilitou a realização do evento nesse formato.